Como vimos na última aula, as investigações morais de Aristóteles iniciam-se com a constatação de que os indivíduos têm ideias conflitantes sobre o que seria o melhor para a humanidade. Por um lado, qualquer um deles pode apresentar uma série de diferentes coisas que indubitavelmente seriam consideradas boas sob a ótica do senso comum; tais como ter bons amigos, sabedoria, uma vida prazerosa, saudável e abundante, e ser um indivíduo virtuoso. Por outro, quando se questiona qual desses seria o bem supremo, a qual todos os outros se subordinariam, os homens falham em alcançar consenso, levando a uma polêmica e incomensurável discussão. A dificuldade reconhecida por Aristóteles seria, pois, não elencar tudo aquilo que a humanidade sabe ser bom, mas sim reconhecer, dentre tudo isso, qual seria o melhor. O melhor dos bens deveria a) ser desejado apenas por si próprio e nunca visando algo mais, e b) todos os outros bens deveriam ser desejados visando-o. Esse bem, segundo Aristóteles, seria a eudamonia, ou bem estar ou ainda felicidade.
Vale ressaltar que essa forma de bem estar deveria ser prioritária em relação a qual outra coisa, pois todas a ela se subordinavam – saúde, riquezas, honras e outros desejos --, e que ela estaria também associada especificamente a espécie humana. Segundo Aristóteles, os seres humanos são fundamentalmente diferentes dos animais, o que se expressa na composição de suas almas – o termo “alma”, nesse contexto, não tem a conotação cristã usual, mas sim a conotação de mente, psicológica e intelectual, ou ainda cultura, em alguns casos. Vejamos então como se daria essa diferença entre as almas humanas e animais para Aristóteles.
PARTES DA ALMA HUMANA
Em suas obras dedicadas ao estudo da Biologia, ciência dos seres vivos, e da Psicologia, ciência da alma, Aristóteles fez uma categorização dos recursos psicológicos das espécies. Segundo ele, a alma animal é moldada por uma série de capacidades conectadas, a saber, alma nutritiva, responsável pelo crescimento e pela reprodução; alma locomotiva, responsável pelo movimento; e alma perceptiva, responsável pelos poderes de percepção. Os seres humanos, diferentemente, apresentam não apenas essas três partes inferiores da alma, como também uma parte superior, a parte racional. Aristóteles reconhecia a racionalidade humana como supra-animal, não meramente uma extensão dos poderes de percepção, mas uma habilidade cognitiva de entendimento que se distinguia em espécie dos esforços não-intelectuais do mundo animal. Ora, era, pois, óbvio para Aristóteles que as coisas inferiores deveriam se subordinar às coisas superiores – essa é praticamente a definição da relação entre superioridade e inferioridade para o filósofo --; destarte, implicando que a parte irracional da alma deveria se subordinar a parte racional da alma.
Futuramente, nas aulas de filosofia contemporânea, falaremos sobre um pensador político russo-britânico chamado Isaiah Berlin, mundialmente reconhecido como um dos mais importantes filósofos e historiadores – de ideias -- do século passado. Em 1969, ele publicou um livro chamado Four Essays On Liberty (Quatro Ensaios Sobre Liberdade), em que se encontra um influente artigo Two Concepts Of Liberty (Dois Conceitos de Liberdade) – que havia em 1958 sido proferido em sua palestra inaugural na Universidade de Oxford e, posteriormente, transformada em panfleto --, em que o autor, ao analisar a história dos conceitos defendidos de liberdade ao longo dos milhares de anos da filosofia, chega a dois principais grupos conceituais de tal ideia. Inicialmente temos a liberdade “negativa”, que nada mais é do que a ausência de interferência externa nas ações de um indivíduo, o que poderíamos entender como a noção mais direta e intuitiva da liberdade que temos sobre nossas próprias ações; e a liberdade “positiva”, que tem a ver com ser o sujeito de suas próprias ações e não apenas aquele que as põe em prática, como um objeto, está associado a existência de uma parte interna superior, seja em racionalidade ou em virtude, e uma parte interna inferior, que é movida por ilusões ou por influências externas indiretas.
