Noções de Relatividade Geral

Por Fabrizio Ferro

As Equações de Campo de Einstein em toda sua glória são incrivelmente gerais. Elas se aplicam a qualquer distribuição de energia, esteja ela rotacionando, em constante movimento, acelerando, alongando, torcendo ou dançando; Enfim, incrivelmente gerais. O preço dessa generalidade é uma leve sofisticação matemática: tensores e geometria diferencial. Para tornar algumas noções de relatividade geral um pouco mais acessíveis, não lidaremos nesta seção com as equações de campo de Einstein, e sim com uma das soluções dessa equação: A Métrica de Schwarzschild, que descreve a métrica do espaço-tempo ao redor de centros de “atração gravitacional” não rotacionais. O uso dessa métrica requer apenas cálculo diferencial básico, mas pode responder qualquer questão sobre o espaço-tempo ao redor da Terra, do Sol, e de buracos negros.

Referencial Inercial Local

A relatividade especial pode ser aplicada apenas em um referencial inercial. Em um referencial inercial, um objeto largado em repouso permanece em repouso e duas partículas separadas não possuem aceleração relativa. Um referencial inercial pode, por exemplo, ser estabelecido dentro de um vagão de trem. Imagine um vagão de trem em uma dado instante a uma certa altura em relação a superfície da terra. Não importa como ele parou lá, apenas que ele esteja lá. Vamos analisar, então, dois objetos dentro do vagão de trem, separados por uma certa distância. No intervalo do espaço-tempo entre o evento da largada e o evento da colisão, o vagão foi um referencial inercial, e nenhum movimento relativo  entre os objetos foi percebido.

Bom, quase nenhum movimento. A região limitada não pode ser muito grande ou cair por muito tempo sem que movimentos relativos sejam detectados entre o par de partículas dentro da região (ver figura f). Tal movimentação, em uma descrição Newtoniana, é resultado da força gravitacional diferencial (i.e. força de maré). Na relatividade geral, tal movimentação é evidência da curvatura do espaço-tempo naquela região.

 

Figura 1: Aceleração relativa entre o par de partículas limitadas pelo vagão. (Adaptado de J. Wheeler, Spacetime Physics.)

Conforme caímos na direção do centro de atração, não há como evitarmos as acelerações relativas. Não há nada que se possa fazer para eliminá-las completamente. Podemos, entretanto, limitar os eventos no espaço-tempo de forma que as “acelerações de maré” possam ser desprezadas (se não completamente ridicularizadas).

Em quase qualquer lugar no universo podemos definir um referencial com dimensões pequenas o suficiente, durante um tempo curto o suficiente, de forma que ele seja inercial. Simplesmente ao limitar a região do espaço-tempo em que a análise será feita, podemos estabelecer um referencial inercial. Em outras palavras, sempre podemos definir um referencial inercial local. Localmente, qualquer região do espaço-tempo é um referencial inercial.

Não precisamos cair em direção a Terra para poder estabelecer um referencial inercial local. Se jogue em direção a um buraco negro, conforme você se aproxima de seu centro, fica cada vez mais difícil ignorar a “aceleração de maré”, mas mesmo assim, é possível definir um referencial inercial local. Análise o movimento de um par de partículas em uma caixa de 1 m durante 1 s, houve movimento relativo ? Diminua o intervalo do espaço-tempo analisado. Perto do centro do buraco negro talvez seja necessário limitar os eventos analisados a uma “caixa” de 1 pm durante 1 ps, mas mesmo assim, é possível estabelecer um referencial inercial local, um referencial em que partículas seguem Weltlines (Worldlines) retas. Os únicos lugares no universo em que isso não se torna possível são nos centros de buracos negros, onde não é possível estabelecer um referencial que seja inercial.

Geodésicas

A Física é simples quando analisada localmente. E localmente, todas as Weltlines são tão retas quanto elas poderiam ser. O nome técnico da Weltline mais reta possível é geodésica. Localmente, todas partículas seguem geodésicas. Um satélite está orbitando a Terra, e em um dado instante ele pergunta para o espaço-tempo: “para onde ir?”; “Reto!”, responde o espaço-tempo. Nada poderia ser mais simples do que isso. Na primeira tentativa de criar uma teoria da gravitação, Einstein eliminou completamente a gravidade. Usando a frase popular de John A. Wheeler (O mesmo homem que cunhou o termo “buraco negro” e disse que buracos negros “não possuem cabelos”): Massa diz para o espaço-tempo como curvar, e o espaço-tempo curvo diz para matéria como mover. E o que o espaço-tempo diz para a matéria em cada ponto? “Siga a Weltline mais reta possível!”, “Siga uma geodésica!”.

