Sócrates

Finalmente discutiremos este que é sem dúvida o mais influente pensador da história da filosofia ocidental; tendo sido mestre de Platão, a influência de Sócrates transcende a este e alcança uma série imensurável de filósofos posteriores. Não obstante, a discussão socrática ecoa até os dias de hoje e, ao nos depararmos cotidianamente com noções previamente imortalizadas de justiça, moral, felicidade e ética, estamos tendo contato com produtos frutos das indagações levantadas por Sócrates há 2500 anos. Todavia, o que faz dele uma figura tão memorável? Como vimos na aula passada, a respeito dos sofistas, o objeto de estudo da filosofia estava se transformando: a preocupação com a physis e com a realidade abstrata estava sendo substituída por questões humanas diretamente relacionadas ao contexto histórico do momento. Os sofistas foram de suma importância para o desenvolvimento dessa temática e elaboraram teses que até hoje estão sendo estudadas, mas, ainda assim, não houve uma unidade metodológica que permitisse um estudo satisfatório da condição humana — além é claro da progressiva degradação do movimento, que culminou em muito mais conflito do que resolução. É nesse quesito que Sócrates vai além dos sofistas.

A ironia socrática, assim como a maiêutica, foi fundamental para que um estudo objetivo da natureza humana fosse, enfim, possível. Evidentemente, as tais conclusões objetivas não serão defendidas pelo próprio Sócrates, mas seu discípulo Platão vá unifica-las em um intrincado sistema filosófico, que só será superado em complexidade pelo sistema do discípulo deste, o qual organizará todo o universo em outro sistema absurdamente sistemático.

Contudo, não é apenas por sua influência que Sócrates é tão idolatrado por seus seguidores, vale lembrar que ele deu sua própria vida em nome da filosofia e esta é a expressão máxima do amor ao conhecimento; frente a todos os mistérios do pós-vida, ele se manteve íntegro aos seus princípios e preferiu a morte a abdicar de seus questionamentos. Platão fará dele um verdadeiro mártir da filosofia ocidental, assassinado pela ignorância dos homens e pela democracia ateniense — não à toa, ele será também símbolo de toda e qualquer crítica à democracia.

APOLOGIA

Comecemos nosso estudo pelo fim, ou melhor, pelos últimos momentos da vida de Sócrates, que foram retratados por Platão em uma de suas mais relevantes obras Apologia de Sócrates — faz-se um adendo aqui de que Sócrates não nos deixou qualquer fonte escrita e, portanto, sua vida e suas ideias só podem ser tratadas sob a ótica de outros pensadores que as registraram; dentre aqueles que o retrataram, temos Aristófanes na comédia As nuvens, que ridiculariza a figura de Sócrates e o transforma em uma caricatura; temos os escritos de Aristóteles, que praticamente não conviveu ele e que idealiza seus dizeres e feitos; e por últimos temos os escritos de Platão e Xenofonte, que mostram uma visão bem madura acerca dele e chegam a consensos significativos —, o qual havia sido condenado por três atenienses: Anyto, um político democrata; Meleto, um poeta; e Lykon, um retórico. Eles o acusavam de corromper a juventude, de não acreditar nos deuses do Estado e de adorar divindades adversas.

Como forma de se defender a essas condenações, Sócrates profere eloquentes monólogos; no entanto, ao se analisar o texto, percebe-se que a sua intenção nunca foi a de ser perdoado, até porque para ser perdoado ele deveria ter feito algo verdadeiramente errado e ele discordava disso. A defesa de Sócrates, curiosamente, não se dirige apenas aos três acusadores, mas também a quem ele chama de primeiros acusadores, que desde muito tempo já atacavam os seus ensinamentos. Os primeiros diriam desde cedo, quando os juízes não passavam de crianças — Sócrates já possuía mais de setenta anos quando foi julgado — , “que há um tal de Sócrates, homem douto, especulador das coisas celestes e investigador das subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca”.

