Princípio da Relatividade e o Intervalo

Por Fabrizio Ferro

Teoria da Relatividade talvez não tenha sido a melhor escolha de nome. Ele faz com que o campo pareça ser dedicado a mera transformação de referenciais, escondendo a invariância do espaço-tempo. Na verdade, foi Hermann Minkowski (professor de matemática de Einstein) que em 1908, 3 anos após a publicação de Zur Elektrodynamik bewegter Körper, anunciou a nova visão do espaço-tempo quadridimensional para o mundo. Nesta seção, para enfatizar a verdadeira união  que a teoria da relatividade propõe, vou adotar a sequência que parece ser mais lógica, e não necessariamente cronológica.

Eletromagnetismo e a Relatividade Galileana

Todos estamos familiarizados com o Princípio da Relatividade Galileana. Este , simplificadamente, acerta que as leis da mecânica clássica são as mesmas para todos observadores em movimento uniforme. Galileo Galilei formulou este princípio de forma simplificada, e a partir de observações cotidianas. Em seu livro Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo Galileu propôs o seguinte experimento: Se tranque em um navio com um amigo, borboletas e um peixe dentro de um aquário, quando o navio atinge sua velocidade máxima as borboletas continuam voando tranquilamente para todas as direções, o peixe nada para a frente de seu aquário com a mesma facilidade, e você não nota dificuldades ao arremessar uma bola para seu amigo. O princípio da relatividade de Galileu é simples, mas não simples o suficiente.

Vamos tomar nossa atenção agora para o que ocorreu no século XX após James Clerk Maxwell ter formulado a teoria moderna do eletromagnetismo. Das equações de Maxwell, podemos deduzir a existência de ondas eletromagnéticas que se propagam pelo vácuo com velocidade c=1/\sqrt{{\mu}_{0}{\epsilon}_{0}}. Mas de acordo com as transformações Galileanas esta velocidade não pode ser a mesma para diferentes referenciais em movimento uniforme, e efeitos eletromagnéticos não seriam os mesmos para diferentes observadores. Dessa forma, as equações de Maxwell não seriam preservadas na relatividade Galileana.

Princípio da Relatividade de Einstein

Albert Einstein deu o passo inovador de ser o mais simples e conservador possível. Em 1905, publicou Zur Elektrodynamik bewegter Körper (Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento), que seria então a base de toda a relatividade. O Princípio da Relatividade de Einstein diz o seguinte:

Todas as leis da física são as mesmas em todos referenciais inerciais.

Ou seja, uma vez que as leis da física foram estabelecidas em um referencial inercial, elas podem ser aplicadas sem modificação para todos referenciais inerciais. Tanto as formas matemáticas das leis quanto as constantes físicas que elas contêm são as mesmas em todos referenciais inerciais. Geralmente é introduzido um segundo postulado, que afirma que a velocidade da luz no espaço tem o mesmo valor c para todos referenciais inerciais. O princípio da invariância da velocidade da luz é uma consequência quase óbvia do princípio da relatividade, e portanto pode ser absorvida no mesmo.

Intervalo do Espaço-Tempo

Daqui em diante irei utilizar o conceito de evento. O evento pode ser definido como o local e o tempo em que ele ocorreu. Assim, um evento que ocorre em uma partícula é definido pelas 3 coordenadas espaciais da partícula e o tempo em que o evento ocorreu. Por isso, é geralmente útil a introdução de um espaço quadridimensional fictício no qual os eventos são representados por pontos. Neste espaço, partículas em movimento retilíneo-uniforme traçam linhas retas, chamadas de linhas de mundo. Minkowski chamou esse espaço quadridimensional de “Mundo”, Welt em alemão, e portanto chamou um ponto neste espaço de “ponto de mundo” (Weltpunkt) e a sequência de pontos de “linha de mundo” (Weltlinie).

Vamos agora considerar dois referenciais \mathcal{K} e \mathcal{K'} movendo com velocidade relativa constante. Os eixos das coordenadas espaciais foram escolhidos de forma com que os eixos X e X' coincidam, e os eixos Y e Z sejam paralelos aos eixos Y' e Z' respectivamente. O tempo nos referencial \mathcal{K} e \mathcal{K'} serão representados por t e t' respectivamente.

Vamos então deixar o primeiro evento ser a emissão de um fóton em um ponto ({x}_{1}, {y}_{1}, {z}_{1}, {t}_{1}) no sistema de referência \mathcal{K}. O segundo evento será o recebimento do sinal em um ponto ({x}_{2}, {y}_{2}, {z}_{2}, {t}_{2}) no sistema de referência \mathcal{K}. A distância espacial percorrida pelo sinal é {l}_{12}=[({x}_{2}-{x}_{1})^2+({y}_{2}-{y}_{1})^2+({z}_{2}-{z}_{1})^2]^{\frac{1}{2}}. Lembrando que estamos lidando com um pseudo espaço quadridimensional (o Welt), no qual o “deslocamento temporal” também é representado. Vamos pensar nisso por um instante. Neste exato momento, você provavelmente está parado lendo isso, o que significa que desde o último ponto final, 3 segundos se passaram no seu referencial.  Isso corresponde a um deslocamento de aproximadamente 900000000\ m (i.e. 3s\times c) no Welt. Voltando para nossa análise, sabemos que o nosso sinal, por se propagar na velocidade da luz, percorrerá uma distância espacial igual a sua “distância temporal”. Logo, podemos escrever:

