Depois de entender o processo histórico que levou a formação da tradição filosófica, nós vamos agora estudar as características que se fazem presentes nesta doutrina; assim como buscaremos entender o pensamento dos seus primeiros representantes. Usualmente se divide os primeiros pensadores entre pertencentes à escola jônica e pertencentes à escola italiana, esta classificação nos será bastante útil pois, além de salientar características comuns entre pensadores de uma mesma escola, ela ressalta o paradigma monista-mobilista, que abordaremos futuramente. Há ainda um terceiro grupo de filósofos nomeados Pluralistas, que surgem em uma fase diferente do pensamento pré-socrático.
Nesta aula, estudaremos apenas os primeiros pensadores, que compunham a escola jônica. Esta escola reunia os filósofos milesianos, assim como Xenófanes de Colofon e Heráclito de Éfeso, o qual será amplamente discutido futuramente. Um de seus aspectos fundamentais era sua visão naturalista e seu caráter científico. Desta forma, para estuda-los com uma maior facilidade, começaremos com um panorama geral a respeito do seu método e do seu objeto de estudo.
Vale comentar também que tudo que se sabe hoje sobre os pré-socráticos deriva do que se encontra nas doxografias e nos fragmentos. As doxografias são comentários, análises ou interpretações de autores posteriores em cima de dizeres pré-socráticos, enquanto que os fragmentos são citações diretas dos enunciados transcritos ou escritos literais destes.
NOÇÕES FUNDAMENTAIS
Em meio a investigação racional de Tales e de seus discípulos, é essencial que se tenha noção de que realidade esses pensadores pretendiam abordar, isto é, o que seria a base de seus estudos. Enquanto que, durante a tradição mítica, o universo era visto de forma sobrenatural, incompreensível e além dos poderes de observação do homem — lê-se humanidade —, os representantes da escola jônica consideram-se cientistas da physis, daí seu apelido de físicos. A physis nada mais é do que a própria natureza concebida inteiramente a partir dos seus fenômenos naturais internos. Embora não ateia, esta visão de mundo é altamente secularizada, pois recusa a crença em qualquer objeto externo à realidade natural.
Esta organização natural dos fenômenos é um preceito conhecido como kosmos, ou cosmo, e seria então a própria realidade ordenada e harmônica, esta em oposição ao kaos (desordem). Assim, a investigação racional só seria possível porque os fenômenos e a realidade absoluta que nos cerca mantêm uma certa organização causal; ou seja, fenômenos independentes sucedem-se uns aos outros e podem ocasionar eventos terceiros, sendo todos estes fenômenos naturais. A isto chamamos de princípio de causalidade. Com efeito, pode-se dizer que a causalidade já existia durante o pensamento mítico, pois é notável que grande parte da cultura dessas civilizações surgia como justificativa para os fenômenos do dia-a-dia. A grande diferença é que, na tradição filosófico-científica, as causas devem pertencer ao mundo natural, dado que é paradoxal recorrer a uma explicação que usa do inexplicável.
Para esclarecermos ainda mais essa distinção, vejamos um exemplo: o fenômeno da chuva. Para as civilizações do Egito e da Mesopotâmia, nascidas próximas ao rios Nilo, Tigre e Eufrates, a água era vista como sinônimo de vitalidade, o que era ainda reforçado pelo fato de serem sociedades agrícolas que precisavam da água para o cultivo. Desta forma é compreensível que achassem que apenas um deus poderia ser a causa para tal efeito. Sob a perspectiva dos milesianos, contudo, o estudo da physis mostraria a existência de um ciclo natural da água em nossa planeta, na qual cada etapa anterior causaria a posterior. Com isso, vemos que ambas as formas de pensamento baseiam-se em causalidade, mas que a tradição filosófica não aceita causas não-naturais.
Estabelecido este método de investigação, os primeiros pensadores — estende-se a todos os pré-socráticos — irão se deparar com um problema mais-do-que-clássico, a busca pela arque. Dado que todo os eventos causam novos eventos, chamados efeitos, e que estes primeiros eventos são, por sua vez, efeitos de causas anteriores, não haveria uma cadeia infinita de eventos, uns antecedendo-se aos outros e ainda outros mais anteriores?
Este tipo de prova foi bastante usado pelos pensadores gregos, caracterizando-se como uma redução ao absurdo (reductio ad absurdum), pois a ideia de “até o infinito” (ad infinitum) era considerada pelos gregos como impossível. Sua noção de infinito era bastante primitiva e apenas teórica, qualquer hipótese de infinito real era tradicionalmente descartada. Este conhecimento falho do infinito proporcionou uma série de paradoxos, em especial os paradoxos de Zenão, que iremos estudar na próxima aula.
Com a hipótese de uma cadeia infinita de causas abandonada, a única explicação possível era a de que deveria ter havido um elemento primordial da qual tudo se originou, esta sendo a arqué. Pode-se dizer que o grande projeto filosófico do pensamento pré-socrático foi a busca por este elemento primordial.
