2 – SÓCRATES E SOFISTAS: O Nascimento do Pensamento Clássico
Pode-se dizer certamente que a principal contribuição dos gregos foi o estabelecimento de extremos teóricos para a elaboração de hipóteses. Como vimos, eles não eram grandes partidários da moderação: ou todo o universo está em constante movimento, mudança, ou nada está e as coisas permanecem sempre as mesmas. Sabendo disso, abordaremos adiante outra dicotomia filosófica, esta de ordem epistemológica; de um lado teremos os Sofistas, representados pelas figuras de Protágoras e Górgias principalmente, que se declaravam detentores do conhecimento geral — Vale ressaltar que este não se trata de um conhecimento absoluto, mas sim uma consequência do caráter relativo da verdade; como veremos, estes, com efeito, podem ser chamado de pensadores céticos — e Sócrates, provavelmente o filósofo mais respeitado de todo o pensamento ocidental, que defendeu a eterna ignorância humana, cujas dimensões são muito incompreendidas pelo senso comum e merecem esclarecimento e definição mais bem trabalhada.
Nesta primeira aula, iremos tratar dos fatores que levaram ao surgimento do pensamento sofista e socrático; como, por exemplo, o desenvolvimento da democracia e da vida na pólis, enquanto ambiente discursivo-argumentativo e politizado. Não obstante, também iremos discorrer sobre a transformação referente ao objeto filosófico do pensamento clássico, que se distanciará da natureza (physis) e da realidade abstrata para um estudo pessoal, ético e político do homem.
A VIDA NA PÓLIS
As pólis, ou “cidades” em grego, foram uma das primeiras experiências a moldarem o conceito moderno que temos de cidade; com organização social complexa, estratificação econômica, áreas centrais e periféricas, pouco a pouco os gregos foram se afastando das aldeias, possivelmente fraternais, aos quais chamavam de genos. Embora tenham surgido ainda no século VIII a.C., foi apenas no final do século VI a.C. e começo do século V a.C. que estas fortaleceram-se e se consolidaram como as lendárias cidades helênicas que temos registro. O tema das cidades gregas, e de suas respectivas organizações sociais e sistemas políticos, representa um extenso e importante estudo, que revela inúmeras facetas desconhecidas do mundo helênico, como a da própria mentalidade do homem grego médio e também nos auxilia no entendimento de eventos históricos, como veremos, brevemente, em relação à Guerra do Peloponeso.
A cidade inicial que trataremos é Atenas, conhecida como o berço do pensamento clássico, assim como o maior expoente da democracia grega. Apesar de, em muitos aspectos, a democracia ateniense ser bem mais democrática do que a nossa, podemos dizer que, em muitos outros, ela é bem mais entregue a preconceitos. Apenas homens livres nascidos na pólis e com relativo poder econômico podiam participar da vida política da cidade, decidindo o que seria melhor para esta em detrimento do que as mulheres, os estrangeiros, escravos, agricultores de diminutas propriedades e trabalhadores despossados, maior parte da população, considerassem adequado. Com efeito, havia uma classe amplamente dominante e hegemônica, conhecidos como Eupátridas, eram homens que detinham as maiores porções de terra e constituíam representativamente em absoluto o povo ateniense, até para questão de censo demográfico. Portanto, tenha em mente que quase todos os pensadores atenienses que eu mencionar futuramente fazem parte desta seleta minoria.
Aliás, ainda que a puerilidade teórica que embasa este pensamento xenófobo, sexista e racista seja, hoje, condenável, é inegável que, por séculos, ele esteve atrelado ao desenvolvimento da filosofia, pois foi este grupo dominante extremamente farto e que vivia principalmente do ócio que se considerou detentor da capacidade de entender as coisas. Além disso, é necessário comentar que, neste período, durante julgamentos, tanto o acusador como o acusado apresentavam-se diretamente, assim como defendiam seus posicionamentos sem o auxilio de mediadores ou advogados. Desta forma, fica clara a relação entre o êxito em um julgamento e a habilidade oratória e retórica do indivíduo, o que vai levar muitas pessoas a buscarem dominar estas técnicas, ainda que, para isso, precisem recorrer a professores especiais.
Não obstante, tinha-se também, neste contexto, que os próprios debates que ocorriam na ágora não o eram feitos por meio de representantes ou intermédios. A democracia ateniense era o que se chama de participativa; ou seja, as próprias pessoas — Eupátridas — debatiam acerca do futuro da pólis, assim como elas próprias executavam o que havia sido consensual. Agora, não apenas podemos inferir que os indivíduos iriam querer buscar as mesmas habilidades para expandir sua representatividade política e, consequentemente, seu poder, mas também que as decisões e medidas tomadas pelo povo não representavam nem sequer esta elite em totalidade, mas um grupo ainda menor de pessoas que detinham da retórica e da oratória. Em outras palavras, havia toda uma questão política, socioeconômica e jurídica que coagia o homem grego médio a buscar o conhecimento filosófico.
Ora, claramente Atenas não foi a única cidade grega e, portanto, não condiz com os modelos e ideologias defendidas pelas demais. De fato, creio que a oposição que mais faz jus a essa afirmação é Esparta, pois esta é, em muitos aspectos, oposta aos ideais atenienses, ainda que sejam semelhantes em diversos outros. Quanto às suas características principais, a primeira é certamente o militarismo: advindos dos Dórios, igualmente bélicos, os espartanos possuíam o exército mais poderoso do mundo grego, eram considerados imbatíveis em combates terrestres. Ao contrário da liberdade que tinham os cidadãos atenienses, os espartanos nasciam e viviam em um regime rigoroso de treino e obediência; já se tornaram até populares as histórias a respeito do treinamento do jovem espartano, que se iniciava aos 7 anos, ou ainda os cuidados das jovens espartanas que aprendiam de suas mães a satisfazer sexualmente seus maridos, isto somado ao ato de sacrificar bebês deficientes e disformes faz com que muitas pessoas automaticamente dissociem Esparta do ideal de sabedoria e inteligência que atribuímos a Atenas. Indubitavelmente, mesmo com todos os seus preconceitos, a sociedade ateniense está muito mais próxima da nossa do que a sociedade espartana, ainda que esta última tenha vasta influência sobre nós.