Podemos dizer, com um bom nível de certeza, que Aristóteles tende bem mais para ser um partidário da liberdade positiva do que da negativa. Primeiramente, ele reconhece que ações livres devem a) poder ter causado consequências diferentes das que causaram, caso contrário elas seriam consequências necessárias – não se diz que uma pedra age com malícia por cair no pé de alguém, pois isso certamente não poderia acontecer de outra forma, já que a pedra está sendo controlada pela atração gravitacional – e não consequências deliberadas, e b) passarem pelo processo de deliberação, que nada mais é do que a submissão da alma a sua parte superior, a racionalidade. Quando queremos fazer uma ação que, apesar de momentaneamente prazerosa ou satisfatória, nos causará dores ou infortúnios futuros, como tentar performar um “duplo mortal carpado” sem treinamento necessário, a parte racional da nossa alma deve repreender a parte irracional guiada pelos desejos acidentais, a isto se chama deliberação. A relevância dessas observações está no fato de que a liberdade é parte fundamental do estudo da moral, pois é consenso entre os pensadores do tema que apenas ações livres – ou autônomas – podem determinar agentes bons ou ruins, ainda que quanto às ações em si haja uma divergência.
Adiante, visualizamos em Política, a forma como Aristóteles faz um estudo espiritual da sociedade grega, visando observar o desenvolvimento e evolução da alma humana e as diferenças natas que devem existir entre a alma do adulto e da criança, do homem e da mulher, e do mestre e do escravo. Novamente, incorrendo em sua falácia naturalista, Aristóteles explica às desigualdades existentes na sociedade grega em termos de diferenças naturais entre opressores e oprimidos.
Pois a alma, por natureza, contém uma parte que governa e uma parte que é governada, à qual atribuímos diferentes virtudes, isto é, a virtude do racional e a do irracional. É claro, então, que o caso é o mesmo também com as outras instâncias de governante e governado. Portanto, existem por natureza várias classes de governantes e governados. Pois o livre governa o escravo, o macho a fêmea e o homem a criança de uma maneira diferente. E todos possuem as várias partes da alma, mas as possuem de maneiras diferentes; pois o escravo não tem a parte deliberativa e a fêmea a possui, mas sem autoridade total, enquanto a criança a possui, mas de forma não desenvolvida.
(ARISTÓTELES, Política)
Diante do exposto, é evidente a relação lógica entre a política aristotélica e suas teorias éticas, não a toa sua concepção política é chamada de moralista, pois não se compromete em lidar com as instituições e mecanismos já existentes na estrutura política da sociedade, mas prefere idealizá-las e elaborar condutas que visam não o funcionamento da sociedade como existe factualmente, mas sim o seu funcionamento na sociedade como deveria existir; isto é, basear teorias e atitudes em idealizações sistemáticas da realidade e não em seus fenômenos palpáveis. Segue daí que, da mesma forma que ele institucionaliza a subordinação da parte irracional da alma para com a parte racional, ele também institucionaliza a subordinação dos seres “inferiores” aos seres superiores. Mais adiante, depois de discutirmos sobre a noção de justiça aristotélica, poderemos compreender a sua defesa da Aristocracia.
Como comentado anteriormente, Aristóteles acreditava que o bem humano deveria estar associado a alguma coisa específica da humanidade, o que agora suspeitamos que seja a parte racional da alma. Dado que é tido por garantido que seja algo particular da espécie humana. Por que haveria a humanidade de ser racional, se não para usar esta mesma racionalidade? Lembremo-nos que isso é parte da visão aristotélica do Cosmos, de que tudo no universo está conectado e tem um propósito ulterior, ou em suas próprias palavras, Télos. Vejamos então o que é télos e que papel isto desempenha na ética aristotélica.