{c}^{2}({t}_{2}-{t}_{1})^2-({x}_{2}-{x}_{1})^2-({y}_{2}-{y}_{1})^2-({z}_{2}-{z}_{1})^2=0

O primeiro e o segundo evento no sistema de referência \mathcal{K} podem ser representados pelos pontos ({x'}_{1}, {y'}_{1}, {z'}_{1}, {t'}_{1}) e ({x'}_{2}, {y'}_{2}, {z'}_{2}, {t'}_{2}), respectivamente. Como a velocidade da luz é a mesma em todos os referenciais, temos de maneira similar:

{c}^{2}({t'}_{2}-{t'}_{1})^2-({x'}_{2}-{x'}_{1})^2-({y'}_{2}-{y'}_{1})^2-({z'}_{2}-{z'}_{1})^2=0

Se ({x}_{1}, {y}_{1}, {z}_{1}, {t}_{1}) e ({x}_{2}, {y}_{2}, {z}_{2}, {t}_{2}) forem os pontos de quaisquer dois eventos, então podemos definir o intervalo entre esses dois eventos no Welt como:

{s}_{12}=[{c}^{2}({t}_{2}-{t}_{1})^2-({x}_{2}-{x}_{1})^2-({y}_{2}-{y}_{1})^2-({z}_{2}-{z}_{1})^2]^{\frac{1}{2}}

Então, do princípio da invariância da velocidade da luz, segue que se o intervalo entre dois eventos é zero em um referencial, ele será zero em todos os referenciais. Na verdade, é possível provar que qualquer intervalo entre dois eventos no “espaço-tempo” é invariante.

Se os dois eventos estiveram separados por uma distância “infinitesimal”, o intervalo ds entre eles será:

\boxed{ds^2={c}^{2}{dt}^{2}-{dx}^{2}-{dy}^{2}-{dz}^{2}}       (1)

Podemos então, de certa maneira, considerar o intervalo como a distância entre dois pontos no espaço quadridimensional fictício. Mas existe uma diferença entre a regra que diz como essa quantidade é formada e a regra da geometria euclidiana, os diferentes termos são somados com sinais diferentes. Essa geometria quadridimensional foi introduzida por Minkowski, e é pseudo euclidiana.

Vamos então considerar a relação entre os intervalos “infinitesimais” ds e ds' de dois sistemas de referência (\mathcal{K} e \mathcal{K'} por exemplo). Lembrando que já foi mostrado que se ds=0, então ds'=0. Assim, a relação entre ds e ds' deve ser da forma:

ds=a\ ds'       (2)

Perceba que não poderia haver termos adicionais na relação (2), se não a condição de ds=0 quando ds'=0 não seria satisfeita. Analisando um pouco mais, percebemos que a só poderia depender (se é que ele fosse depender de algo) da velocidade relativa entre os sistemas de referência. Se a dependesse das coordenadas ou do tempo a homogeneidade do espaço e do tempo seria violada, e se a dependesse da direção do movimento relativo, a isotropia do espaço seria violada. Vamos agora considerar três referenciais \mathcal{K}, {\mathcal{K}}_{1} e {\mathcal{K}}_{2}, sendo {V}_{1} e {V}_{2} as velocidades de {\mathcal{K}}_{1} e {\mathcal{K}}_{2} relativas a \mathcal{K}, podemos escrever:

ds=a({V}_{1}){ds}_{1}

ds=a({V}_{2}){ds}_{2}

Se {V}_{12} for a velocidade de {\mathcal{K}}_{2} relativa a {\mathcal{K}}_{1}, podemos escrever de forma similar:

{ds}_{1}=a({V}_{12}){ds}_{2}

Comparando todos os resultados, segue:

\frac{a({V}_{2})}{a({V}_{1})}=a({V}_{12})       (3)

Entretanto, {V}_{12} depende da orientação dos vetores \vec{{V}_{1}} e \vec{{V}_{1}} entre si. Mas a orientação dos vetores não aparece do lado esquerdo, e a fórmula só pode estar correta se a for constante (i.e. não depende da velocidade relativa), que é igual a 1 por (3). Esse argumento é sutil, mas crucial, então pondere um pouco se você nunca o viu. Um argumento muito similar a esse também é usado para obter a equação de Schrodinger independente do tempo, por exemplo. Voltando a análise principal, descobrimos que a=1, logo:

ds=ds'

E da igualdade dos intervalos “infinitesimais” segue a igualdade dos intervalos finitos:

\boxed{s=s'}       (4)

Acabamos de descobrir que o intervalo entre dois eventos é o mesmo em todos os referenciais inerciais (i.e. é invariante sob transformações de um referencial para outro). Intervalo é intervalo! É difícil, eu diria, ressaltar o quão fascinante este resultado é. Antes de qualquer coisa, vou introduzir a seguinte notação.