Por último, vale mencionar a Guerra do Peloponeso, conflito entre Atenas e Esparta que se inicia em 431 a.C. e põe as duas cidades em um profundo e extenso conflito, que fragilizará a democracia ateniense e destituirá sua supremacia política, ainda que esta mantenha-se como potência cultural. Também é compreensível que muitos atenienses estivessem com Esparta na defesa da Oligarquia, pois eles certamente seriam beneficiados com isso. O conflito se encerrou com a derrota de Atenas e o estabelecimento, por parte dos espartanos, de um governo oligárquico chamado de Os Trinta Tiranos. Devido a sua impopularidade, foram destituídos em um ano e novamente a democracia se estabeleceu em Atenas; embora não a mesma democracia, mas uma conflituosa, cínica e vingativa.
O HOMEM ENQUANTO OBJETO
Em seu História da Filosofia Ocidental — uma das obras que embasa este curso, cuja leitura é fortemente sugerida —, Bertrand Russel afirma que, com o fim do pensamento pré-socrático, há também o fim de uma filosofia mais pura, desinteressada e vigorosa. Tanto os físicos como os filósofos mais místicos buscavam estudar a realidade por genuíno interesse científico, sempre perseguindo temas que lhes satisfaziam e lhes agradavam. O autor chega a salientar a infantilidade presentes neles, o que pode parecer pejorativo à priori, mas na verdade é um elogio. Os pré-socráticos são como crianças na medida em que possuem o espírito curioso e aventureiro que os move; são crianças na medida em que julgam o conhecimento como uma tarefa mais fácil do que ela realmente é; mais principalmente, são crianças na medida em que são inocentes, desprovidos de preconceitos ou resultados prévios e estão dispostos a aceitar qualquer verdade que seus estudos constatarem como certos.
Quando adentramos no período clássico, e isso há de perdurar por toda a idade média, ocorre a “pragmatização” da filosofia, pois ela não é mais um estudo inocente e criativo da realidade, mas um poderoso instrumento que alguns homens hão de usar para justificar seus conhecimentos prévios. Se antes a conclusão advinha dos experimentos, agora os experimentos apenas servem como maneira de constatação da conclusão e, caso ambos discordem, a conclusão — que a esta altura já até pode ser chamada de princípio — tem soberania absoluta. Tudo isso será calmamente verificado nos pensadores que futuramente abordaremos, por hora, basta que se entenda isso.
Russell, porém, em sua análise acaba por ser demasiado parcial ao atribuir, ao menos didaticamente, um juízo acerca dessa mudança, chegando mesmo a chama-la de falha. Nós não iremos considera-la assim, cabe a você decidir o que acha sobre isso. O fato é que houve uma revolução na estrutura do pensamento grego, que antes se dissociava da prática sociopolítica e se importava tão somente com temas abstratos, como a matemática, ou com a physis e, então, passou a tratar principalmente de temas mais humanos, como a ética e a política. Com efeito, alguns autores já haviam tratado sucintamente desses temas, mas nunca com a mesma intensidade e com os mesmos interesses dos pensadores clássicos. Antigamente, o estudo do homem seria feito para si próprio ou, por definição, seria inútil; enquanto que, no contexto que então se situavam, haveria o estudo do homem para; ou seja, o objetivo final já não é mais o homem em si.
Talvez você se pergunte quando que aquela atitude inocente irá retornar ao âmbito filosófico e acabe se deparando com duas repostas que expressam ideias bem gerais. Por um lado, pode-se dizer que o período moderno trará de volta a supremacia dos experimentos em relação às conclusões com a revolução científica, logo estamos bem mais próximos dos pré-socráticos do que o estiveram Platão e Aristóteles; pode-se ainda comentar que com pensadores como Espinosa, Berkeley e os mestres da suspeita: Marx, Nietzsche e Freud, nós novamente voltamos a questionar o óbvio e nos afastar de nossos preconceitos. Contudo, ainda assim, estaríamos nós totalmente desprovidos de interesses, seria isso possível? A resposta de um contemporâneo muito provavelmente será não.
2.2-O Movimento Sofista
O pensamento sofista constitui um tema polêmico e complexo em suas dimensões teóricas e históricas, sobretudo, pois o seu estudo se dá, em grande parte, por meio dos escritos de seus maiores críticos e, como tal, estão repletos de interpretações muito particulares que distorcem o que os sofistas realmente defendiam. Para começar, é interessante que se tenha em mente qual o significado desta palavra que, nos dias de hoje, adquiriu uma forte carga pejorativa que a afasta de seu sentido original. A palavra “sofista” significa tão somente “sábio”, ou ainda, “professor”; como pode uma palavra tão simples e até mesmo nobre metamorfosear-se neste palavrão argumentativo dos dias de hoje?
