Aula 01 - Introdução às Equações Funcionais

Aula por Bryan Borck

Primeiramente entenderemos o conceito de equação funcional, basicamente um sistema de equações no qual as variáveis são funções. Geralmente em todo problema de equação funcional possuímos um domínio e um contra-domínio, que devem ser respeitados durante a resolução do problema. Iremos apresentar exemplos de substituições em equações funcionais e logo após ensinaremos algumas ideias bem legais que podemos usar para resolver esse tipo de problema.

Problema:

(IMO/2010) Determine todas as f:\mathbb{R}\rightarrow\mathbb{R} tais que:

f(\left \lfloor x \right \rfloor y)=f(x) \left \lfloor f(y) \right \rfloor

onde \left \lfloor a \right \rfloor é o maior inteiro que não excede a.

Solução:

Vejamos que é um problema da IMO e ainda é recente, mas não se preocupe, pode parecer difícil e assustador no início, porém mostraremos que com um pouco de trabalho e técnicas espertas conseguiremos resolver tranquilamente este tipo de problema. Como em qualquer problema de matemática, procuraremos uma situação confortável para explorar e vejamos que qualquer equação envolvendo zero é algo bem legal pois é fácil de trabalhar com zeros, por isso, nossas primeira substituição dentro deste problema é x=y=0:

Vejamos que quando x=y=0 temos:

f(\left \lfloor 0 \right \rfloor \cdot 0)=f(0)\cdot \left \lfloor f(0) \right \rfloor

f(0)=f(0)\cdot \left \lfloor f(0) \right \rfloor

E se f(0)\ne 0 então cancelando f(0) dos dois lados temos:

\left \lfloor f(0) \right \rfloor = 1

Logo, temos dois casos a analisar:

Caso 1: Se \left \lfloor f(0) \right \rfloor = 1 então colocando y=0 na equação original obtemos:

f(0)=f(x)

E a nossa função é constante, como 2 data-recalc-dims=f(0)\ge 1" /> então f(x)=a onde 2 data-recalc-dims=a\ge 1" />. E podemos verificar que esta é de fato uma solução e portanto metade do caminho já conseguimos 🙂

Caso 2: Se f(0)=0 então não necessariamente \left \lfloor f(0) \right \rfloor = 1 e vejamos: Qual o segundo número que você colocaria agora? Se você disse 1 está correto, pois ainda é uma situação confortável, já que é fácil trabalhar com o 1 e colocando x=y=1 na equação original:

f(1)=f(1) \left \lfloor f(1) \right \rfloor

E encontramos novamente f(1)=0 ou \left \lfloor f(1) \right \rfloor = 1. Dividiremos agora em dois casos:

Caso 2.1: Se f(1)=0 coloque x=1 na equação original e temos:

f(\left \lfloor 1 \right \rfloor y)=f(1) \left \lfloor f(y) \right \rfloor

f(y)=0

E podemos verificar que f(x)=0 para todo x real é de fato outra solução.

Caso 2.2: Se \left \lfloor f(1) \right \rfloor = 1 então colocando y=1 na equação original vale que:

f(\left \lfloor x \right \rfloor)=f(x) (*)

E agora temos duas opções: Tentar achar uma solução ou provar que este caso não possui nenhuma. Por isso é sempre importante testar valores, pois fazendo isso repetidas vezes possuímos uma intuição de qual seja a resposta ou solução do problema. Neste caso vemos que depois de repetidas tentativas, nossa hipótese indica que não hajam soluções e para tentar conseguir um absurdo pensemos que temos dois fatos:

f(0)=0 e \left \lfloor f(1) \right \rfloor=1

Pensando em unir os dois, coloquemos x=2 e y=\dfrac{1}{2} na equação original:

f(1)=f(2)\cdot \left \lfloor f(\dfrac{1}{2}) \right \rfloor

Mas de (*) temos f(\left \lfloor \dfrac{1}{2} \right \rfloor)=f(0)=f(\dfrac{1}{2})=0 logo:

f(1)=0

Porém \left \lfloor f(1) \right \rfloor=1=0, absurdo!! E este caso não possui soluções. Vejamos que não foi tão difícil 🙂 e com as próximas técnicas presentes neste material iremos destruir problemas de equações funcionais, agora iremos introduzir uma grande técnica matemática: a indução.

  1. Indução:

Uma das técnicas mais utilizadas no mundo da matemática também está presente aqui. Basicamente a ideia é provarmos dentro dos \mathbb{N}, onde podemos tentar conseguir o f(n+1) a partir do f(n) e depois estender para os \mathbb{Q} usando a própria equação. O passo de provarmos dos \mathbb{Q} para os \mathbb{R} é um pouco mais complexo e iremos resumir com o fato de que basta provar que a função é contínua ou monótona (crescente ou decrescente no intervalo), porém explicaremos melhor dentro do exemplo a seguir.

