INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA MORAL
Nesta aula, adentraremos numas das partes mais relevantes do estudo da filosofia aristotélica: a ética e a moral. Aviso-vos de antemão que este assunto é relevante não só pelo papel que a teoria ética de Aristóteles exerce na contemporaneidade, mas também devido ao fato ímpar de ter sido o primeiro sistema moral completo da filosofia ocidental. Por completo, quero dizer que esse sistema é altamente coerente e integra, em unidade, o corpus aristotelium; não sendo, pois, uma mera porção isolada de sua filosofia, mas um ramo que permeia todos os seus raciocínios: desde a política até a metafísica. Pode-se argumentar com razão que Sócrates e Platão já haviam prescrutado os tortuosos caminhos do estudo da filosofia moral e alcançado fórmulas bem assertivas ― temos, por exemplo, A República, que trata minuciosamente do assunto da Justiça e, ainda de quebra, a relaciona aos outros campos de estudo da filosofia ―; porém, a própria ideia de sistema, sob definição rigorosa, pressupõe a atitude de sistematização, o que não encontramos propriamente no pensamento platônico (até porque, como vimos na aula 4.1, a ideia de sistematização é fruto da filosofia aristotélica). Os textos platônicos têm uma natureza visivelmente literária ― o que de forma alguma os torna menos importantes do ponto de vista da investigação filosófica ―, enquanto que os textos aristotélicos têm uma natureza mais acadêmica, o que se explica muito bem pelo fato de serem anotações que o pensador utilizava para ensinar seus alunos no Liceu.
Certo, mas o que é moral e ética? Qual a diferença das duas e qual seus objetos de estudo? Essas são perguntas particularmente importantes, porque é daqui que parte o começo de nossas investigações. Quanto a diferença entre moral e ética, esse é um assunto complicado de se discutir, pois ambos conceitos não têm definições tão rígidas. Pragmaticamente, costuma-se associar ética a um tipo de bondade, ou estudo desta, que jaz dentro do indivíduo; enquanto que moral parece estar mais associado às instituições e tradições externas ao indivíduo e que moldam seu comportamento, de maneira até coercitiva. No entanto, essa distinção não é tão usada em filosofia, autores como Kant e John Stuart Mill costumam usar o termo “moral” de forma a abranger tanto o que nós usualmente chamaríamos moral como o que usualmente chamaríamos ética ― isso fica bem claro no livro Utilitarismo de Mill, em que existe um capítulo tratando da sanção para sua doutrina moral, tanto interna (ética) quanto externa (moral). Essa distinção intuitiva destes conceitos pode vir a ser útil para fins explicativos, e pretendo me usar disso mais na frente quando discutirmos outras teorias da filosofia moral, mas pretendo seguir nossos estudos adotando a mesma posição que o autor James Rachels adota em sua obra Os Elementos da Filosofia Moral, que é não distinguir os dois termos, tratando-os de maneira equivalente. Para um primeiro contato com este assunto é bem indicado levar isso em conta. Por último, eu gostaria de repassar uma outra ideia apresentada por Rachels em seu texto:
A filosofia não é como a física. Na física, há um amplo corpo de verdades estabelecidas que os iniciantes têm que pacientemente dominar. (Professores de física raramente convidam seus estudantes a terem suas próprias ideias sobre as leis da termodinâmica.) Certamente há controvérsias não resolvidas na física, mas isso tem lugar em face do pano de fundo de um acordo amplo. Na filosofia, em contraste, tudo é controverso – ou quase tudo. Algumas das questões fundamentais ainda estão em disputa. Uma boa introdução não tentará esconder esse fato um tanto embaraçoso.
Os Elementos da Filosofia Moral (1986), James Rachels
Ou seja, lembrem-se que o objetivo de vocês ao ler este texto não é simplesmente decorar e entender o pensamento ético aristotélico, muito menos aceitá-lo de bandeja; pelo contrário, espera-se que vocês o estudem de maneira critica, buscando reagir as teses de Aristóteles, se concordam com elas, se discordam, se elas lhes trazem repulsa, vergonha, desespero ou qualquer sensação. Parte de estudar filosofia moral é desenvolver seus próprios sentimentos morais. Cada um de vocês que está lendo este texto agora tem crenças e convicções, coisas que consideram impensáveis ou indispensáveis, todos esses sentimentos se desenvolveram em vocês ao longo de suas experiências de vida e são fundamentais para esse estudos. Por outro lado, esses sentimentos prévios, se não podados adequadamente, podem acabar por cegar seus raciocínios. A filosofia moral é, sem dúvida alguma, um dos estudos mais difíceis que existem, pois se trata de criticar algo muito pessoal, que são nossos sentimentos. Sem eles, nenhuma investigação ética seria possível, mas devemos estar dispostos a reconhecer que as vezes nossas convicções contradizem os princípios sobre as quais deviam se apoiar, isto quando há algo sobre a qual se apoiam.