Aconteceu às ideias sofísticas o mesmo que acontecera às ideias do atomista Demócrito: a influência platônica as deteriorou, vilanizando-as e prevalecendo sobre seus ideais. Contudo, diferentemente do que ocorreu a Demócrito, não apenas suas ideias foram envilecidas, mas suas próprias figuras, que hoje atendem no imaginário popular como impostores, pensadores desonestos, os quais nem sequer merecem ser chamados de filósofos. Atualmente, sabe-se bem que muitos desses atributos foram fabricados pela corrente platônica.
Não se deve, no entanto, achar que isso provém necessariamente de uma interpretação injusta de Platão para com esses pensadores, pois é muito provável que não seja o caso. Com efeito, o pensamento sofístico representava propriamente uma consequência adaptativa do novo modelo político-econômico que surgia; assim como alternativa à já exausta discussão filosófica acerca da physis e do cosmo, que se debruçava sobre hipóteses escassamente sóbrias.
Em outras palavras — e permito-me dizê-lo de forma mais didática —, as propostas pré-socráticas pareciam ter se saturado, ficando cada vez mais abstratas e mais distantes do senso comum, davam a entender que qualquer pessoa podia chegar e elaborar uma teoria a respeito do universo. Podemos dizer que foi a combinação do desmedido interesse científico e do esplendor absoluto que os gregos tinham pela realidade racional com seu método frágil, nada rigoroso e, indiscutivelmente, ambíguo que fez de suas teorias cada vez mais especulativas e igualmente líquidas. A principal preocupação dos modernos ao retomarem a ciência física vai ser a de estabelecer um método efetivo e inexorável como veremos futuramente.
Assim sendo, os pensadores sofistas são reconhecidos por inaugurarem o período humanista da filosofia antiga — não confundir com o humanismo renascentista moderno. Seus temas principais agora serão: a ética, a política, a retórica, a educação, a arte, a língua e a religião. Porém, de onde vieram essas preocupações? Isso nos leva ao segundo fator que determinou a transladação do eixo da reflexão filosófica: a crise da aristocracia. Como é natural, ou esperado, em qualquer governo democrático, no século V a.C., houve um fortalecimento do povo grego, que adquiria cada vez mais representatividade política e econômica, fato que refletia diretamente na diminuição da influência aristocrática. Esta diminuição pode ser facilmente notada pelo que chamamos de crise da areté, ou da virtude; isto é, com o crescimento do comércio e do contato entre as cidades, tornou-se comum a comparação entre os hábitos, as leis e os costumes helênicos com as culturas estrangeiras, o que, historicamente, já se demonstrou uma boa forma de evidenciar a arbitrariedade de uma cultura. Ocasionando, consequentemente, uma desmoralização dos valores tradicionais, que eram, então, os valores da aristocracia; outra maneira de chamar isso é a relativização dos valores.
Sabemos também que, com o desenvolvimento do comércio, também se amplia a possibilidade da ascensão econômica e, como efeito desta, ascensão política. Ora, se a atividade política não é mais um bem somente destinado aos nobres, toda a ideia de virtude grega deveria ser reconsiderada. Costumava-se acreditar que a capacidade para exercer a política era um dom de nascença dos representantes da aristocracia e que assim eram as virtudes. Esta convicção será abalada e, assim, surgirá o ideal de que alguém pode vir a se tornar “virtuoso”. Todavia, como poderia alguém adquirir virtude?
Podemos dizer que, desta pergunta, surgem os primeiros sofistas, os quais se apoiam tanto no humanismo, ao colocarem o ser humano no plano central da discussão filosófica, como no relativismo, ao entenderem que aquilo que é considerado eternamente válido em um meio pode não apresentar valor algum em outro. No diálogo Theeteto, de Platão, este sugere que Protágoras, um dos principais sofistas que iremos estudar, acreditava que opiniões poderiam ser mais convenientes do que outras ainda que não mais verdadeiras; ou seja, algumas situações moldavam, ou ao menos justificavam, certas proposições e interpretações. Russell usa deste fato para explicar a herança sofística em F.C. S Schiller, um dos fundadores do pragmatismo, que se dizia discípulo de Protágoras.
Gosto pessoalmente de ressaltar o ceticismo de Górgias, que indubitavelmente teve grande influência sobre os helenistas e ainda mais sobre os modernos, e a questão da linguagem e da interpretação no pensamento sofista como um todo. A ideia de que são possíveis múltiplas interpretações da realidade, ainda que esta própria seja apenas uma, antecede em muito o objeto de estudo da Hermenêutica e prevê, extraordinariamente, o perspectivismo nietzschiano.
Para encerrar esta introdução, falemos um pouco sobre quais características especificamente deram aos sofistas a imagem que eles têm nos dias de hoje. Primeiramente — e escolho começar por um assunto decerto polêmico —, temos a questão financeira: sim, é um fato que os sofistas cobravam pelos seus ensinamentos e tanto Platão como Aristóteles irão abusar extensivamente disso a fim de desmoralizar esses pensadores. A questão é até que ponto isso é verdadeiramente condenável? Ora, se pensarmos aos moldes do mundo moderno, parece absurdo que qualquer pessoa se disponibilize para exercer uma tarefa vital sem que receba nada em troca. De fato, isso era possível para Platão porque ele integrava uma casta muitíssimo seleta da sociedade e não precisava ter a menor preocupação com sua estabilidade econômica. Enquanto a crítica de Platão se dirige aos altos custos de suas aulas, ela permanece bem consciente; porém, quando esta se dirige a obtenção de lucro em sua forma mais básica e necessária, deve-se ter o bom senso de descartar tal posicionamento como mera ignorância da parte de Platão, que não reconhecia que por trás de qualquer conquista imaterial, intelectual e cultural existe toda uma estrutura material, um substrato que as possibilita. Platão, como um aristocrata, nunca precisou trabalhar para ter uma vida agradável e concluía, assim, inexprimivelmente equivocado, que as outras pessoas também não precisavam.