Segundo o próprio Sócrates, o motivo de eles lhe dirigirem tanto desgosto era uma consequência de suas próprias ignorâncias. Segue, então, a narrar uma das mais célebres histórias da filosofia. Xenofonte, antigo parceiro da juventude de Sócrates, foi uma vez à Oráculo de Delfos, representante máximo das intenções do Deus de Delfos, e indagou-lhe se havia alguém mais sábio do que Sócrates, a pítia o surpreendeu ao dizer que não. Contudo, Sócrates não tinha essa ideia de si mesmo, de que era sábio, e concluiu que esse deveria ser um enigma que os deuses o havia lançado. Buscou, então, pelos mais sábios da Grécia, pois bastava que achasse um homem mais sábio que ele para que pudesse refutar a oráculo. Foi primeiro ao encontro de um grande político, que provou-se de fato mais sábio que a maioria dos homens, mas ainda assim afirmava saber de coisas que não sabia. Sócrates criou rancor desse senhor e se considerou de fato mais sábio, pois apesar de não saber das coisas, não afirmava em momento algum que as sabia. Depois disso, foi de encontro aos poetas, que pareciam demonstrar sabedoria incontestável, contudo, ao selecionar trechos de suas obras que lhe aparentavam especialmente bem escritos, perguntou-lhes qual o significado daqueles versos e surpreendeu-se ao perceber que eles não sabiam responde-lo. Disso tirou que as habilidades dos poetas não viam da sabedoria, mas de uma inspiração natural e entusiástica. Por último foi aos artesãos, que novamente lhe decepcionaram, pois estendiam seus conhecimentos artísticos a áreas que não lhes pertencia. Sócrates percebeu que os mais declaradamente sábios eram os que menos possuíam sabedoria e que os homens ditos inferiores, esses sim se aproximavam da sabedoria de fato. Foi, então que Sócrates acreditou ter entendido o recado dos deuses: o conhecimento dos homens é pobre e falho e, portanto todos aqueles que acreditam saber das mais variadas coisas de nada realmente sabem. “a visão dos homens vale pouco ou nada, e que é claro que eles (deuses) não disseram isso a Sócrates, mas apenas usaram meu nome para me colocar de exemplo”. O mais sábio dos homens seria aquele que reconhecia sua ignorância, daí a máxima socrática. Após isso, Sócrates, obedecendo aos deuses, continuou a questionar cidadãos e estrangeiros para ver se tinham sabedoria e, quando chegava à conclusão de que não tinham, tomava para si o papel dos deuses e os mostrava que não eram sábios. Os primeiros foram esses que não aceitaram que não eram sábios, uns dos muitos inimigos que conquistou.

A defesa de Sócrates é, em diversos aspectos, bastante religiosa, o que se contrapõe trivialmente às suas acusações. O próprio Meleto diz não mais que ele crê em outros deuses, mas que ele não crê me nada. O fato é que independente do que fosse dito ali, os atos de Sócrates não seriam perdoados. Por fim, após sua condenação, sob tradição de Atenas, lhe é oferecida uma opção mais amena que a pena capital, que o proibiria de expressar qualquer uma de suas ideias novamente. Isto parece a Sócrates ainda pior do que a morte, principalmente porque ele acreditava na imortalidade e assim não tinha motivos para temer o fim de sua vida. Voluntariamente, ele aceita a pena e se compromete a tomar a cicuta. Os seus últimos momentos são retratados no diálogo Fédon e também na pintura do francês Jacques-Louis David. A vida de Sócrates fez dele uma pessoa amada por muitos, mas sua morte o eternizou como um símbolo.

“Mas tudo o que vos peço é que quando os meus filhos ficarem adultos, que os puni, atenienses, atormentai os garotos do mesmo modo que eu atormentei a todos, quando parecer que eles cuidam mais das riquezas ou de outras coisas do que da virtude. E, se acreditarem ser qualquer coisa não sendo nada, que os reprovai, como fiz convosco: não vos preocupeis com aquilo que não vos é devido.

E, se fizerdes assim, teremos o que é justo, eu e os meus filhos. Mas já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para a vida. Mas quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para os deuses.”

MAIEÛTICA E ANÁLISE CONCEITUAL

Bem, tendo até aqui exposto uma parte significativa da personalidade de Sócrates, discutamos agora, sob uma perspectiva mais técnica, como realmente funcionava o seu método. Para começar, é importante deixar claro que a abordagem de Sócrates é aporética, ou seja, ela não se compromete a chegar a conclusões, mas sim fomentar um desenvolvimento pessoal no indivíduo que o guiaria a um estágio mais próximo do conhecimento e distante da mera opinião. Outra característica muito importante é a ironia — como vimos, Sócrates acreditava que tinha o dever divino de explicitar a ignorância das pessoas —, as pessoas se dirigiam a ele e indagavam-lhe sobre a natureza de alguma coisa complexa, como a justiça, por exemplo, esperando que ele fosse lhes dar uma resposta simples; em vez disso, Sócrates iniciava uma série de perguntas à própria pessoa sobre o assunto, que normalmente acreditava já ter alguma verdade prévia, por exemplo, sobre o que é a justiça, e apenas se utilizando de perguntas simples ela era capaz de demonstrar a pessoa que a verdade que ela acreditava possuir é, na verdade, incongruente. Sabendo disso, o primeiro passo para a pessoa ter sua resposta era repensar seu preceitos.

O significado que atribuímos cotidianamente a ironia, no entanto, não se distancia tanto da utilizada por Sócrates, quando usamos do humor para evidenciar o quão absurda uma ideia é, estamos, com efeito, usando seu método. É claro que esse método não pode ser empregado para qualquer tipo de questão, mas apenas àquelas que pressupõem o conhecimento prévio do indagador; sendo assim, percebe-se uma natureza proto-racionalista nos pensamentos de Sócrates, que irão aflorar de vez em seu discípulo Platão. Não obstante, ele próprio demonstra em alguns dos diálogos que acredita que todo o conhecimento reside no homem, daí o nome de seu método “maiêutica”, que significa parteira em grego. Assim como sua mãe, ele acreditava possibilitar que as pessoas dessem a luz, mas, no seu caso, não a pessoas e sim a ideias.