Exemplo 1:

(Cauchy) Encontre todas as f:\mathbb{R}\rightarrow\mathbb{R} não constantes tais que:

f(x+y)=f(x)+f(y) (1)

e f(xy)=f(x)f(y) (2)

Solução:

Vejamos primeiramente que por (1) temos f(0)=2f(0) colocando x=y=0, logo f(0)=0. Agora vejamos que por (2) temos f(1)=f(1)^2 colocando x=y=1, logo f(1)=1 ou f(1)=0, se f(1)=0 então por (2) colocando y=1 temos f(x)=f(x)f(1)=0 para todo x real e f é constante, absurdo, pois pelo enunciado queremos achar todas as f não constantes. Portanto f(1)=1 e podemos começar a indução.

Colocando y=1 em (1) então f(x+1)=f(x)+1 e então podemos aplicar nossa indução:

Base: f(0)=0 e f(1)=1.

Hipótese: Suponha que f(n)=n para n natural.

Passo Indutivo: Sabendo que f(x+1)=f(x)+1, colocando x=n:

f(n+1)=f(n)+1=n+1

Então a indução segue e f(x)=x para todo x natural. Como f(x+1)=f(x)+1, então colocando x=-1 então f(-1+1)=f(0)=f(-1)+1 logo f(-1)=-1. Usando (2) vemos que f(-x)=f(x)f(-1)=-f(x), logo se x é natural obtemos que f(-x)=-x e segue que f(x)=x para todo x inteiro.

Começamos nos \mathbb{N}, passamos para os \mathbb{Z}, agora o próximo passo são os \mathbb{Q}. Sabemos que todo número racional pode ser escrito da forma \dfrac{p}{q}, onde p e q são inteiros. Usando deste fato e colocando x=\dfrac{p}{q} e y=q em (2) temos:

f(p)=f(\dfrac{p}{q})f(q)

Então aqui vem o truque: como p e q são inteiros e sabemos que f(x)=x para os inteiros então:

p=f(\dfrac{p}{q})\cdot q

f(\dfrac{p}{q})=\dfrac{p}{q}

E podemos afirmar que f(x)=x para todo x racional. Aqui as coisas começam a ficar um pouco mais complexas, provaremos que f é monótona crescente, ou seja, se x data-recalc-dims=y" /> então f(x)\ge f(y). Por (2) sabemos que f(x^2)=f(x)^2 colocando y=x e como todo número real positivo pode ser escrito como um quadrado de um número dentro dos reais então isto significa que se x é real positivo então f(x)\ge 0. Logo considerando \epsilon um real positivo, se fizermos y=\epsilon em (1) temos:

f(x+\epsilon)=f(x)+f(\epsilon)

Mas como \epsilon é positivo então f(\epsilon)\ge 0, logo:

f(x+\epsilon)=f(x)+f(\epsilon)\ge f(x)

Como \epsilon pode ser qualquer valor positivo, então x+\epsilon data-recalc-dims=x" /> implica que f(x+\epsilon)\ge f(x) e então a função é monótona crescente como queríamos. Agora iremos explorar a densidade dos racionais nos reais. É conhecido que entre quaisquer dois reais, existe um racional entre os mesmos. Usando deste fato, peguemos um x real fixado, então:

se q_1, q_2, q_3, ... é uma sequência estritamente crescente de racionais onde \forall i temos que q_i<x, logo f(x)\ge f(q_i) \forall i;

se p_1, p_2, p_3, ... é uma sequência estritamente decrescente de racionais onde \forall i temos que p_i data-recalc-dims=x" />, logo f(p_i)\ge f(x) \forall i;

Temos que \forall i vale que f(p_i) \ge f(x) \ge f(q_i) \Rightarrow p_i \ge f(x) \ge q_i e colocando i como um valor muito alto, tendendo ao infinito (poderíamos ser mais formais com limite, mas creio que não seja necessário), vejamos que as sequências irão se aproximar muito de x, onde se f(x)=k e x\ne k teremos que ou a sequência de p ou de q irá ultrapassar k, pelo fato de que sempre há um racional entre dois reais e então teremos um absurdo na equação p_i \ge f(x) = k \ge q_i. Logo f(x)=x para todo x real e facilmente podemos ver que esta função satisfaz nosso sistema.

Observação: Apesar de muito complexo e bem mecânico, recomendo o leitor a memorizar os passos, pois na grande maioria dos casos, a indução é feita de forma parecida. Há também outra técnica mais sotisfiticada aliada a indução chamada Base de Hamel, mas por ser bem complexa, acreditamos que possa ficar para outro material sua explicação.