Isso nos leva a segunda questão, que é o ensino. Para a corrente dominante do pensamento ocidental — passarei a chamar assim toda corrente que se apoie ou derive do eixo Sócrates-Platão-Aristóteles —, o discípulo de um grande mentor não podia ser qualquer pessoa, mas apenas um indivíduo diferenciado e único, cujos dotes intelectuais naturalmente se destacassem entre os medíocres. Os sofistas, por outro lado, ensinarão qualquer pessoa que estiver disposta a aprender e a pagar o preço adequado. Não obstante, para os sofistas, o ensino não é mais um complemento da reflexão filosófica, mas parte intrínseca desta enquanto pesquisa. Um dos fundamentos básicos da sofística é a difusão dos saberes. Podemos, ainda, afirmar que este compromisso pedagógico dos sofistas terá uma influência tremenda na nossa atual ideia de educação.
O outro diferencial dos sofistas é a sua autonomia em relação à tradição e a etiqueta, pois, para eles, os costumes e as normas são coisas que devem ser estabelecidas por meio da razão e não preceitos inatos que devem guia-la; alguns historiadores da filosofia costumam chama-los de “iluministas gregos”, exatamente devido a sua liberdade de espírito, como constataremos nos liberalista do Iluminismo moderno. Um dos âmbitos tradicionais mais marcantes que eles hão de desrespeitar é a proximidade a cidade natal, algo que era levado muito a sério pelos gregos. A visão deles é o que se pode chamar de pan-helênica, pois eles não se sentiam cidadão de uma única pólis, mas do mundo grego como um todo.
Finalmente, é valido ressaltar que, como qualquer movimento, a sofística foi se deteriorando e, aos poucos, se aproximou do ideal pintado por Platão. Primeiramente, tivemos os grandes pensadores da primeira geração de sofistas — a quem esta aula pretende, majoritariamente, abordar —, estes até o próprio Platão respeitava em parte; os erísticos, que abstraíram as ideias de seus predecessores radicalmente, esvaziando o conteúdo de tudo e tratando apenas de suas formas, além disso, também se desfizeram da pouca reserva moral que ainda restava nesses; e o cúmulo desta degeneração foram os político-sofistas, cujo projeto era puramente ideológico e as finalidades única e exclusivamente políticas.
PROTÁGORAS DE ABDERA
O primeiro pensador de que iremos tratar é Protágoras, reconhecido e lembrado como o principal representante do movimento sofista e cujo estudo permeia as mais diversas áreas da discussão filosófica clássica. Evidentemente, o objetivo desta aula não é fazer um compilado com todas as suas ideias — até porque este é um estudo que carece severamente de fontes —, mas sim delinear o esqueleto, a “espinha dorsal” do seu pensamento, buscando salientar as características que julgarmos mais fundamentais ao entendimento deste.
Dito isso, podemos apoiar nosso estudo em três preceitos: o relativismo, como já foi comentado na introdução; o pragmatismo; e a antilogia. Com exceção do último conceito, todos estes fundamentos serão retomados no período moderno ou até mesmo na contemporaneidade, assumindo definições consideravelmente distintas das estipuladas por Protágoras.
Para começar falando a respeito do humanismo, nada melhor do que a já cliché frase: “O homem é a medida de todas as coisas”, contudo, o que essa sentença de fato expressa? Estaria ela dizendo que os homens, substâncias centrais do universo, eram portadores natos de direitos inalienáveis que garantiriam suas integridades morais? Certamente que não. Com efeito, muitas pessoas confundem o real significado dessa frase com a sua ressignificação moderna; a fim de evitar essa confusão, a expressemos, pois, em sua completude: “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são enquanto são, das coisas que não são enquanto não são”. Com isso, Protágoras estabelece o postulado da “homo mensura”, que afirma que todo e qualquer juiz acerca de um fenômeno ou experiência da realidade deve ter o indivíduo como juiz supremo; ou seja, não existem critérios externos para averiguação de um caso. A distinção entre ser e o não ser, assim como entre verdadeiro e falso, só seria possível a partir do indivíduo e nunca em relação a princípios anteriores. De forma mais didática, consideremos uma situação em que duas pessoas devem andar descalças sobre um solo rugoso e coberto de pedras. Uma dessas pessoas passou a maior parte de sua vida andando descalça e, portanto, afirma que não há nada demais em andar sobre aquele solo; já a outra pessoa, foi acostumada em toda a sua vida a andar calçada e, assim, diz que é insuportável andar naquela área. Protágoras irá dizer que nenhuma das duas está errada, mas estão ambas segundo suas próprias verdades. No entanto, também é um fato que a maioria das pessoas atualmente costuma andar calçadas, então é a segunda pessoa afirma algo mais conveniente do que a primeira, o que nos leva ao segundo ponto de sua filosofia.
O pragmatismo de Protágoras é um tipo de bom-senso que permite as pessoas distinguirem qual a verdade mais conveniente para certa situação, como vimos anteriormente. Todavia, não se pode dizer que o pragmatismo sofístico é idêntico ao pragmatismo contemporâneo, pois, em muitos aspectos, ele é diametralmente oposto. A começar pelo fato de a própria utilidade de cada sentença ser algo, também, relativo para Protágoras; ele não se propõe em achar um método seguro para determinar qual atitude será mais útil, mas apenas postula que esta determinação deva ser feita pelo próprio indivíduo. A grande limitação de Protágoras foi não reparar na evidente antítese entre relativismo e pragmatismo.