VALORES INTRÍNSECOS E EXTRÍNSECOS
Logo no começo de sua reflexão em Ética a Nicômaco, Aristóteles questiona-se qual seria o bem do homem, isto por meio de uma constatação bastante interessante. Diz Aristóteles que todas as coisas tendem a algum bem em particular, as artes (técnicas), investigação científica, ações e escolhas, todas tentam alcançar alguma coisa. O bem da arte médica é a salvação da vida de um doente, a da arte de criar instrumentos é criar instrumentos de alta qualidade e assim por diante. Não obstante, algumas coisas parecem ser boas por si próprio, ou em atividade como ele chama; enquanto que, em outros casos, o bem se distingue da própria ação, sendo pois um produto deste.
Toda arte e toda investigação, e semelhantemente toda ação e toda escolha parecem tender a um bem qualquer; por isso, corretamente declaram que todas as coisas tendem ao bem. (Mas parece existir certa diferença entre os fins, pois alguns são atividades, e outros, feitos distintos delas mesmas. E onde existe um fim distinto das ações, nestes casos, os feitos são por natureza melhores do que as atividades).
Ética a Nicômaco, Aristóteles
Dessa forma, o feito de salvar uma vida é melhor do que a atividade médica, pois aquela é o fim desta. A melhor maneira de entender isso é por meio da ideia de valores intrínsecos e valores extrínsecos. Atividades que tem valor intrínseco são aquelas que valem a pena ser feitas apenas por si próprias e não pelas consequências que ocasionam ou podem ocasionar. Diferentemente, atividades com valores extrínsecos são aquelas que não são feitas por si mesmas, mas por aquilo que alcançam ou podem alcançar. Por exemplo, existem pessoas que não gostam de estudar e ainda assim passam o dia todo estudando e se empenhando para serem aceitos em uma universidade. O fato é que essas pessoas não gastam seu tempo estudando pela realização intelectual do aprendizado, mas porque acreditam que dessa forma poderão conseguir um bom emprego que lhes trará estabilidade financeira e consequentemente fará de suas vidas adultas mais confortáveis. Por outro lado, temos também pessoas que gostam de estudar, não porque querem conseguir um emprego dos sonhos ou ter muito dinheiro, mas simplesmente porque estudar lhes dá prazer. Temos aqui a mesma atividade e vemos que para pessoas diferentes ela pode ser tanto vista como um fim em si mesma e um meio para um fim distinto de si.
Aristóteles defende que quando o fim de uma atividade é apenas um meio para alcançar o fim de outra atividade, esta outra é melhor do que a primeira. A melhor de todas as atividades, portanto, seria aquela que levaria a um bem que é desejável por si mesmo por todas as pessoas no universo. O bem supremo seria, então, esse fim que todos buscariam naturalmente e que fosse, sob todos os efeitos, inútil; inútil pois não serviria a nenhum fim, apenas a si próprio. Claramente que existe um pressuposto por trás desse tal bem supremo, isto é, que ele existe. Caso contrário, teríamos uma corrente infinita de desejo que não desabaria em lugar nenhum, o que genericamente podemos chamar de uma noção infinitista. No pensamento contemporâneo, contudo, teremos sim pensadores que irão se opor a existência desse tal bem supremo, por exemplo, Arthur Schopenhauer, que vai falar que a felicidade é inalcançável, pois ela se projeta constantemente sobre o desejo daquilo que ainda não se tem e que, uma vez possuído, já não tem mais valor.
Se dentre todas as coisas a serem feitas existe precisamente um fim que desejamos por ele mesmo, e senão por causa dele, e se não desejamos tudo tendo em vista outra coisa (pois se progride assim até o infinito, por conseguinte o desejo seria vazio e inútil) é evidente que esse fim seria o bem, o bem supremo.