Por último, temos que mencionar o fato de a tradição filosófica, diferentemente da mítica, ser uma doutrina de caráter crítico; a crítica é um conceito antagônico ao dogmatismo, que se baseia no princípio de questionar as bases da tradição, isto é, a crítica e a dúvida tornam-se parte integral do pensamento filosófico. Sabendo disso, percebe-se que os discípulos se opunham as teorias de seus mestres não por indisciplina, mas pela própria natureza questionadora que é característica da filosofia. Torna-se razoável até que os próprios fundadores das escolas tenham desafiado seus pupilos a criticarem suas teorias.
Tendo conhecimento de todas essas características, podemos finalmente partir para o estudo dos pensamentos individuais de cada um de seus representantes: Tales, Anaximandro, Anaxímenes e Xenófanes. Nesta aula, não iremos falar sobre o pensamento de Heráclito, pois este será guardado para uma posterior mais completa.
TALES DE MILETO
Tales era natural de Mileto e provavelmente viveu por volta do século VI A.C, dado que se tornou célebre pela previsão de um eclipse em 585 A.C, que encerrou a Batalha de Hális, documentada por Heródoto. Além de primeiro filosofo, Tales é também considerado como o pai da matemática e da ciência, tendo feito contribuições essenciais para ambas. Na matemática, foi o primeiro a usar de provas dedutivas e a enunciar teoremas, incluindo claramente aquele com seu nome; foi também responsável por levar conhecimentos práticos de geometria para o Egito. Já nas ciências naturais, fundamentou seu objeto e fez estudos dos mais variados com a natureza.
Depois dessa breve contextualização, podemos dar início a discussão que mais importa dessa seção: a sua arque. Tales acreditava que a hydor (água) era o elemento da qual todas as coisas se originaram. Esta afirmação pode parecer idiota hoje em dia, mas se olharmos o contexto na qual ela emerge, percebemos o quão importante e bem trabalhada é essa hipótese. Ao estabelecer suas ideias, Tales não está se baseando em deuses ou fábulas, mas apenas em sua experiência com a physis: não há vida sem água; apenas ela é encontrada nos três estados na natureza e o seu ciclo tem uma relação íntima com o funcionamento do nosso planeta. Tales não se referia à água como a que experimentamos diariamente, mas ela enquanto princípio, enquanto substância líquida. É notório que as conclusões de Tales são hoje facilmente refutáveis, porém é louvável que ele tenha iniciado uma tradição que nos levou tão longe.
Diria Nietzsche sobre a arque de Tales em seu A Filosofia na Época Trágica dos Gregos:
A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: “tudo é um”.
ANAXIMANDRO
Anaximandro é, atualmente, aquele que mais intriga os estudiosos do pensamento pré-socrático, pois ainda hoje suas ideias podem ser consideradas desafiadoras. Estamos falando de um homem que provavelmente nasceu por volta de 610 A.C e que, ainda assim, defendia uma forma primitiva de evolucionismo animal. Não obstante, ele acreditava que todo o universo estava em constante evolução, assim como os outros universos além deste, que giravam e moviam-se imersos em uma substância infinita e eterna, o apeíron. Nesta última sentença, temos reunidas as principais ideias de Anaximandro, as quais iremos desenvolver em seguida.
Para primeiro comentar sua hipótese de que os mundos existiam em um regime de constante movimento, precisaremos entender porque os gregos costumavam achar que nada se movia no espaço. Baseados em seus preceitos mitológicos, eles acreditavam que as estrelas eram na verdade deuses, que repousavam no vazio da imensidão do universo que os cercava, sem nunca precisar se mover. O próprio movimento era entendido pelo gregos como algo falho, porque se tratava de uma busca por uma melhor posição e só algo que ainda não é perfeito pode melhorar; portanto, a perfeição dos deuses, orbes celestes, impedia que estes se movessem. Ora, assim vemos o quão revolucionário é o pensamento de Anaximandro ao propor que todo o universo está a se mover e mais, que o nosso próprio planeta está a girar em torno de um eixo — por mais que acreditasse que a terra tinha um formato cilíndrico.
Olhando agora para sua crença na evolução do universo, enquanto hipótese científica, percebemos como esta ideia condiz com o conhecimento que temos da nossa realidade atualmente. Basta que se entenda a palavra “evolução” como a passagem de um estado mais simples a um estado mais complexo, o que de fato constitui uma lei; ou, sob uma outra óptica, que a vejamos como significando meramente expansão. O fato é que até muito pouco tempo atrás ainda se acreditava em um modelo fixista do universo e ele, mesmo há milhares de anos, já atacava esta hipótese.
No que diz respeito ao seu pensamento zoológico, não é preciso nem comentar demais. Tales, seu mestre, já acreditava em alguma forma de modificação animal, mas não explorara profundamente esta hipótese. Distintamente o fez Anaximandro, que estudou como teriam os seres vivos se originado, concluindo que todos estes teriam se formado na umidade. Os seres humanos, particularmente, descenderiam dos peixes. Anaximandro errou sobre muitas coisas, mas é curioso ver onde ele conseguiu chegar sem fósseis, genética ou pesquisas anteriores.