Por último, temos a antilogia, que foi a principal obra de Protágoras, em que este propõe que para qualquer discussão, sempre haverá posicionamentos absolutamente contrários, cujos argumentos são igualmente válidos. Desta forma, o ato de defender uma tese em nada tem a ver com o conteúdo factual desta mesma tese. Cabe ao sofista, portanto, determinar qual destes posicionamentos deve prevalecer sobre o outro em dada circunstância e foi a isto que ele chamou virtude, a habilidade de conseguir fazer com que uma tese prevalecesse sobre outra.
GÓRGIAS E O CETICISMO
Assim como fizemos para entender a filosofia de Protágoras, também utilizaremos conceitos chaves para nos orientar em meio à reflexão de Górgias. Pois bem, para compreendê-lo, precisamos ter dois termos bem definidos em nossas mentes: niilismo e retórica; de fato, estes não são conceitos independentes e, em grande parte, este é construído por meio daquele. O niilismo de Górgias, que, podemos dizer, formulou o que viria a ser conhecido ocidentalmente como niilismo, se fundamenta em três teses simples: O ser não existe; se existisse, não poderia ser compreendido; se fosse compreendido, não poderia ser comunicado. Aprofundemos melhor cada uma dessas afirmações.
Em seu Sobre a natureza ou sobre o não ser¸ Górgias estabelece que, dado que por muitos anos inúmeros pensadores estudaram o ser e atingiram conclusões completamente adversas e reciprocamente anulatórias, o ser deve não existir; pois, se o ser é uno, múltiplo, permanente, efêmero, organizado e caótico, ele não é realmente nenhuma dessas coisas, ou seja, não é nada e assim não existe.
No que concerne o entendimento do ser, no caso hipotético de sua existência, Górgias prova a sua incognoscibilidade através do método previamente estabelecido por Parmênides, que dizia que apenas o ser pode ser pensado — esta tese já foi comentada na aula sobre monismo e mobilismo, inclusive suas inconsistências. O sofista vai demonstrar que existem coisas não existentes que podemos imaginar, como um Pégaso ou um homem andando sobre o mar, desfazendo assim o laço entre ser e pensamento. Vale ressaltar que esta segunda tese deve-se muito mais a inconsistência e a ambiguidade de algumas definições monistas do que a uma ideia revolucionária da parte de Górgias, o que também não implica que ela não tenha tido ideias revolucionárias, o niilismo como um todo é algo inteiramente diferente de tudo que já se havia pensado.
Por último, temos a incomunicabilidade do conhecimento, que eu pessoalmente considero o que há de mais genial na filosofia de Górgias; ele irá dizer que, ainda que algo pudesse ser entendido, o sujeito que alcançou aquela verdade nunca poderia transmiti-la para outra pessoa. Este fato é consequência direta da maneira com a qual nos comunicamos, ou seja, a fala. As palavras podem servir como representações sonoras de ideias, fenômenos e conceitos, mas elas nunca poderão conter tais objetos em si. Pressupor que nós pudéssemos entender experiências e fenômenos através de sons seria o mesmo que pressupor que poderíamos ver o cheiro das coisas ou ainda ouvi-los. Basicamente, Górgias abre mão desta sinestesia maluca que guiava os antigos pensadores.
Então, fica claro que ele irá abandonar o conhecimento factual, ao qual ele chama aletheia, mas o que não fica nem um pouco claro é que ele também vai romper com a opinião, doxa. Ele irá tratar da opinião como se fosse suja, sórdida, uma forma ilegítima de condicionar a realidade aos seus preconceitos. O que Górgias irá propor em vez disso é uma filosofia das circunstâncias, próximo do que pensava Protágoras, ele pensará no caminho da razão como uma forma de buscar o esclarecimento a respeito das condutas situacionais. Não se compõe então de um método fixo e absoluto, mas que atende às possíveis variedades condicionais. O autor Maurizio Migliori costuma usar o termo “ética da situação”.
Como já foi visto, ele atribuía à linguagem uma incompatibilidade com o não ser, ou seja, com a realidade; todavia, a partir do momento que a palavra se dissocia da verdade, ela se trona um poderoso instrumento argumentativo. Para Górgias, a retórica seria exatamente a arte de persuadir, pois, se não existe mais relação ou comprometimento da comunicação com uma verdade objetiva, o fim mais útil à linguagem é, ao menos, fazer-se plausível e conativa.
Esse apreço pela habilidade de iludir também se expressa em sua arte, até onde se sabe foi o primeiro pensador a discutir sobre a estética da palavra, em que defendia a essência poética como algo enganador, porém libertador. Isto também será alvo de críticas por parte da corrente dominante.
SOFISTAS MENORES
Estes certamente não foram os únicos sofistas, apesar de serem os maios conhecidos, pretendo falar brevemente acerca de outros pensadores que também são dignos de menção. Primeiro, quero falar sobre o sofista que influenciou Sócrates, Pródico, o seu método, denominado sinonímia, baseava-se em distinguir ou definir o conceito das coisas, percebendo assim as nuances ainda que entre sinônimos. Quando estivermos falando acerca da filosofia socrática, veremos como isto se parece com a chamada análise conceitual, parte fundamental da maiêutica.
Depois destes, também houve pensadores sofistas que retomaram o naturalismo e opuseram as coisas dos homens, como as leis, normas e convenções, e as coisas da natureza. De um lado havia a lei humana, que é arbitrária e contingente, e do outro o regulador natural do universo, composto de leis invariáveis e necessárias. Chegando até mesmo em Antifonte, que radicaliza esta tese e afirma que se deve seguir a lei natural ainda que essa transgrida a lei humana. Este mesmo pensador clama que todas as pessoas são iguais, independente de suas origens ou comportamentos, diz até que “por natureza, somos todos absolutamente iguais, gregos e bárbaros”.