Ética a Nicômaco, Aristóteles
Aristóteles parece sentir uma repulsa natural pelo infinitismo, pois muitas de suas provas se baseiam em uma “absurdificação” de tal conceito. Quando utilizando de provas por redução ao absurdo ― que já comentamos na aula 1.4, quando falamos sobre Zenão ―, ele conclui como falsa qualquer hipótese que leve a uma conclusão infinitista. Em outras palavras, ele toma por garantido que o desejo não é vazio e sem significado. Logo, o primeiro trabalho que ele terá de desenvolver é exatamente provar que existe tal bem supremo, que todas as pessoas no mundo buscam e que, depois de obtido, não se necessita de mais nada. Mas qual seria esse bem e qual a atividade que o teria por fim?
O filósofo crê que essa atividade seria a política, pois é por meio dela que se controlam todas as outras artes, como a arte da guerra, da medicina, da retórica, da gestão e todas mais. Não obstante, é também a política que decide quais artes vão ser estudadas (e até quando) e quais não serão; assim como o que cada cidadão deve aprender. A política faz uso de todas as demais ciências e todos os seus fins são, pois, meios para o fim da arte política. Essa ligação entre política e ética é fundamental para entender o pensamento aristotélico e a sua ideia do homem enquanto animal político (zoon politikon). Ainda assim, mesmo que tomemos isso por garantido, qual seria esse tal fim que visa a política?
Temos atualmente uma visão mais factual e crua da política, produto de uma análise científica, que nos faz conceptualizá-la como o estudo das relações de poder em sociedade, as quais se desenvolvem sem muito planejamento e, até certo ponto, de maneira arbitrária, embora não aleatória. O estabelecimento dessas relações não se dá por meio de uma deliberação coletiva que visa algum bem, mas muitas vezes surgem espontaneamente e a partir de necessidades básicas ou interesses; ao menos é uma ideia superficial que se tem da política nos dias de hoje.
Para Aristóteles, as coisas são bem diferentes, a sua visão é profundamente idealizada e vê a constituição da pólis como um estágio natural no desenvolvimento do homem como animal ― apesar de ele considerar as diferenças entre homens e animais como sendo em relação a natureza e não grau, como mais tarde será defendido por Darwin. O bem supremos fim dessa atividade seria, supõe ele, a felicidade. Mas ai surge outra questão: o que é a felicidade? Ele busca analisar as principais ideias defendidas no meio comum: de que seria o ouro, a fama, o prazer e muitos outros. A fama e o dinheiro são descartados bem facilmente, pois é evidente que não se ama o dinheiro por ele mesmo, mas pelas coisas que ele pode comprar. Uma mala com milhões de dólares para uma pessoa perdida no deserto a dias não vale nada; a fama também não parece ser o bem supremo, pois ela é dependente de outras pessoas e não da própria pessoa, a necessidade dela demonstra uma espécie de fraqueza de caráter. Quanto ao prazer, iremos analisar mais calmamente em seguida.
O filósofo chega a conclusão de que existem três tipos principais de vida: a devotada ao prazer, a política e a contemplação. Os primeiros, diz ele, vivem como animais, movidos unicamente pelo desejo do prazer degradam a si mesmos como seres não humanos. Os segundos parecem visualizar na honra a finalidade da política, contudo, da mesma forma que foi dito quanto a fama, o bem parece estar mais em quem tem a capacidade de atribuir a honra a quem está sendo honrado. Porém, pode-se também supor que o que vale não é a honra, mas o fato de merecê-lo e, assim, a finalidade da política seria a virtude. Entretanto, Aristóteles parece não gostar dessa possibilidade, pois a virtude se confunde com o ócio completamente improdutivo, de tal maneira que aqueles que a obtivessem passariam o resto dos seus dias vegetando sem ter o que fazer (imagem que certamente ninguém ousaria chamar de bela). O último caso, ele atribui as pessoas que vivem para acumular riqueza, o que nos leva de volta a discussão acerca do dinheiro e como ele, na realidade, tem um valor extrínseco para a maior parte das pessoas. ― quanto a isso, é interessante reparar que existem pessoas que parecem ver no dinheiro alguma forma de bem intrínseco, pois abdicam de toda a felicidade da vida pelo acumulo contínuo de riquezas; porém, isso usualmente é visto como um vício e algo que comumente as leva a se arrepender nos últimos momentos de vida ou no meio desta.
