Introdução
Nesse artigo iremos te introduzir à Inversão, uma transformação geométrica muito útil na resolução de problemas de geometria, principalmente dos que envolvem diversas circunferências e tangencias e que pode deixar um problema trivial, como veremos à seguir. Além disso, inversão é uma ferramenta que está fortemente conectada com outras ferramentas geométricas, como Potência de Ponto, Semelhança de Triângulos, Geometria Projetiva, Moving Points, etc.
Denote, em todo o artigo, a notação como o circuncirculo do polígono
.
Definição: Seja uma circunferência de centro
e raio
. Uma inversão
é definida como uma transformação geométrica que leva cada ponto
em um ponto
na semirreta
de modo que
.
Consideraremos também o ponto , um ponto no infinito tal que todas as retas do plano passam por ele. Assim
. A ideia é que ao aproximarmos um ponto de
seu inverso fica cada vez mais longe de
, então
é um ponto no infinito.
Propriedades:
1. O inverso de é
.
2. Uma inversão preserva a quantidade de interseções (ou seja, tangencias também!) entre duas figuras, exceto se essa interseção for o centro de inversão. Assim pela Propriedade 7, ao inverter pelo ponto de tangência de duas circunferências e
,
e
são retas paralelas (pois se intersectam em
).
3. Considere os pontos e seus inversos
e
, respectivamente. Os pontos
,
,
e
são concíclicos pois, por potência de ponto
. Assim
.
4. Distância entre inversos: A distância entre e
é
. A demonstração fica como exercício para o leitor.
5. Seja uma reta que passa por
. O inverso de
é
.
6. Seja uma reta que não passa por
. O inverso de
é uma circunferência que contém
tal que a perpendicular por
à
passa pelo centro da circunferência.
Demonstração: Como ,
contém
. Sejam
,
e
três pontos quaisquer em
. Pela Propriedade 3
, portanto
,
,
e
são concíclicos. Seja
o pé da perpendicular por
à
. Como
é o ponto mais próximo de
em
,
é o ponto mais distante de
em
, ou seja, a apótema de
e portanto a perpendicular por
à
contém o centro de
.
7. Analogamente à Propriedade 6, o inverso de uma circunferência que passa por é uma reta que não passa por
e é perpendicular à reta que liga
e o centro da circunferência.
8. Seja uma circunferência que não passa por
. O inverso de
é uma circunferência que não passa por
.
Demonstração: Como e
não pertencem a
,
também não contém nenhum desses pontos. Sejam
um diâmetro de
de modo que
e
está mais perto de
do que
e
um ponto qualquer em
. Assim
°
, pois
. Assim
é uma circunferência de diâmetro
.
Construindo o inverso:
Seja um ponto no interior de
e
a corda perpendicular a
por
. O inverso de
é o encontro das tangentes a
por
e
. Demonstração: Pelas relações métricas no triângulo retângulo
.
Seja um ponto sobre
. O inverso de
é
. Demonstração:
.
Seja um ponto no exterior de
e
uma tangente a
. O inverso de
é o pé da perpendicular por
à
. Demonstração: Análoga ao caso em que
é interior à
.
Posteriormente, veremos que inversão estará também relacionada com Geometria Projetiva (principalmente com polares!).
Exemplos
1 Teorema de Ptolomeu. Seja um quadrilátero. Então
, com igualdade se e somente se,
é cíclico.
Considere a inversão . Pela desigualdade triangular
,
com igualdade se e somente se, ,
e
são colineares, ou seja,
é cíclico.
2 (OBM-2019-N2-P3). Seja um triângulo acutângulo inscrito em um círculo
de centro
. Seja
o pé da altura relativa ao vértice
. Sejam
e
pontos sobre
tais que
. Sejam
e
os pontos de interseção da reta
com os lados
e
, respectivamente. Seja
o segundo ponto de interseção de
com o círculo circunscrito ao triângulo
. Mostre que as retas
e
encontram-se em um ponto que está sobre
.
O problema é equivalente a mostrar que °.
Considere a inversão .
Analisamos o que acontece após a inversão:
Os pontos ,
e
se mantém.
contém
e intersecta o círculo de inversão
em
e
, portanto seu inverso é uma reta que intersecta
em
e
, ou seja, a reta
. Assim concluímos que
e
. Analogamente
.
contém
, portanto seu inverso é a reta
, portanto
°.
3. Seja uma corda da circunferência
. Se
é uma circunferência internamente tangente à
em
e à corda
em
, prove que
passa por
, o ponto médio do arco
que não contém
, além disso, que
é a potência de ponto de
em relação à
.
Vamos inverter na circunferência de centro e raio
. O inverso de
é uma reta que passa por
e
pois eles não se alteram após a inversão. Analogamente, o inverso de
é
. Assim, como
é tangente à
e
,
é tangente à
e
logo, como os centros de
e
são colineares com
,
portanto
e
. Assim
,
e
são colineares e por semelhança de triângulos,
4. Sejam ,
e
pontos colineares e
. Prove que os circuncentros de
,
e
e
são concíclicos.
Lema 1: Se é um ponto na circunferência
, ao inverter em uma circunferência de raio qualquer e centro
, o inverso do centro de
é a reflexão de
por
.
Prova: Seja um ponto de
e
, sabemos que
e como
é isósceles,
também é isósceles logo
Vamos inverter em , agora temos
,
e
pontos concíclicos com
e queremos que as reflexões de
pelos lados do
sejam colineares o que é verdade pela reta de Simson.
5 (Teste Cone Sul 2020-Brasil). Seja um triângulo, e
um ponto em seu interior. Definimos o ponto
como ponto médio do arco
na circunferência que passa por
e
. Da mesma maneira, defina
como o ponto médio do arco
e
como o ponto médio do arco
. Prove que existe uma única circunferência que passa por
,
,
,
.
