Aula 1.14 - Hidrodinâmica e equações de continuidade

Escrita por Antônio Ítalo

Essa aula aborda os conceitos básicos de hidrodinâmica, que é um conteúdo que não está no programa da OBF, entretanto, já foi cobrada no ano de 2016 (Questão 12) na terceira fase do nível 2. Por esse motivo, abordaremos o básico de hidrodinâmica nessa aula. Para uma análise mais aprofundada, não necessária à nível da OBF, do que a apresentada aqui é recomendado ver o capítulo 2 do livro Curso de Física Básica 2 (Moysés Nussenzveig) ou a lista 3 do Foice que abordou esse assunto em diversas questões.

Regimes de escoamento

A hidrodinâmica estuda as características de um fluido em movimento, sendo assim, precisamos caracterizar esse movimento. A principal caracterização do movimento de um fluido é a respeito do tipo de escoamento: Estacionário ou turbulento. Antes de definirmos o que é cada tipo de escoamento devemos decidir qual a melhor maneira de caracterizar o fluido. Uma possível maneira e que será utilizada aqui é o método de Euler no qual olharemos para cada ponto do fluido e diremos qual a velocidade do fluido nesse ponto. Note que, no caso geral, a velocidade do fluido em um ponto definido pelo vetor \vec{r} é do tipo \vec{v}{(\vec{r},t)}. Ou seja, a velocidade em cada ponto do fluido pode variar com o tempo. No chamado escoamento estacionário temos que essa velocidade na realidade dependerá só da posição \vec{v}({\vec{r}}). Esse será o caso para o qual daremos atenção na maior parte do tempo ao longo dessa aula, pois qualqu\er tratamento do regime não estacionário (ou turbulento) demandaria o uso de cálculo vetorial. Note que como a velocidade não varia em função do tempo em cada ponto as outras características físicas do fluido também não variaram, como a densidade e a pressão por exemplo. Esses regimes estacionários serão estudados principalmente pelo uso das equações de continuidade, que serão o principal objeto de estudo dessa aula.

Continuidade da massa e vazão

Em um regime estacionário devemos ter dentro de qualquer volume uma quantidade fixa de massa, por conta disso definiremos uma grandeza chamada vazão. A vazão é definida para uma superfície e indica a massa por unidade de tempo que passa pela superfície. Também pode-se definir uma vazão referente ao volume, entretanto, a vazão a qual no referiremos aqui será sempre a de massa. O principal motivo pela qual a vazão é definida é para facilitar o enunciado da equação de continuidade da massa. De uma maneira geral, pode-se afirmar que ao longo de uma superfície fechada temos:

Z=-\dfrac{dm}{dt}

Onde Z é a notação que será utilizada aqui para simbolizar a vazão. Note que m é a massa contida no volume limitado pela nossa superfície fechada e \dfrac{dm}{dt} é a derivada da massa em relação ao tempo (Se não possuir conhecimento básico de cálculo pode pensar em dm como um \Delta m pequeno e dt um \Delta t pequeno). Note também que nesse caso definimos que a vazão é positiva quando o fluido está saindo do nosso volume. No caso estacionário, nós teremos:

\dfrac{dm}{dt}=0 \Rightarrow Z=0

Tudo bem, mas como calculamos a vazão ao longo de uma certa superfície e para quê ela será útil? Para calcular a vazão de uma superfície qualquer devemos calcular a vazão em uma superfície infinitesimal dA e integrar (somar) ao longo de toda a superfície. Para calcular a vazão por uma superfície infinitesimal analisemos o movimento do fluido próximo a essa superfície entre dois instantes t e t+dt:

Teremos então um cilindro de volume:

dV_{ol}=dA\,dx

dV_{ol}=V\cos\big({\theta}\big)dAdt

dZ=\rho V\cos\big({\theta}\big)dA

Se definirmos um vetor área perpendicular à superfície teremos:

dZ=\rho \vec{V} \cdot d{\vec{A}}

Z={\displaystyle \int_{S} \rho \vec{V} \cdot d{\vec{A}}}

Não é necessário se preocupar com essa integral, pois à nível de OBF não será necessário calculá-la. Vejamos a seguir um exemplo prático de como podemos utilizar o conceito de vazão.