  1. Substituições Simples:

Sempre coloque x=0 ou y=0 ou x=y quando puder e tente achar o f(0), já que o mesmo pode ajudar nos próximos passos do problema. Caso você não consiga achar f(0) isso se deva ao fato de que a solução possui alguma constante qualquer somada, por exemplo f(x)=x+c para algum c, neste caso procure colocar substituições mais sofisticadas como x=f(w) para algum w ou tente fazer com que apareçam expressões iguais nos dois lados para serem canceladas. Caso nada disso ainda der certo, é hora de começar a ler este guia! Segue um exemplo para nos aquecermos:

Exemplo 2:

Encontre todas as funções f:\mathbb{R}\rightarrow\mathbb{R} tais que:

f(x\cdot f(y))=f(xy)+x

Solução:

Primeiramente, em toda equação funcional sempre precisamos testar as variáveis mais óbvias como x,y=0,1, pois estes são os passos iniciais que nos sugerem diversas dicas para nossa solução, como dito antes e a partir destes podemos gerar hipóteses de funções que possam funcionar e trabalhar para mostrar que elas de fato funcionam. Iremos demonstrar o poder dos passos básicos neste exemplo:

Colocando y=0 na equação original temos:

f(x\cdot f(0))=f(0)+x (1)

Colocando x=f(0) na equação original temos:

f(f(0)\cdot f(y))=f(f(0)\cdot y)+f(0) (2)

Agora substituindo x por f(y) em (1):

f(f(y)\cdot f(0))=f(0)+f(y) (3)

E de (1) e (3), como os lados esquerdos são iguais, então:

f(f(0)\cdot y)+f(0)=f(0)+f(y)

Mas de (1) novamente temos que f(y\cdot f(0))=f(0)+y e juntando com a equação acima, sabemos que:

f(0)+y+f(0)=f(0)+f(y)

f(y)=y+f(0) (4)

Substituindo em (1) temos que de (4):

x\cdot f(0)+f(0)=f(0)+x

x\cdot f(0)=x

f(0)=1

Portanto f(x)=x+1 para todo x real. Testando vemos que de fato esta função funciona.

  1. Simetria:

Podemos usar do fato das equações funcionais serem simétricas de apenas um lado da igualdade a nosso favor. Sempre atente para a troca do x pelo y e do y pelo x, vale lembrar que podemos forçar simetrias, mas isto veremos mais à frente.

Exemplo 3:

Encontre todas as funções f:\mathbb{R}\rightarrow\mathbb{R} tais que:

f(x+y)-f(x-y)=f(x)f(y).

Solução:

Para melhor visualização, coloquemos x como a e y como b na equação principal, então teremos:

f(a+b)-f(a-b)=f(a)f(b) (1)

Agora coloquemos x como b e y como a:

f(b+a)-f(b-a)=f(b)f(a) (2)

Utilizando do fato do lado esquerdo ser simétrico para x e y podemos igualar as equações (1) e (2) e então temos:

f(b+a)-f(b-a)=f(a+b)-f(a-b)

De onde tiramos que f(b-a)=f(a-b), fazendo a=0 temos f(b)=f(-b) para todo b real. Agora colocando x como a e y como -b na equação original temos:

f(a-b)-f(a+b)=f(a)f(-b)

Multiplicando por -1:

f(a+b)-f(a-b)=-f(a)f(-b) (3)

E vejamos que como os lados esquerdos das equações (1) e (3) são iguais então f(a)f(b)=-f(a)f(-b), e se f não é constante zero, temos que f(b)=-f(-b) para todo b real, mas então f(b)=f(-b)=-f(-b), absurdo. Logo f só pode ser constante igual a zero.

Primeiramente não pare por aqui, pode parecer difícil, porém com as outras ferramentas presentes nesse material, as equações funcionais serão bem mais tranquilas. Vale salientar que a escrita é importante na hora da prova, sempre numere as equações que você achar em ordem, facilita muito para o corretor. Agora, se você se sente seguro no conceito de equações funcionais e já tentou os problemas abaixo, vamos para a aula 02.

Problema 1:

(Nórdica/98) Encontre todas as f:\mathbb{Q}\rightarrow\mathbb{Q} tais que:

f(x+y)+f(x-y)=2f(x)+2f(y).

Problema 2:

Encontre todas as funções f:\mathbb{R}\rightarrow\mathbb{R} tais que:

2f(1-x)+1=xf(x).

Problema 3:

Determine todas as funções f:\mathbb{R}\rightarrow\mathbb{R} tais que:

f(f(x)+y)=f(x^2-y)+4f(x)y

Problema 4:

(Cauchy Eq. F. Aditiva) Encontre todas as f:\mathbb{Q}\rightarrow\mathbb{Q} tais que:

f(x+y)=f(x)+f(y).

Desafio: Mude \mathbb{Q} para \mathbb{R}.

Problema 5:

(USAMO/2002) Determine todas as funções f:\mathbb{R}\rightarrow\mathbb{R} tais que:

f(x^2-y^2)=xf(x)-yf(y).

Problema 6:

(IMO/2012) Encontre todas as f:\mathbb{Z}\rightarrow\mathbb{Z}, onde a+b+c=0 tais que:

f(a)^2+f(b)^2+f(c)^2=2f(a)f(b)+2f(b)f(c)+2f(c)f(a)

Problema 7:

Encontre todas as f:\mathbb{R}/{0,1}\rightarrow\mathbb{R} tais que:

f(x)+f(\dfrac{1}{1-x})=x.

Problema 8:

(Cingapura 1999) Encontre todas as f:\mathbb{R}\rightarrow\mathbb{R} tais que:

(x-y)f(x+y)-(x+y)f(x-y)=4xy(x^2-y^2).