Aplique uma inversão , de centro/polo
, e raio qualquer; note que
,
,
se transformarão em retas, assim chamando
,
,
,
,
,
, observe que bastar provar que
,
,
são colineares, contudo perceba que as respectivas triplas de pontos:
;
;
são colineares. Usando
;
;
, a fórmula da distancia (Propriedade 4) e o Teorema de Menelaus (em
), temos que:
, logo tais pontos são colineares. Por fim, basta provar que
,
,
,
não são colineares (perceba que na prova, não podemos esquecer de provar isso, para não correr o risco de perder pontos) suponha que sejam colineares e seja
a reta que passe por tais pontos; reinvertendo (ou aplicando novamente a mesma inversão), como
passa pelo polo teríamos que
,
,
,
seriam colineares, mas não é difícil ver que tal configuração é impossível de acontecer. Com isso terminamos!
6. Seja um triângulo acutângulo e escaleno, no qual
é seu ortocentro,
é ponto médio de
,
e o ponto
é o simétrico de
em relação a
. Por fim, se
. Prove que
.
Defina e
, como
é ciclico e chame
tal circulo. Aplicando uma inversão
de polo/centro
e raio
, denote/perceba que
, note que o quadrilátero
é ciclico, logo
. Observe que
é o reflexo de
por
; logo como
e
possuem mediatrizes em comum, o quadrilátero
é trapézio isósceles e portanto cíclico! Pela inversão, esse último circulo se transformará numa reta que passa por
,
,
e como
,
,
são colineares, temos que
, logo
é cíclico e consequentemente
.
Problemas:
1 (USAMO 1993/2). Seja um quadrilátero com
e
a interseção de
e
. Prove que as reflexões de
por cada um dos lados forma um quadrilátero cíclico.
2. Seja um triângulo retângulo em
, e
e
pontos sobre o lado
e
, repectivamente. Construa as circunferências passando por
de centro
,
,
e
. Prove que as quatro interseções dessa circunferências são concíclicas.
3. Seja um triângulo acutângulo e
um ponto em seu interior diferente do circuncentro de
. Seja
, defina
e
de maneira similar e
a reflexão de
por
e
e
definidos de maneiras semelhantes, prove que
passa por um ponto fixo em
4 (Crux Mathematicorum, 4560). Sejam e
os pontos médios dos lados
e
do triângulo
, e
. Prove que
intersecta a
novamente num ponto
tal que
Dicas:
1-Observe as circunferências de centro e raio
e as análogas para os outros vértices do quadrilátero.
2- Geralmente é útil inverter no ponto que tem mais circunferências passando por ele.
3- Prove que ,
,
e
são concíclicos, sendo
o ortocentro de
.
4- Inverta em
Extraversões:
Uma extraversão ou mais conhecida como inversão é uma inversão usada no
, de centro/polo
e de raio igual a
(que pode ser visto como uma composição de uma inversão qualquer com uma reflexão pela bissetriz de
). Veremos que tais inversões são muito uteis em problemas que envolvem o incírculo/exincírculo mixtilinear ou provar as propriedades que os cercam. Primeiramente o incírculo mixtilinear é um circulo que tangencia dois lados do triângulo e tangencia internamente o seu circuncírculo (observe que um triângulo possui três incírculos mixtilineares, um para cada vértice); o exincírculo mixtilinear tangencia dois lados do triângulo e externamente seu circuncírculo. Antes de começarmos a ver as propriedades, veja o Lema da Estrela da Morte (Homotetia/Exemplo 3) e vejamos um problema da EGMO 2013:
EGMO 2013. Seja o circuncirculo de
. O círculo
é tangente aos lados
e , e internamente a
em
. Uma reta paralela a
e que corta o interior do triângulo
é tangente a
em
. Prove que
.
Para responder esse problema veremos algumas propriedades do incírculo mixtilinear (no problema é o circulo ):
Propriedade 1: Sejam e
os pontos de tangencia de
com
e
, respectivamente; e
o ponto médio do arco menor
e analogamente definimos
. Então
são colineares e
são colineares.
Prova: Basta aplicar o lema da estrela da morte nos círculos e
com os segmentos
e
.
Propriedade 2: O incentro (de )
é o ponto médio de
.
Prova: Para provar que ,
,
são colineares, basta usar o Teorema de Pascal no hexágono
(Note que
), e por fim por potência de ponto
, e como
é bissetriz, temos que também será mediana, ou seja,
.
Propriedade 3: De fato provar que .
Prova: Aplicando a extraversão (Note que nessa situação como o ponto
é o ponto "principal" (ele deve estar na parte superior da figura), ele será o polo e o raio será
), provaremos que o C-exincírculo se transformará no C-incírculo mixtilinear (ou
) e vice-versa. Note que
,
, e como os pontos
e
trocam de lugar, o
será uma reta e passará pelos inversos, ou seja, por
e
, assim
. Logo o
será tangente a
,
e
, e portanto ou será o incírculo ou será o exincírculo. Sendo
o centro de
, como
, devemos ter que
estará mais distante (em relação ao polo) que
, logo só pode se o exincírculo e como inversão é reciproca, também temos que o C-mixtilinear é o inverso do C-exincírculo.
Para finalizarmos, seja o ponto de contato do C-exincírculo com a reta
, assim
e como
e
são tangentes a
e ao C-exincírculo. O ponto
será o centro da homotetia que leva
no C-exincírculo, logo temos que pela inversão e homotetia:
.
Referências:
Chen, E. (2016). Euclidean Geometry in Mathematical Olympiads. The Mathematical Association of America.
SO 2020 Nível 2 - Inversão: a transformação - Régis Prado Barbosa.