DEGENERAÇÃO DO MOVIMENTO
Infelizmente, não apenas de teorias proto iluministas viveram os sucessores de Górgias de Protágoras. Como já foi dito na introdução, tivemos tanto a erística como os sofistas-políticos. Os primeiros abusavam da antilogia para formular perguntas capciosas e controversas, que, independente da forma como fossem respondidas, levavam a contradições; esta série de problemas usava da ambiguidade semântica e de um leque de “lógicas” sujas para atacar o interlocutor, esses problemas ficaram conhecidos como “sofismas” e têm um espaço especial no Òrganom aristotélico, todo dedicado a refutá-los.
Já os sofistas-políticos usavam do niilismo e do naturalismo de Antifonte para justificar uma série de ações pérfidas e corruptíveis, como por exemplo, tiranias, que se fundamentavam na ideia de que os mais fortes tinham o direito natural de reger os mais fracos.
Para concluir, é interessante notar o quão rico é o movimento sofista, apesar daquilo que ele se tornou, e como ele é muito mais do que preconceituosamente se supõe. Não obstante, estuda-los é exercer aquilo que há de mais nobre na filosofia, que é dar atenção ao que usualmente é negligenciado; em outras palavras, é dar uma nova chance a um conjunto de pensadores que em muito contribuíram, e positivamente, para o nosso mundo de hoje, mas que por uma série de fatores foram envilecidos, desprezados e esquecidos. Os sofistas iniciam uma jornada de conhecimento através do espectro humano e para fazê-lo se despem de todos os seus preconceitos, destruindo os valores que antes cegavam e limitavam o conhecer filosófico; abrem mão de uma série de verdades para que pudessem conhecer mais. Só foi possível estudar o novo homem, pois os sofistas se deram ao trabalho de desfigurar o antigo, de desmembrar o gigante sobre a qual ele se apoiava. Infelizmente, eles não foram capazes de encontrar uma nova base para apoiar este conhecimento, mas Sócrates foi...
2.3-Sócrates
Finalmente discutiremos este que é sem dúvida o mais influente pensador da história da filosofia ocidental; tendo sido mestre de Platão, a influência de Sócrates transcende a este e alcança uma série imensurável de filósofos posteriores. Não obstante, a discussão socrática ecoa até os dias de hoje e, ao nos depararmos cotidianamente com noções previamente imortalizadas de justiça, moral, felicidade e ética, estamos tendo contato com produtos frutos das indagações levantadas por Sócrates há 2500 anos. Todavia, o que faz dele uma figura tão memorável? Como vimos na aula passada, a respeito dos sofistas, o objeto de estudo da filosofia estava se transformando: a preocupação com a physis e com a realidade abstrata estava sendo substituída por questões humanas diretamente relacionadas ao contexto histórico do momento. Os sofistas foram de suma importância para o desenvolvimento dessa temática e elaboraram teses que até hoje estão sendo estudadas, mas, ainda assim, não houve uma unidade metodológica que permitisse um estudo satisfatório da condição humana — além é claro da progressiva degradação do movimento, que culminou em muito mais conflito do que resolução. É nesse quesito que Sócrates vai além dos sofistas.
A ironia socrática, assim como a maiêutica, foi fundamental para que um estudo objetivo da natureza humana fosse, enfim, possível. Evidentemente, as tais conclusões objetivas não serão defendidas pelo próprio Sócrates, mas seu discípulo Platão vá unifica-las em um intrincado sistema filosófico, que só será superado em complexidade pelo sistema do discípulo deste, o qual organizará todo o universo em outro sistema absurdamente sistemático.
Contudo, não é apenas por sua influência que Sócrates é tão idolatrado por seus seguidores, vale lembrar que ele deu sua própria vida em nome da filosofia e esta é a expressão máxima do amor ao conhecimento; frente a todos os mistérios do pós-vida, ele se manteve íntegro aos seus princípios e preferiu a morte a abdicar de seus questionamentos. Platão fará dele um verdadeiro mártir da filosofia ocidental, assassinado pela ignorância dos homens e pela democracia ateniense — não à toa, ele será também símbolo de toda e qualquer crítica à democracia.
APOLOGIA
Comecemos nosso estudo pelo fim, ou melhor, pelos últimos momentos da vida de Sócrates, que foram retratados por Platão em uma de suas mais relevantes obras Apologia de Sócrates — faz-se um adendo aqui de que Sócrates não nos deixou qualquer fonte escrita e, portanto, sua vida e suas ideias só podem ser tratadas sob a ótica de outros pensadores que as registraram; dentre aqueles que o retrataram, temos Aristófanes na comédia As nuvens, que ridiculariza a figura de Sócrates e o transforma em uma caricatura; temos os escritos de Aristóteles, que praticamente não conviveu ele e que idealiza seus dizeres e feitos; e por últimos temos os escritos de Platão e Xenofonte, que mostram uma visão bem madura acerca dele e chegam a consensos significativos —, o qual havia sido condenado por três atenienses: Anyto, um político democrata; Meleto, um poeta; e Lykon, um retórico. Eles o acusavam de corromper a juventude, de não acreditar nos deuses do Estado e de adorar divindades adversas.