Exemplo 1:

Um fluido incompressível está realizando um escoamento estacionário da esquerda para a direita na seguinte figura:

Sabendo que ao longo das áreas A_{1} e A_{2} a velocidade do fluido é constante e perpendicular à essas superfícies, determine a relação entre as velocidades do fluido em 1 e em 2. Considere que essa figura é aberta somente nas áreas A_{1} e A_{2}.

Solução:

Nesse caso, devemos perceber alguns detalhes:

  1. O fluido é incompressível, ou seja, sua densidade é constante.
  2. Como o fluido está no escoamento estacionário: Z=0

Dessa forma, como a velocidade é constante ao longo da área, além de ser perpendicular à área, temos:

\rho A_{2}V_{2}-\rho A_{1}V_{1}=0

\dfrac{V_{1}}{V_{2}}=\dfrac{A_{2}}{A_{1}}

Esse resultado no diz então que em regiões em que a área pelo qual nosso fluido escoa é maior ele percorre com menor velocidade.

Linhas de Velocidade

Um conceito interessante ao se estudar hidrodinâmica é o de linhas de velocidade, análogo ao conceito de linhas de campo na eletrostática e magnetostática. Basicamente as linhas de velocidade são linhas que indicam a trajetória que uma partícula faria no fluido se o escoamento permanecesse estacionário naquele estado. De outra forma, pode-se dizer que as linhas de velocidade são linhas desenhadas de forma que sua tangente aponte sempre na direção da velocidade do fluido naquele ponto. Note que regiões em que as linhas de velocidade são mais densas temos uma maior velocidade do fluido, pois as linhas de velocidade não podem simplesmente desaparecer. O desenho dessas linhas de velocidade pode dar uma noção intuitiva sobre certos escoamentos. Recomenda-se que faça o esboço das linhas de velocidade do exemplo anterior.

Continuidade da Energia e equação de Bernoulli

Além da massa em certa região permanecer constante em uma região de um escoamento estacionário, devemos ter também uma continuidade análoga para a energia. Tome por exemplo a figura do exemplo 1. Se observarmos a massa que sai pela área A_{2} durante um tempo dt temos que as forças devido às pressões realizam um trabalho nessa massa igual à:

dW=P_{1}A_{1}\, dx_{1}-P_{2}A_{2}\, dx_{2}

dW=\big(P_{1}A_{1}V_{1}-P_{2}A_{2}V_{2}\big)dt

Sendo que esse trabalho deve ser igual à energia ganha pela massa dm que passa através desse tubo no intervalo dt, definamos u como a energia por unidade massa, temos então:

(u_{2}-u_{1})dm=\big(P_{1}A_{1}V_{1}-P_{2}A_{2}V_{2}\big)dt

u_{2}-u_{1}=\dfrac{P_{1}A_{1}V_{1}}{Z}-\dfrac{P_{2}A_{2}V_{2}}{Z}

Sendo que Z=\rho_{1}A_{1}V_{1}=\rho_{2}A_{2}V_{2}, logo:

u_{2}-u_{1}=\dfrac{P_{1}}{\rho_{1}}-\dfrac{P_{2}}{\rho_{2}}

Ou seja:

\dfrac{P}{\rho}+u=cte

Essa é a equação de continuidade da energia, o caso particular mais importante da mesma será trabalhado a seguir, entretanto, vejamos um exemplo antes. É importante notar que essa equação vale para um filete de corrente somente, ou seja, essa constante pode ser diferente para diferentes filetes de corrente.

Exemplo 2:

Um gás ideal com capacidade térmica à pressão constante por unidade de massa c_{p} (ver Aula 2.3 e Aula 2.2) está realizando um escoamento estacionário. Prove que ao longo de um filete de corrente vale:

\dfrac{V^{2}}{2}+gy+c_{p}T=cte

Onde V é a velocidade do gás naquele ponto e os outros símbolos têm seus significados convencionais.

Solução:

Nesse caso, temos que a energia por unidade de massa será:

\dfrac{V^{2}}{2}+c_{v}T+gy

E, pela equação de Clapeyron:

\dfrac{P}{\rho}=\dfrac{RT}{M}

Onde M é a massa molar do gás. Note que, da Relação de Mayer:

c_{p}=c_{v}+\dfrac{R}{M}

Logo, da continuidade da energia:

\dfrac{RT}{M}+\dfrac{V^{2}}{2}+gy+c_{v}T=cte

Portanto:

\dfrac{V^{2}}{2}+gy+c_{p}T=cte

Como queríamos demonstrar.