Esplêndido! Mas e se quisermos descrever dois eventos muito separados no espaço-tempo para que possam ser descritos em um único referencial inercial? Dois pontos opostos na órbita de um cometa por exemplo? Pontos separados por muitos anos e trilhões de metros. Em uma região limitada do espaço-tempo podemos definir um referencial inercial local de forma que o cometa siga uma geodésica, mas não podemos descrever sua órbita usando um único referencial inercial global, da mesma forma que não podemos mapear a terra com uma única folha plana. Mas podemos dividir a órbita do cometa em diversos referenciais inerciais locais, assim como podemos dividir o globo em diversos mapas planos. Para descrever movimentos que excedem um único referencial inercial, devemos recorrer a uma teoria de espaço-tempo curvo.

Analogia da Planolândia

Vamos imaginar agora os habitantes de um espaço topológico. Mas não qualquer espaço topológico, e sim uma 2-variedade topológica (i.e. uma superfície). Mas não qualquer 2-variedade topológica, e sim uma 2-variedade topológica de curvatura gaussiana constante e positiva. De outra forma, habitantes de uma esfera. Estes habitantes são bidimensionais, e sempre estão na superfície de sua esfera. Existe apenas um detalhe: Os habitantesque vão dos mais simples triângulos até as mais excêntricas elipsesnão sabem que eles vivem em uma esfera, e por isso chamaram seu mundo de planolândia. Simplesmente nunca ocorreu aos Planolandios que eles estavam vivendo em um espaço curvo.

Um certo dia entretanto, o triângulo Alice e o quadrado Bob estão inicialmente separados por uma distância {\xi}_{0} quando começam a caminhar perfeitamente paralelos. Ambos nunca desviam de seus caminhos iniciais. Mas durante a longa caminhada, eles começam a perceber que estavam se aproximando uns dos outros, por mais paralelo que fossem seus caminhos iniciais. Eles se aproximam cada vez mais, até o instante em que colidem. Os planolandios explicam esta aceleração relativa através de uma “força gravitacional”, uma força que age a distância. 

Os planolandios repetem o experimento da caminhada com diversos polígonos, de diversas massas e diversas composições. Eles concluem coisas estranhas, até mesmo obscuras, como: “A razão da massa inercial pela massa gravitacional é a mesma para todos os objetos, e vale 1”. Enquanto isso,  nós sabemos que o motivo da aceleração relativa não é uma “força gravitacional” misteriosa, e sim a geometria do espaço curvo em que eles se encontram. Curvatura do espaço, e nada mais, é necessário para descrever a trajetória dos planolandios. Assim como curvatura do espaço-tempo, e nada mais, é necessário para descrever as Weltlines dos objetos em nosso universo.

Vamos agora analisar como a curvatura de uma superfície manifesta uma “aceleração da separação” de duas geodésicas vizinhas. Para facilitar, vamos analisar duas geodésicas originalmente paralelas, em uma esfera de raio a. Inicialmente, as geodésicas estão separadas por uma distância {\xi}_{0}, chamada de “desvio inicial da geodésica”.

 

Figura 2: Par de geodésicas quaisquer na superfície de uma esfera. (Adaptado de C. Misner, K. Thorne, J. Wheeler; Gravitation)

Como mostra a figura f, as geodésicas não são mais paralelas quando percorremos uma distância s, e a separação {\xi} será:

\xi={\xi}_{0}\ \cos{\phi}={\xi}_{0}\ \cos{\frac{s}{a}}   (1)

Derivando (1) em respeito a s, obtemos:

\frac{d\xi}{ds}=-{\xi}_{0}\ \sin{\frac{s}{a}}\left( \frac{1}{a} \right)

Derivando mais uma vez em respeito a s:

\frac{d^{2}\xi}{{ds}^2}=-{\xi}_{0}\ \cos{\frac{s}{a}}\left( \frac{1}{a^2} \right)   (2)

Podemos substituir (1) em (2), obtendo:

\frac{d^{2}\xi}{{ds}^2}=-\left( \frac{1}{a^2} \right)\ \xi

\frac{d^{2}\xi}{{ds}^2}+\left( \frac{1}{a^2} \right)\ \xi=0

Mas podemos generalizar ainda mais esta equação, basta perceber que, para uma esfera, \frac{1}{a^2} é a curvatura gaussiana da superfície.