Como forma de se defender a essas condenações, Sócrates profere eloquentes monólogos; no entanto, ao se analisar o texto, percebe-se que a sua intenção nunca foi a de ser perdoado, até porque para ser perdoado ele deveria ter feito algo verdadeiramente errado e ele discordava disso. A defesa de Sócrates, curiosamente, não se dirige apenas aos três acusadores, mas também a quem ele chama de primeiros acusadores, que desde muito tempo já atacavam os seus ensinamentos. Os primeiros diriam desde cedo, quando os juízes não passavam de crianças — Sócrates já possuía mais de setenta anos quando foi julgado — , “que há um tal de Sócrates, homem douto, especulador das coisas celestes e investigador das subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca”.
Segundo o próprio Sócrates, o motivo de eles lhe dirigirem tanto desgosto era uma consequência de suas próprias ignorâncias. Segue, então, a narrar uma das mais célebres histórias da filosofia. Xenofonte, antigo parceiro da juventude de Sócrates, foi uma vez à Oráculo de Delfos, representante máximo das intenções do Deus de Delfos, e indagou-lhe se havia alguém mais sábio do que Sócrates, a pítia o surpreendeu ao dizer que não. Contudo, Sócrates não tinha essa ideia de si mesmo, de que era sábio, e concluiu que esse deveria ser um enigma que os deuses o havia lançado. Buscou, então, pelos mais sábios da Grécia, pois bastava que achasse um homem mais sábio que ele para que pudesse refutar a oráculo. Foi primeiro ao encontro de um grande político, que provou-se de fato mais sábio que a maioria dos homens, mas ainda assim afirmava saber de coisas que não sabia. Sócrates criou rancor desse senhor e se considerou de fato mais sábio, pois apesar de não saber das coisas, não afirmava em momento algum que as sabia. Depois disso, foi de encontro aos poetas, que pareciam demonstrar sabedoria incontestável, contudo, ao selecionar trechos de suas obras que lhe aparentavam especialmente bem escritos, perguntou-lhes qual o significado daqueles versos e surpreendeu-se ao perceber que eles não sabiam responde-lo. Disso tirou que as habilidades dos poetas não viam da sabedoria, mas de uma inspiração natural e entusiástica. Por último foi aos artesãos, que novamente lhe decepcionaram, pois estendiam seus conhecimentos artísticos a áreas que não lhes pertencia. Sócrates percebeu que os mais declaradamente sábios eram os que menos possuíam sabedoria e que os homens ditos inferiores, esses sim se aproximavam da sabedoria de fato. Foi, então que Sócrates acreditou ter entendido o recado dos deuses: o conhecimento dos homens é pobre e falho e, portanto todos aqueles que acreditam saber das mais variadas coisas de nada realmente sabem. “a visão dos homens vale pouco ou nada, e que é claro que eles (deuses) não disseram isso a Sócrates, mas apenas usaram meu nome para me colocar de exemplo”. O mais sábio dos homens seria aquele que reconhecia sua ignorância, daí a máxima socrática. Após isso, Sócrates, obedecendo aos deuses, continuou a questionar cidadãos e estrangeiros para ver se tinham sabedoria e, quando chegava à conclusão de que não tinham, tomava para si o papel dos deuses e os mostrava que não eram sábios. Os primeiros foram esses que não aceitaram que não eram sábios, uns dos muitos inimigos que conquistou.
A defesa de Sócrates é, em diversos aspectos, bastante religiosa, o que se contrapõe trivialmente às suas acusações. O próprio Meleto diz não mais que ele crê em outros deuses, mas que ele não crê me nada. O fato é que independente do que fosse dito ali, os atos de Sócrates não seriam perdoados. Por fim, após sua condenação, sob tradição de Atenas, lhe é oferecida uma opção mais amena que a pena capital, que o proibiria de expressar qualquer uma de suas ideias novamente. Isto parece a Sócrates ainda pior do que a morte, principalmente porque ele acreditava na imortalidade e assim não tinha motivos para temer o fim de sua vida. Voluntariamente, ele aceita a pena e se compromete a tomar a cicuta. Os seus últimos momentos são retratados no diálogo Fédon e também na pintura do francês Jacques-Louis David. A vida de Sócrates fez dele uma pessoa amada por muitos, mas sua morte o eternizou como um símbolo.
Mas tudo o que vos peço é que quando os meus filhos ficarem adultos, que os puni, atenienses, atormentai os garotos do mesmo modo que eu atormentei a todos, quando parecer que eles cuidam mais das riquezas ou de outras coisas do que da virtude. E, se acreditarem ser qualquer coisa não sendo nada, que os reprovai, como fiz convosco: não vos preocupeis com aquilo que não vos é devido.
E, se fizerdes assim, teremos o que é justo, eu e os meus filhos. Mas já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para a vida. Mas quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para os deuses.
MAIÊUTICA E ANÁLISE CONCEITUAL
Bem, tendo até aqui exposto uma parte significativa da personalidade de Sócrates, discutamos agora, sob uma perspectiva mais técnica, como realmente funcionava o seu método. Para começar, é importante deixar claro que a abordagem de Sócrates é aporética, ou seja, ela não se compromete a chegar a conclusões, mas sim fomentar um desenvolvimento pessoal no indivíduo que o guiaria a um estágio mais próximo do conhecimento e distante da mera opinião. Outra característica muito importante é a ironia — como vimos, Sócrates acreditava que tinha o dever divino de explicitar a ignorância das pessoas —, as pessoas se dirigiam a ele e indagavam-lhe sobre a natureza de alguma coisa complexa, como a justiça, por exemplo, esperando que ele fosse lhes dar uma resposta simples; em vez disso, Sócrates iniciava uma série de perguntas à própria pessoa sobre o assunto, que normalmente acreditava já ter alguma verdade prévia, por exemplo, sobre o que é a justiça, e apenas se utilizando de perguntas simples ela era capaz de demonstrar a pessoa que a verdade que ela acreditava possuir é, na verdade, incongruente. Sabendo disso, o primeiro passo para a pessoa ter sua resposta era repensar seu preceitos.
