O Surgimento da Tradição Filosófica

Entender o surgimento da filosofia é entender a própria formação da civilização grega e seu bem-sucedido desenvolvimento ulterior. Ademais, o que fez da Grécia tão excepcional historicamente? Pois estamos falando, também, dos criadores da ciência; da matemática; da literatura e da arte. Não obstante, pode-se dizer que todo esse processo foi dado de forma rápida e repentina, revolucionando os milhares de anos que o antecederam com as civilizações do Egito e da Mesopotâmia. Contudo, como nós podemos saber que a filosofia nasceu em um período tão específico e em um local tão certo, ou ainda como podemos conhecer o primeiro dos filósofos? 

O PENSAMENTO MÍTICO

Ao dizer que o pensamento filosófico nasceu na Grécia, no século VI a.C, não estamos afirmando que os distintos povos da antiguidade — egípcios, babilônios, persas, assírios, chineses e indianos — não buscavam entender a realidade que os cercava; pelo contrário, todos esses povos estudaram o mundo ao seu redor e deixaram contribuições fundamentais para a humanidade. Contudo a abordagem que eles utilizavam era aquela provinda dos mitos e não de uma análise científico-filosófica. Os mitos consistem numa forma dos povos de explicar os aspectos mais complexos da realidade: o surgimento do universo e da vida, o funcionamento da natureza e o comportamento moral das pessoas. No entanto, o que distingue o mito das explicações racionais é o seu apelo ao inexplicável, ao imaginário e às narrativas fictícias.

O mito surge através de uma tradição cultural e folclórica e tem uma transmissão predominantemente oral, que pressupõe a disponibilidade do interlocutor em aceitar esta narrativa. Outra característica importante, é que o pensamento mítico não constitui um imaginário específico ou algo do tipo, mas sim uma postura de aceitação, tal qual uma paradigma, que se interpõe sócio e politicamente. Aliás, não teriam todas aquelas civilizações uma figura central no poder que, de alguma forma, ou era mais próxima dos deuses ou os representava em sua totalidade? O que, de fato, vemos na história é que havia uma aristocracia militar e uma aristocracia sacerdotal, que muito frequentemente usurpava o poder real em tempos de crise.

O estudo da mitologia de um povo diz bastante acerca deste, por isso não se pode subestimar sua importância histórica e cultural; por exemplo, quando se estuda as religiões do Egito e da Babilônia, percebe-se que estas eram, primeiramente, cultos à fecundidade. Por isso a existência de deusas femininas, não era um ideal baseado na igualdade dos gêneros, na verdade, era exatamente o oposto. As figuras femininas nestes mitos serviam apenas para ressaltar seu poder/dever reprodutivo. Ainda podemos, através destes cultos, analisar o processo de dominação de um povo sobre outro, ou seja, estudar a apropriação de uma cultura dominante sobre uma cultura dominada; nesse contexto, nem se menciona a óbvia relação entre a cultura romana e a cultura grega, contudo, é bem curioso pensar que a Grande Mãe, cultuada sobre vários nomes na Ásia Menor, deu origem à Ártemis, que posteriormente, já em meio ao Cristianismo, viria a ser chamada de Virgem Maria. Um concílio, realizado em Éfeso, ainda viria legitimar o seu título de “Mãe de Deus”. 

E quanto a moralidade e a legislação destes povos? Ora, o código legal mais antigo de que se tem registro é o de Ur-nammu, rei da cidade de Ur, na Suméria. Este código foi imposto em cerca de 2100 a.C e transformava costumes antigos em leis. Centenas de anos depois, em 1754 a.C, tivemos a imposição do célebre código de Hammurabi, rei da babilônia que afirmava ter recebido o código do próprio deus Marduk. 

Desta forma, fica claro que o pensamento mítico exerce  uma função fundamental em qualquer civilização que o use como maneira d ver o mundo. Ele é muito mais do que a crença no deus A ou B; ele é um paradigma de não-questionamento, em que o senso comum é fundamentado como explicação absoluta dos fenômenos naturais. O que seria então o pensamento filosófico?

O PENSAMENTO FILOSÓFICO-CIENTÍFICO

A Grécia, assim como as outras civilizações, foi inicialmente regida pelos costumes e pela sua mitologia. Não obstante, o chamado período homérico foi um momento de vasta produção poética e grande influência posterior; nele tivemos o grande autor Homero, escritor de “A Ilíada” e “Odisseia”, que propagavam não apenas narrativas, mas crenças e valores. A importância desse período está no fato de o pensamento filosófico não se dissociar completamente dos mitos, mas de alguma forma usufruir deles para buscar bases racionais.

Assim chega-se ao período arcaico, entre os anos 800 e 500 a.C, em que teremos a consolidação das primeiras cidades-estados, assim como um novo sistema econômico e político. Tudo isso há de culminar no primeiro pensador: Tales de Mileto. Com a decadência da civilização micênico-cretense, por volta do século XII a.C, cuja estrutura era monárquica e a classe sacerdotal apresentava expressiva influência sobre o poder, tornou-se cada vez mais fraco o elo entre os mitos e a política. Depois disso, entre os anos 900 e 750 a.C, com as invasões da Grécia pelas tribos dóricas advindas da Ásia central, começam a surgir as primeiras pólis, que trarão uma participação mais ativa da população e uma progressiva secularização desta. O papel da religião, assim como dos mitos em geral, é agora o de manter a tradição cultural e não mais explicar a realidade. 

Devido ao surgimento da democracia ateniense no final do século VI a.C, explicações extraordinárias ou fictícias tornam-se cada vez mais insuficientes, pois o próprio sistema argumentativo do debate exige bases mais sólidas. Por último, vamos considerar o porquê do pensamento filosófico não ter nascido em uma cidade do continente grego, mas nas colônias gregas do Mediterrâneo oriental, no mar Jônico, atual Turquia. Em especial, podemos mencionar Mileto e Éfeso, que foram importantes polos comerciais em que se encontravam diversas caravanas provenientes do Oriente, de lá suas mercadorias eram levadas a outras partes do mediterrâneo. Nessas cidades, viviam diversas culturas harmoniosamente, pois, devido aos interesses comerciais, os povos que lá viviam eram bastante tolerantes. Tendo em mente esse pluralismo cultural, a ampla diversidade cultural, linguística e mítica levou a relativização dos mitos, o que acabou por enfraquecer o seu caráter outrora universal e absoluto, pois este agora era visto em sua dimensão histórica e individual: cada povo tinha sua própria forma de ver o mundo. Parece então muito razoável que, em um contexto de atividades comerciais e interesses práticos, as explicações imaginárias percam cada vez mais o seu espaço.

Assim surge uma nova tradição do pensamento humano, fundamentada na razão e no estudo da physis (natureza) — objeto fundamental da escola jônica. Contudo, ainda há muito do pensamento mítico nas entranhas do pensamento filosófico, principalmente dentre os pensadores ditos pré-socráticos. Muito do que será visto futuramente em Pitágoras, Heráclito, Parmênides e muitos outros pode ser entendido como o conflito entre o espírito dionisíaco (mito) e o espirito apolíneo (razão).

-Aula escrita por Cauan Marques

Próximo: Aula 1.2 - Escola Jônica.


As aulas do Curso NOIC de Filosofia são propriedade do NOIC e qualquer reprodução sem autorização prévia é terminantemente proibida. Se você tem interesse em reproduzir algum material do Curso NOIC de Filosofia para poder ministrar aulas, você pode nos contatar por esta seção de contato .

Para dúvidas e sugestões, fale conosco pela  seção de contato ou pelas nossas redes sociais (Facebook e Instagram).