Por último, comentemos sobre a sua arque, que não representava um elemento natural, mas uma substância abstrata e indeterminada. Ao contrário da escolha de Tales pela água, que ainda hoje não se sabe ao certo os motivos, sabemos muito bem porque Anaximandro optou pelo apeíron. Sua escolha se baseou em considerar a hipótese mais justa. No entanto, a noção de justiça que ele estava a considerar era a noção cultivada pelos gregos, que difere bastante da que temos atualmente.
A justiça dos gregos aproximava-se bem mais de uma questão harmônica do que de uma questão ética, pois tratava do equilíbrio dos conflitos. Eles acreditavam que todos os elementos naturais existiam em uma proporção fixa, mas que buscavam incessantemente alargar seus domínios, extinguindo os demais. Havia, contudo, um tipo de lei natural que restituía constantemente o equilíbrio destes mesmos elementos; quando o fogo deliberadamente alastrava-se pelos campos, buscando toma-los para si, ele eventualmente apagava em cinzas, que os gregos consideravam terra. Isso era o que os gregos chamavam de justiça, esses limites eternamente estabelecidos que se aplicam tanto para os homens como para os deuses.
O argumento de Anaximandro para demonstrar que o elemento primordial não podia ser a água ou qualquer elemento natural se baseava no fato de que se um desse elementos fosse anterior, dominaria todos os outros. Se qualquer um deles fosse infinito, os outros sequer deveriam existir. Por conseguinte, o elemento primário deveria ser um agente neutro neste conflito, não sendo, assim, natural.
Aos moldes da filosofia, pode-se dizer que Anaximandro foi o discípulo perfeito, pois ele estudou e compreendeu as ideias de seu mestre Tales e teve a coragem de não se prender a estas; indo além do pensamento que o antecedeu, ele contrapôs as hipóteses da água como elemento primário e fundamentou uma arque mais abstrata, porém mais consistente. Infelizmente as ideias de seu sucessor acabam por ser bem menos revolucionárias.
ANAXÍMENES
Não há tanto o que falar sobre Anaxímenes, seja em relação a suas ideias ou a sua vida pessoal. Sabe-se que viveu antes do ano 494 A.C., pois, nesse ano, Mileto foi destruída pelos persas, quando estes sufocavam a revolta dos jônios. Embora atualmente seja, entre os pensadores do trio de Mileto, aquele que menos interessa os estudiosos, na antiguidade, ele foi bem mais admirado que Anaximandro, seu mestre. Isto se dá pela sua influência no pensamento pitagórico, de caráter mais abstrato e místico. Mantinha crenças de que a terra tinha o formato de um disco e de que o elemento primordial era o ar (pneuma).
Supõe-se que tenha escolhido o ar por sua constituição invisível e incorpórea, que possibilitaria sua onipresença; ou ainda que o tenha escolhido pois acreditava que tudo representava a manifestação do ar em diferentes graus de condensação. Indo da alma até a terra, ar altamente condensado.
Aqui se encerra a escola de Mileto, que teve uma importância fundamental no desenvolvimento do pensamento humano. Analisaremos agora o último dos pensadores que estamos classificando como pertencentes a escola jônica — Lembrando que não trataremos do pensamento de Heráclito nessa aula.
XENÓFANES DE CÓLOFON
Xenófanes poderia ser integrado tanto a esta aula quanto a próxima, pois ele nasceu na Jônia e viajou para o sul da Itália. Optamos por colocá-lo aqui para estudar a passagem do pensamento jônico para o pensamento italiano de forma mais gradual. Enquanto que a escola de Mileto é caracterizado por um estudo científico da physis, as escolas pitagórica e eleática se tornaram célebres pela sua abordagem mais abstrata e religiosa da realidade, sendo, em certos aspectos, bem mais chamativa e tendo realizações mais marcantes.
Foi o precursor dos eleatas e existe a possibilidade de ter sido mestre de Parmênides. Seus escritos demonstram que apresentava um tom poético e que criticava o antropomorfismo da religião grega. Foi talvez o primeiro pensador a defender a existência de um deus único que se relaciona com a natureza ou que, até mesmo, se identifica com a própria. O deus de Xenófanes em nada é semelhante aos homens e paira sobre todas as coisas, mantendo uma unidade com tudo que existe. A forma dele não condiz com nada que os homens podem conceber.
Um fragmento encontrado na obra Tapeçarias, de Clemente de Alexandria, diz: “Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm”. Em uma outra, na mesma obra, afirma: “Os etíopes dizem que os deuses têm nariz chato e são negros, os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos”. É notável, por estas duas citações, que Xenófanes já propusesse uma noção primitiva de relativismo cultural; ao menos em relação a religião.
Acreditava, portanto, que o elemento primordial era a terra (seco) e a água (molhado), extremos que alternavam durante o decorrer do tempo cósmico. Em um momento a água cobriria toda a superfície do planeta e, em outro, a terra se tornaria num deserto gigantesco; com esta alternância, a vida iria sumir e reaparecer várias e várias vezes. Ele se baseou em observações de fósseis — não como os que conhecemos hoje — para supor que a terra já esteve completamente submersa em água.
-Aula escrita por Cauan Marques
Próximo: Aula 1.3 - Pitágoras.
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