O significado que atribuímos cotidianamente a ironia, no entanto, não se distancia tanto da utilizada por Sócrates, quando usamos do humor para evidenciar o quão absurda uma ideia é, estamos, com efeito, usando seu método. É claro que esse método não pode ser empregado para qualquer tipo de questão, mas apenas àquelas que pressupõem o conhecimento prévio do indagador; sendo assim, percebe-se uma natureza proto-racionalista nos pensamentos de Sócrates, que irão aflorar de vez em seu discípulo Platão. Não obstante, ele próprio demonstra em alguns dos diálogos que acredita que todo o conhecimento reside no homem, daí o nome de seu método “maiêutica”, que significa parteira em grego. Assim como sua mãe, ele acreditava possibilitar que as pessoas dessem a luz, mas, no seu caso, não a pessoas e sim a ideias.
Por último, temos que estudar a natureza das perguntas que eram feitas por Sócrates, sendo estas do tipo “o-que-é-x”; ou seja, perguntas descritivas, por isso sua análise era dita como conceitual, porque ela tinha em seu cerne esclarecer, ou repensar, os conceitos envolvidos em sua reflexão. As respostas dadas por seus interlocutores são de um valor histórico incomensurável, pois quando ele pergunta “o que é a justiça” ou “o que é o bem”, o que o indivíduo expressa não é apenas uma visão pessoal, mas sim uma visão tradicional. Na fala do interlocutor, nós podemos ler os preconceitos de um homem médio que viveu há milhares de anos atrás. Todos aqueles que responderam a Sócrates tem o peso de 2500 anos expondo as falhas de seus raciocínios, levanta a dúvida sobre como os nossos sucessores reagirão aos nossos preconceitos; o único que conseguiu manter-se sábio foi o próprio Sócrates, que nunca levantou respostas, apenas questionamentos.
RECAPITULAÇÃO
- Os sofistas surgem em um contexto de desapego ao estudo da physis como consequência das teorias desmedidas dos pré-socráticos.
- Em decorrência do desenvolvimento político de Atenas, o objetivo dos sofistas passa a ser o ensinamento de jovens acerca da retórica.
- O movimento sofista, inicialmente, tem dois grandes representantes: Protágoras e Górgias, que se baseavam no relativismo e no humanismo.
- Protágoras não almejava uma verdade absoluta, mas sim uma verdade convencional, que serviria de inspiração para o pragmatismo.
- Górgias defendia que o conhecimento era impossível e que o comportamento devia atender a uma ética situacional.
- O movimento sofista se degenerou progressivamente até se transformar em um instrumento político-ideológico para justificar o imoralismo.
- Sócrates, se opondo aos sofistas, não se diz detentor do conhecimento, mas o oposto disso.
- Usa da ironia para evidenciar a ignorância daqueles que lhe procuram.
- Auxilia o seu interlocutor a repensar seus preceitos e, consequentemente, solucionar sua dúvida.
- Como símbolo máximo de um ser que pôs a sua alma acima de sua corporeidade material, morre defendendo seus princípios.
FONTES E LIVROS PARA APROFUNDAMENTO
- Marcondes, Danilo. Iniciação a História da Filosofia Ocidental: dos pré-socráticos a Wittgenstein. (capítulo 3).
- Platão. Apologia de Sócrates.
- Platão. Laques.
- Platão. Ménon.
- Russel, Bertrand. História da Filosofia Ocidental, vol.1. (capítulos X e XI).
- Søren Kierkegaard. O Conceito de Ironia Constantemente Referido a Sócrates.
- Guthrie, William. Os Sofistas.
QUESTÕES
- Quais os fatores que influenciaram o surgimento dos Sofistas?
- Qual era o objeto de estudo dos sofistas?
- Por que o estudo da physis foi abandonado?
- O ato de receber por seus ensinamentos era desonesto por parte dos sofistas?
- Explique a importância da democracia para o surgimento do movimento sofista.
- O que era a verdade para Protágoras e Górgias e em que ponto eles discordavam?
- Discorra sobre o humanismo e o relativismo.
- Comente sobre o papel destas tendências na modernidade.*
- Fale sobre a influência de Górgias no ceticismo pirrônico.*
- O que levou o movimento sofista a se degenerar?
- Por que Sócrates é tão bem visto na filosofia?
- O que quer dizer “Só sei que nada sei”?
- A outra máxima socrática “conhece-te a ti mesmo” ainda é válida no mundo contemporânea? Se sim, há mudanças em relação a seu sentido original?
- Qual a relação entre a imortalidade e o inatismo socrático?
- Por que Sócrates não nos deixou obras escritas?
- Use do método socrático contra suas próprias ideias ou dos seus amigos para ver até que ponto elas são coerentes.
- O que é maiêutica? Trace um paralelo entre ela e a antilogia. Você acredita que existem verdades que não sejam, a uma análise mais profunda, incongruentes?
- Que aspecto do pensamento sofista apresenta um ataque à visão idealista de Sócrates?
- Platão discorda de Sócrates em relação a alguma coisa? Se sim, ele consegue refutá-la?*
- O que Nietzsche quer dizer quando diz que a filosofia Socrática é a supremacia do espírito apolíneo sobre o espírito dionisíaco?**
-Aula escrita por Cauan Marques
Próximo: Aula 3 - Platão.
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