 

Equação de Bernoulli

Um caso particular da equação da continuidade da energia é quando as únicas energias envolvidas são a energia potencial gravitacional e a energia cinética, sendo assim, teremos:

\dfrac{P}{\rho}+\dfrac{V^{2}}{2}+gy=cte

Além disso, o fluido também é considerado incompressível pois se fosse compressível haveria uma energia relacionada com a variação da densidade, como no gás ideal do exemplo anterior. Temos então a equação de Bernoulli:

P+\dfrac{\rho V^{2}}{2}+\rho gy=cte

Essa provavelmente é a equação da hidrodinâmica mais provável de ser cobrada à nível de OBF, perdendo talvez somente para a equação de continuidade da massa estudada anteriormente. Algo interessante de se notar é que ao fazer V=0 a equação de Bernoulli se reduzirá ao teorema de Stevin estudado na aula de Hidrostática. Algo importante a se ressaltar é que apesar de termos provado a equação de Bernoulli somente ao longo de um filete de corrente ela é válida para dois filetes distintos supondo que o escoamento é irrotacional. A prova disso pode ser encontrada na questão 6 da lista 3 do Foice. Alguns exemplos da aplicação de Bernoulli serão mostrados a seguir:

Exemplo 3:

Um copo de diâmetro constante D possui um furo de diâmetro d<<D à uma profundidade h em relação à superfície do fluido. Calcule a velocidade v do fluido que sai pelo furo considerando que o escoamento é aproximadamente estacionário e o fluido é incompressível.

Solução:

Primeiramente, devemos escrever a continuidade de massa para o escoamento:

\rho A' V=\rho A v

\pi \dfrac{D^{2}}{4} V =\pi \dfrac{d^{2}}{4} v

V D^{2}=v d^{2}

V=\dfrac{d^{2}}{D^{2}}v

Onde chamamos de V a velocidade do fluido na superfície do copo. Escrevamos agora a equação de Bernoulli para o nosso fluido:

\rho g y + \dfrac{\rho V^{2}}{2} + P_{0}=\rho g \big(y-h) + \dfrac{\rho v^{2}}{2} + P_{0}

Sendo P_{0} a pressão atmosférica que é a mesma tanto na superfície do copo quanto no furo.

g h =\dfrac{v^{2}-V^{2}}{2}

2gh=v^{2}\Big(1-\dfrac{d^{2}}{D^{2}}\Big)

v=\sqrt{2gh}\sqrt{\dfrac{1}{1-\dfrac{d^{2}}{D^{2}}}}

Como foi dito que d<<D, podemos realizar algumas aproximações para tornar nossa resposta mais simples:

v=\sqrt{2gh}

Exemplo 4:

Utilize a equação de Bernoulli para oferecer uma explicação qualitativa para o chamado efeito Magnus, ou seja, que explique o desvio sofrido por uma bola com um movimento translacional e rotacional em um fluido. Esse efeito pode ser observado com frequência em partidas de futebol.

Solução:

Devemos ressaltar que esse efeito ocorre em um escoamento não estacionário e nem um pouco ideal, mas é possível fazer uma análise qualitativa do fenômeno a partir da equação de Bernoulli. Analisaremos o fenômeno no referencial em que a bola está somente rotacionando. Nesse referencial o que ocorre é que o fluido está escoando enquanto é bloqueado pela esfera, o que faz o fluido contornar a mesma. O bloqueio do fluido pela esfera é responsável pela força de resistência do ar convencional oposta à velocidade da esfera, entretanto não explica uma força em outra direção. Para explicar o efeito Magnus devemos notar que a rotação da esfera arrasta o ar devido ao atrito com a superfície da esfera aumentando a velocidade do mesmo em um lado e diminuindo em outro. Da equação de Bernoulli sabemos que essa diferença de velocidade gerará uma diferença de pressão o que causará uma força resultante na bola em uma direção perpendicular ao movimento, o que ocasiona no desvio da nossa bola.