Por último, temos que estudar a natureza das perguntas que eram feitas por Sócrates, sendo estas do tipo “o-que-é-x”; ou seja, perguntas descritivas, por isso sua análise era dita como conceitual, porque ela tinha em seu cerne esclarecer, ou repensar, os conceitos envolvidos em sua reflexão. As respostas dadas por seus interlocutores são de um valor histórico incomensurável, pois quando ele pergunta “o que é a justiça” ou “o que é o bem”, o que o indivíduo expressa não é apenas uma visão pessoal, mas sim uma visão tradicional. Na fala do interlocutor, nós podemos ler os preconceitos de um homem médio que viveu há milhares de anos atrás. Todos aqueles que responderam a Sócrates tem o peso de 2500 anos expondo as falhas de seus raciocínios, levanta a dúvida sobre como os nossos sucessores reagirão aos nossos preconceitos; o único que conseguiu manter-se sábio foi o próprio Sócrates, que nunca levantou respostas, apenas questionamentos.

RECAPITULAÇÃO

  • Os sofistas surgem em um contexto de desapego ao estudo da physis como consequência das teorias desmedidas dos pré-socráticos.
  • Em decorrência do desenvolvimento político de Atenas, o objetivo dos sofistas passa a ser o ensinamento de jovens acerca da retórica.
  • O movimento sofista, inicialmente, tem dois grandes representantes: Protágoras e Górgias, que se baseavam no relativismo e no humanismo.
  • Protágoras não almejava uma verdade absoluta, mas sim uma verdade convencional, que serviria de inspiração para o pragmatismo.
  • Górgias defendia que o conhecimento era impossível e que o comportamento devia atender a uma ética situacional.
  • O movimento sofista se degenerou progressivamente até se transformar em um instrumento político-ideológico para justificar o imoralismo.
  • Sócrates, se opondo aos sofistas, não se diz detentor do conhecimento, mas o oposto disso.
  • Usa da ironia para evidenciar a ignorância daqueles que lhe procuram.
  • Auxilia o seu interlocutor a repensar seus preceitos e, consequentemente, solucionar sua dúvida.
  • Como símbolo máximo de um ser que pôs a sua alma acima de sua corporeidade material, morre defendendo seus princípios.

 

FONTES E LIVROS PARA APROFUNDAMENTO

  • Marcondes, Danilo. Iniciação a História da Filosofia Ocidental: dos pré-socráticos a Wittgenstein. (capítulo 3).
  • Platão. Apologia de Sócrates.
  • Platão.
  • Platão. Ménon.
  • Russel, Bertrand. História da Filosofia Ocidental, vol.1. (capítulos X e XI).
  • Søren Kierkegaard. O Conceito de Ironia Constantemente Referido a Sócrates.
  • Guthrie, William. Os Sofistas.

 

QUESTÕES

  1. Quais os fatores que influenciaram o surgimento dos Sofistas?
  2. Qual era o objeto de estudo dos sofistas?
  3. Por que o estudo da physis foi abandonado?
  4. O ato de receber por seus ensinamentos era desonesto por parte dos sofistas?
  5. Explique a importância da democracia para o surgimento do movimento sofista.
  6. O que era a verdade para Protágoras e Górgias e em que ponto eles discordavam?
  7. Discorra sobre o humanismo e o relativismo.
  8. Comente sobre o papel destas tendências na modernidade.*
  9. Fale sobre a influência de Górgias no ceticismo pirrônico.*
  10. O que levou o movimento sofista a se degenerar?
  11. Por que Sócrates é tão bem visto na filosofia?
  12. O que quer dizer “Só sei que nada sei”?
  13. A outra máxima socrática “conhece-te a ti mesmo” ainda é válida no mundo contemporânea? Se sim, há mudanças em relação a seu sentido original?
  14. Qual a relação entre a imortalidade e o inatismo socrático?
  15. Por que Sócrates não nos deixou obras escritas?
  16. Use do método socrático contra suas próprias ideias ou dos seus amigos para ver até que ponto elas são coerentes.
  17. O que é maiêutica? Trace um paralelo entre ela e a antilogia. Você acredita que existem verdades que não sejam, a uma análise mais profunda, incongruentes?
  18. Que aspecto do pensamento sofista apresenta um ataque à visão idealista de Sócrates?
  19. Platão discorda de Sócrates em relação a alguma coisa? Se sim, ele consegue refutá-la?*
  20. O que Nietzsche quer dizer quando diz que a filosofia Socrática é a supremacia do espírito apolíneo sobre o espírito dionisíaco?**

-Aula escrita por Cauan Marques

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