{t}_{2}-{t}_{1}=t

({x}_{2}-{x}_{1})^2+({y}_{2}-{y}_{1})^2+({z}_{2}+{z}_{1})=l

Então o intervalo entre dois eventos no referencial \mathcal{K} é:

s^2={c}^{2}{t}^{2}-l^2

Tempo Não Absoluto

Vamos rapidamente analisar uma hipotética situação de Luar e Anurb (que não possuem relação alguma com Raul e Bruna). Luar está em seu laboratório (referencial \mathcal{K}), enquanto Anurb está dentro de um foguete (referencial \mathcal{K'}). Quando Anurb passa com seu foguete pela entrada do laboratório, ela dispara uma faísca, esse será o evento 1. Mais adentro do laboratório Anurb dispara outra faísca, esse será o evento 2. Anurb é muito pequena, por isso ela e seu mini foguete não danificam o laboratório. O tempo entre os dois eventos no referencial de Luar foi t=30 nanosegundos, e a separação espacial no referencial de Luar foi l=6\ m. Portanto o intervalo vale:

s^2=c^2(30\times 10^{-9}\ s)^2-(6\ m)^2

s\approx 6.7\ m

Mas o intervalo é invariante, então podemos escrever:

s^2={c}^{2}{t}^{2}-l^2={c}^{2}{t'}^{2}-{l'}^{2}

Mas l'=0, pois o aparelho que produziu a faísca estava em repouso no foguete, e logo não teve deslocamento espacial no referencial do mesmo. Assim, podemos descobrir que t'\approx 22.3\ s. Menor do que o tempo no referencial \mathcal{K}. Podemos então reconhecer que o tempo e o espaço, isoladamente, não possuem muito significado, e que apenas uma certa união deles forma algo comum a todos referenciais. Minkowski começa sua obra Raum und Zeit dizendo que “A velha concepção de espaço por si só, e tempo por si só, devem reduzir a uma mera sombra, e um tipo de união dos dois será consistente com os fatos”.

Tempo Próprio

Como pode ser percebido na subseção anterior, em um sistema de referência conectado ao relógio, o relógio estará obviamente parado. Consequentemente, dl'=0 (i.e. dx'=dy'=dz'=0). Pela invariância do intervalo:

ds^2={c}^{2}{dt}^{2}-{dx}^{2}-{dy}^{2}-{dz}^{2}={c}^{2}{dt'}^{2}

Segue que:

dt'=dt\sqrt{1-\frac{dx^2+dy^2+dz^2}{{c}^{2}{dt}^{2}}}

Entretanto, a velocidade V do sistema \mathcal{K'} relativo a \mathcal{K} é:

V^2=\frac{dx^2+dy^2+dz^2}{dt^2}

Então:

dt'=dt\sqrt{1-\frac{V^2}{c^2}}=\frac{ds}{c}       (5)

Integrando a expressão:

{t'}_{2}-{t'}_{1}=\int_{{t}_{1}}^{{t}_{2}}{\sqrt{1-\frac{V^2}{c^2}}}

No caso de um sistema de referência conectado ao relógio, geralmente se usa \tau={t'}_{2}-{t'}_{1}, Assim:

\boxed{\tau=\int_{{t}_{1}}^{{t}_{2}}{\sqrt{1-\frac{V^2}{c^2}}}}

\tau é o tempo próprio. Como ele é o tempo medido por um relógio se movendo junto ao referencial, ele é muitas vezes chamado de “tempo de relógio de pulso”, ou (e só para os mais descolados) “tempo de relógio de bolso”. Como é possível perceber da equação (5), o tempo próprio é uma medida direta do intervalo, ou seja, o tempo lido em um relógio carregado entre dois eventos é independente de todos referenciais inerciais.

Agora, se a velocidade V for constante, e adotando t={t}_{1}-{t}_{2}, \tau será:

\boxed{\tau=t\sqrt{1-\frac{V^2}{c^2}}}

Você vai notar o uso repetitivo do fator \sqrt{1-\frac{V^2}{c^2}}, por isso, geralmente é usado \gamma=\sqrt{1-\frac{V^2}{c^2}}. Mais conhecido como fator de Lorentz.

c = 1

É razoavelmente comum algumas referências adotarem c=1, e omitir-los de todas equações. O intervalo por exemplo seria:

s^2=t^2-l^2

Quando adotamos c=1, tempo é medido em metros e a velocidade é adimensional. Pessoalmente, acredito que c=1 é muito mais interessante. Fazer isso não apenas simplifica as equações, mas também é conceitualmente mais elegante. Como uma analogia, não adotar c=1 seria como plotar um mapa de uma vila, usando distâncias a norte na escala 1 cm para 1 milha náutica e distâncias a leste na escala 1 cm para 1 km. É claro, eu poderia usar o fator c=1.852 toda vez que eu desejasse calcular a distância entre dois pontos no mapa, mas não seria mais conveniente usar distâncias a norte em metros e deixar c=1 ? E este nem é um dos maiores motivos para justificar c=1. De qualquer forma por motivos didáticos não será omitido o c, e continuarei utilizando tempo em segundos.