\boxed{\frac{d^{2}\xi}{{ds}^2}+R\ \xi=0}   (3)

Esta, é a chamada “equação do desvio da geodésica”. E R é a curvatura Gaussiana da superfície em um dado ponto. A esfera, por exemplo, é uma superfície de curvatura Gaussiana positiva e constante, pois em cada ponto de sua superfície, R tem o mesmo valor positivo ( \frac{1}{a^2}). Para outras superfícies, a mesma equação (3) se aplica, mas R pode variar de um ponto para outro. É interessante perceber que, em uma superfície de R constante, a equação (3) se assemelha a um movimento harmônico simples.

Para visualizarmos a teoria da relatividade geral em toda sua glória, teríamos que mergulhar em tensores e geometria diferencial. Mas como já foi mencionado, focaremos nas soluções das equações de campo de einstein. E poderemos prontamente aplicá-las a buracos negros.

Unidades Geometrizadas

Durante esta seção, irei adotar as chamadas “Unidades Geometrizadas”, nas quais G=1 e c=1. Por que? Primeiro, é uma forma elegante de dizer que massa está conectada a geometria. Segundo, é uma forma de ocultar os G e c que encheriam as equações de outra forma. G e c são meros fatores de conversão.

1=c=2.997930\times 10^{8}\ m/s

1=G/c^2=0.7425\times 10^{-27}\ m/kg

Por Exemplo:

{M}_{\odot}=1.989\times 10^{30} kg

{M}_{\odot}=(1.989\times 10^{30} kg)\times (G/c^2)=1.477\times 10^{3}m

Coordenada-r

Suponha que você está orbitando um buraco-negro. Como você deveria medir o tamanho da casca esférica em que você se encontra? Deveríamos medir a distância direta entre a casca esférica e seu centro? Isso não seria possível, queremos evitar a singularidade no centro do buraco negro. Ao invés disso, você mede a circunferência da casca esférica em que você se encontra e divide por 2\pi. O “raio” produzido por este método é chamado de raio de coordenada, circunferência reduzida ou simplesmente coordenada-r, e é representado por r.

Mas a distância direta entre duas cascas esféricas não deveria ser igual a diferença entre as duas circunferências reduzidas? Se o espaço fosse euclidiano, sim. Mas no geral, não.

Métrica de Schwarzschild

O próprio Einstein ficou surpreso em descobrir que suas equações de campo admitiam soluções exatas, ele mesmo só tinha conseguido obter soluções aproximadas para calcular o avanço do periélio de mercúrio. No final de 1915, no mesmo ano em que a teoria da relatividade geral foi publicada, Karl Schwarzschild estava servindo ao exército alemão no front Russo durante a Primeira Guerra Mundial. Em uma carta para Einstein de 22 de dezembro de 1915, Schwarzschild elaborou a primeira solução exata das equações de campo. Einstein escreveu em resposta: “Eu li o seu artigo com extremo interesse. Eu não esperava que um poderia formular a solução exata desse problema de maneira tão simples.”.

Um dos motivos da simplicidade da solução foi o uso de coordenadas polares. Para um espaço-tempo plano, a métrica em coordenadas polares é dada por:

\boxed{{d\tau}^2={dt}^2-{dr}^2-r^2({d\theta}^2+{\sin}^2(\theta)\ {d\phi}^2)}   (4)

Mas como esta métrica será alterada nas proximidades da Terra, do Sol ou mesmo de um buraco negro? A resposta está na Métrica de Schwarzschild.

\boxed{{d\tau}^2=\left( 1-\frac{2M}{r} \right){dt}^2-\frac{{dr}^2}{\left( 1-\frac{2M}{r} \right)}-r^2({d\theta}^2+{\sin}^2(\theta)\ {d\phi}^2)}   (5)

Os ângulos \theta e \phi possuem o mesmo significado tanto na geometria de Schwarzschild quanto na geometria Euclidiana. r é a coordenada-r e t é o tempo medido longe do centro de atração (i.e. r\rightarrow \infty). A métrica de Schwarzschild fornece uma descrição completa do espaço-tempo ao redor de qualquer corpo massivo com simetria esférica, neutro e não rotacional. Qualquer característica (não quântica) do espaço-tempo curvo ao redor desse tipo de buraco negro é descrito pela métrica de Schwarzschild.