JUSTIÇA
De acordo com Aristóteles, a justiça é teleológica e honorífica; ou seja, justiça trata-se de dar às pessoas o que elas legitimamente merecem e realizar os seus propósitos de existência. Os dois pressupostos que aqui temos são: a existência do conceito de merecimento, isto é, o que dignifica um feito não são os bens ou honras que ele recebe, mas o feito em si gera o dever de premiação, o merecer precede o receber; e o segundo é a tese de que as coisas – pessoas, instituições, estruturas, comunidades e etc. – tem propósitos que devem ser respeitados e seguidos. Com efeito, um passo fundamental para determinar se algo é justo ou injusto é entender o propósito final do elemento em questão.
No livro Justiça: o que é fazer a coisa certa?, o filósofo e professor de Harvard Michael Sandel, ao explicar sobre o conceito aristotélico de télos, apresenta a história real do jogador de golfe Casey Martin, que, buscando justiça na sua atividade esportiva, em decorrência de uma deficiência, precisou levantar a questão de qual seria o objetivo fundamental do golfe.
Casey Martin era um jogador de golfe profissional que tinha um problema na perna. Devido a problemas circulatórios, andar nos campos era muito doloroso para Martin e representava um sério risco de hemorragia e fratura. Apesar da deficiência, Martin sempre se destacou no esporte. Ele jogou na equipe de Stanford na época da faculdade, depois tornou-se profissional
Martin pediu permissão à PGA (Associação Profissional de Golfe) para usar um carrinho durante os campeonatos. A PGA negou-lhe o pedido, citando o regulamento que proibia carrinhos em campeonatos profissionais. Martin levou o caso a justiça. Ele argumentou que a Lei dos Americanos com Deficiência (1990) exigia acomodações razoáveis para pessoas com deficiência, desde que a mudança não “alterasse fundamentalmente a natureza” da atividade.
(SANDLE, 2008)
Pois bem, o que de fato estava em jogo era saber se ao endereçar o uso de um carrinho para a locomoção de Martin, ele estaria recebendo algum tipo de vantagem sobre os outros indivíduos. Apesar de muitos jogadores de golfe famosos terem expresso essa opinião, essa tese é, ao menos questionável. Pois, se pararmos para pensar, Martin estaria submetido a um desvantagem muito maior ao ser forçado a andar pelos longos campos de golfe de buraco em buraco, o que poderia até lhe causar sérias complicações médicas, do que estariam os outros jogadores que não apresentassem nenhuma forma de deficiência ao terem de competir com ele utilizando o seu carrinho para se locomover. Contudo, esse argumento também apresenta uma falha. Vamos considerar, dessa vez, uma corrida atlética; temos diversos corredores, alguns mais preparados, outros menos, uns mais altos e robustos, outros menores e franzinos; e, em meio a todos esses, temos João. Infelizmente, assim como Martin, João apresenta um problema circulatório que o impede de correr muito rápido ou por muito tempo, o que sem sombra de dúvidas impossibilita ele de praticar sua atividade corretamente. João é tão desfavorecido que ele sequer tem uma chance real de competir com os outros corredores. A questão é: poderia João usar um carro durante as corridas para melhorar seu desempenho e não prejudicar sua saúde? Ora, essa pergunta soa ridiculamente mais fácil de ser respondida, pois é claro que isso seria errado. Seria errado, pois, porque ninguém tem dúvidas de que a habilidade de correr faz parte da natureza fundamental da corrida. De fato, corridas atléticas são atividades que cultivam e honram essa aptidão física, se João não a possui, ainda que por causas que fogem de sua própria vontade e determinação, sua participação no esporte não faz sentido.
Agora, levantemos a seguinte pergunta: a habilidade de andar de buraco a buraco é fundamental no Golfe, isto é, a aptidão física de se locomover é algo que define os jogadores de golfe, algo que o esporte e seus torcedores honram e exigem dos bons jogadores? Bem, não sei quanto a vocês, mas a maioria dos simuladores de golfe que eu já vi não se importam com as caminhadas, mas preferem focar nas habilidades com o taco e no planejamento dos caminhos mais eficientes para se alcançar o buraco em um menor número de tacadas. Não obstante, a maioria das pessoas que jogam golfe por diversão usam o carrinho e isso não parece afetar em nada a natureza da prática esportiva. Se esse argumento ainda não lhe basta, talvez sirva ler o que foi dito no veredito do juiz John Paul Stevens que, em nome da maioria, se pronunciou a favor de Martin.