Após isso, Aristóteles esboça um argumento metafísico para uma tese bastante substancial e importante: o bem não é único, mas se apresenta sobre muitas formas. Com efeito, o bem é uma qualidade particular de um sujeito, apesar de o conjunto dos bens serem uma manifestação de uma ideia universal de Bem; mas esse Bem não pode ser único para todos os sujeitos, pois os sujeitos não são únicos, muito menos universais. Os sujeitos são particulares e, portanto, o seu bem é também particular ainda que seja, simultaneamente, o Bem.
O bem é predicado tanto naquilo que é quanto numa certa qualidade, e numa relação; mas a essência, aquilo que é por si mesmo, é por natureza anterior à sua relação (pois ela parece ser uma ramificação ou acidente do ser), de modo que não haveria uma Ideia comum correspondente aos bens. Além do mais, a palavra “bem” é enunciada de tantas maneiras quanto a palavra “é” […] . é evidente que o bem não pode ser uma noção geral, universal e única, pois não seria enunciado em todas as categorias, mas somente em uma.
Ética a Nicômaco, Aristóteles
GRAUS DE FINALIDADE
O conceito de graus de finalidade está ligado ao fato de coisas com valor intrínseco serem melhores do que aquelas com valor extrínseco, o que nos leva de volta a enunciar que a felicidade deve ser autossuficiente, isto é, bastar-se a si mesmo. Ainda assim, falta buscar saber defini-la propriamente. Assim sendo, a felicidade deve estar em uma atividade e não propriamente em um produto estático, pois isso nos levaria ao estágio de vegetação que antes falamos sobre. A felicidade não é somente uma atividade, mas é a atividade mais adequada a pessoa, pois é nela que a pessoa pode trabalhar sua virtude, seu bem particular, como vimos anteriormente. Cada pessoa, pois, tem uma virtude, o bem é atividade que exercita constantemente essa virtude.
[Estabelecemos que a função do homem é um certo tipo de vida, e esta é uma atividade da alma e ações segundo a razão; e se é assim, a do homem excelente é completá-la bem e belamente, e cada um fará bem, segundo a virtude que lhe é própria] o bem pertencente ao homem vem a ser uma atividade na alma segundo a virtude e, se são inúmeras as virtudes segundo a melhor e a mais perfeita.
Ética a Nicômaco, Aristóteles
A partir dai identifica-se a finalidade da política: levar os cidadãos a praticarem o bem. Aristóteles acredita que a virtude, como um bem, é algo que deve ser trabalhado, é fazendo boas ações que se torna uma boa pessoa. A politica deve identificar as virtudes de todos os cidadãos e levá-los a praticá-las constantemente. Ademais, a teoria ética aristotélica é, primeiramente, teleológica, pois ela busca a maximização do bem a longo prazo e, também, perfeccionista, pois ela busca tornar os indivíduos seres moralmente perfeitos. Porém, existem alguns problemas com essa tese, como o ataque a liberdade que é a determinação da virtude de um indivíduo pelo governo; isso destaca evidentemente os problemas da visão naturalista de Aristóteles, que classificava as desigualdades como necessárias na natureza. Não a toa, atribuirá virtudes como submissão e delicadeza para as mulheres e o trabalho para o escravo, coisas que hoje são claramente odiáveis. O fato é que existe muito no cerne da teoria aristotélica que ainda deve ser estudado cuidadosamente, como quais seriam as virtudes do homem? Como melhor atingi-las (o que se confunde com buscar a melhor forma de governo)?
Nas próximas aulas, abordaremos um pouco mais sobre tudo isso e também falaremos sobre outros aspectos da ética aristotélica como a justiça, a noção de merecimento e télos. Não obstante, também trabalharemos exemplos práticos de casos polêmicos em que podemos fazer uso da ética da virtude; além é claro de falarmos também sobre a retomada da teoria aristotélica na modernidade por Elizabeth Anscombe e Philippa Foot.
-Aula escrita por Cauan Marques
Próximo: Aula 4.6 - Ética e Virtude (Parte 2)
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