O primeiro questionamento que deve ser feito quando se analisa a métrica de Schwarzschild é: O que ocorre quando r\rightarrow 2M? O termo temporal tende a zero, e o termo radial aumenta sem limites. Esse valor especial da coordenada radial é chamado de raio de Schwarzschild ou raio do Horizonte de Eventos. A casca esférica em r=2M é chamada de superfície de Schwarzschild ou horizonte de eventos. Tudo pode passar por esta superfície, mas nada pode voltar.

Vamos analisar mais algumas características interessantes da equação (5). Como esperado, a equação (5) se reduz à equação (4) quando r\rightarrow \infty, longe do centro de atração o espaço-tempo é plano. Também é possível perceber que a equação (5) se reduz à equação (4) quando M\rightarrow 0, o espaço-tempo é plano se o centro de atração tiver massa desprezível.

Parte Espacial da Métrica de Schwarzschild

Seria interessante conseguir visualizar o espaço-tempo ao redor de um buraco negro. Mas se visualizar mentalmente um pseudo espaço quadridimensional euclidiano requer um esforço razoável, imagine representar um pseudo espaço quadridimensional curvo em uma tela bidimensional. Na relatividade geral, qualquer representação do espaço-tempo é parcial: iluminando algumas características, e distorcendo outras.

O problema é o seguinte: 3 dimensões espaciais, uma “pseudo dimensão” temporal e uma dimensão “não existente”, mas que é necessária para representar a curvatura. Ou seja, 5 dimensões representadas em uma tela bidimensional. Para conseguirmos visualizar algum aspecto do espaço-tempo em uma folha será necessário fazer o uso de representações parciais. Então como fazemos isso? Podemos “congelar o tempo” (i.e. dt=0), nos limitando a representar somente a parte espacial da métrica de Schwarzschild. De 5 dimensões fomos para 4. Entretanto, na ausência de perturbações, o movimento de objetos ao redor de um centro de atração (e.g. buraco negro) é dado em um único plano. De 4 dimensões fomos para 3, e 3 é um bom número de dimensões para serem representadas em uma folha. Congelando o tempo (dt=0) e nos limitando ao plano espacial que passa pelo centro de atração (d\theta=0; \sin\theta=0), a métrica de Schwarzschild é reduzida para a seguinte forma:

{d\sigma}^2=\frac{{dr}^2}{\left( 1-\frac{2M}{r} \right)}+r^2{d\phi}^2   (6)

O fator de curvatura (1-\frac{2M}{r} ) sempre será menor do que 1, consequentemente a distância própria (d\sigma) sempre será maior do que a circunferência reduzida (dr). Ou seja, a distância medida diretamente no espaço-tempo entre duas cascas esféricas vizinhas e concêntricas é maior do que a diferencia das circunferências reduzidas. Este fato fica evidente na figura f, que representa o caso especial da equação (6).

 

Figura 3: Geometria espacial de um plano que corta o centro do buraco negro. (Adaptado de J. Wheeler, Exploring Black Holes)

O diagrama da figura f é uma representação da geometria espacial de um plano que corta o centro do buraco negro. Mas note que “congelamos o tempo”, o diagrama não retrata nada se movendo. Portanto, esta representação não nos diz como será o movimento de objetos ao redor do centro de atração. A representação é parcial. E representações parciais são o máximo que conseguimos fazer com todas as nossas limitações dimensionais.

Parte Temporal da Métrica de Schwarzschild

Vamos agora considerar o caso em que dois eventos ocorrem no mesmo lugar. Neste caso, dr=0; d\theta=0; \sin\theta=0 e d\phi=0. E a equação (5) se reduz à seguinte forma:

{d\tau}^2=\left( 1-\frac{2M}{r} \right){dt}^2   (7)

O fator de curvatura (1-\frac{2M}{r} ) sempre será menor do que 1, consequentemente, o tempo próprio sempre será menor do que o tempo t medido quando r\rightarrow\infty. Ou seja, o observador longe do centro de atração vai medir um maior tempo entre dois eventos. Uma onda eletromagnética possui um período de oscilação característico, portanto, um sinal eletromagnético enviado para um observador remoto sofrerá um redshift, e um sinal eletromagnético enviado para um observador próximo ao centro de atração sofrerá um blueshift.

É interessante notar que, conforme r\rightarrow 2M; t\rightarrow\infty. Um pulso enviado na superfície de Schwarzschild tem seu período “esticado” para o infinito, e um pulso com período infinito não é um pulso. Nenhum sinal pode ser enviado da superfície de Schwarzschild.