Desde o início, a essência do esporte é o arremesso da bola – usar os tacos para levar a bola a partir da marcação até o um buraco a uma determinada distância com o mínimo possível de tacadas [...] um esporte de baixa intensidade, a fadiga do jogo é primordialmente um fenômeno psicológico, em que o estresse e a motivação são os ingredientes-chave.
Existe ainda um outro argumento que pode ser levantado que também está presente no livro de Sandel, o do juiz Antonin Scalia, que defendeu que fosse impossível determinar o télos de um esporte, pois estes seriam apenas atividades lúdicas e de entretimento e não apresentassem um objetivo real.
Dizer que alguma coisa é “essencial” é dizer de forma geral que ela é necessária para atingir determinado objetivo. Mas uma vez que a própria natureza do jogo não tem outro objetivo além de divertir (isso é o que distingue os jogos das atividades produtivas), é praticamente impossível afirmar que qualquer regra arbitrária de um jogo seja “essencial”.
Podemos retornar ao que dissemos antes, que esportes não são atividades puramente lúdicas que servem para divertir a todos, mas sim atividades que buscam dignificar certas competências e aptidões que não são de forma alguma arbitrárias. Isso é tão certo que muitas vezes profissionalmente se discute a modificação de regras em determinado esporte visando ressaltar ou motivar o desenvolvimento daquilo que seria a sua natureza fundamental, isto é, as qualidades que são esperadas e premiadas de bons jogadores e boas equipes. No futebol, por exemplo, tivemos há bastante tempo a implementação da lei do impedimento que, longe de ser arbitrária, buscava proibir técnicas que sumiam com as capacidades fundamentais dos jogadores. Se um jogador ficava do lado da trave do outro time e apenas esperava receber a bola com toda a sua equipe atrás da linha de meio-campo para assim marcar um gol, isso destruía parte do que há de mais louvável no esporte, a saber, o desenvolvimento de jogadas que gradualmente levam a bola de uma trave a outra, a habilidade e condicionamento necessários para lidar com a defesa do time adversário e o esforço devido de alcançar o gol. Haja vista tudo isso, justiça, ao menos para Aristóteles, está diretamente relacionada a noção de télos e de merecimento.
Voltando ao campo da política, podemos agora compreender a defesa da Aristocracia feita por Aristóteles. Para ele, justiça era dá a cada um de acordo com o seu merecimento, logo, era natural que as melhores pessoas mereciam as melhores coisas. “melhores flautas para os melhores flautistas”. Então, temos que dentre todas as atividades, a atividade política é a melhor de todas, pois o seu fim é o bem supremo ao qual todos os outros fins, de todas as outras atividades e feitos, estão subordinados. Dessa forma, para se ter justiça, o exercício da política deve ser direcionado aqueles que a merecem, isto é, os melhores homens, já que é a melhor atividade. Vale lembrar que os melhores homens seriam aqueles que uma maior parte das suas almas melhores fossem. A melhor parte da alma é a racional, o que implica que os melhores homens eram aqueles que tinham uma maior parte de sua própria alma racional. Uma outra forma de exprimir essa ideia é a de que os melhores homens seriam aqueles que melhor deliberassem, que melhor subordinasse seus desejos e ímpetos a sua forte razão e seu implacável senso de justiça.
Além disso, os melhores homens seriam os que melhor soubessem a arte da moderação. Para Aristóteles, a virtude era um meio termo entre vícios, ou por falta ou por excesso. A coragem era uma virtude, pois estava entre a covardia, a incapacidade de enfrentar seus próprios medos, e a temeridade, a imprudência descabida que fazia homens se matarem por não aceitarem reconhecer seus próprios limites. Contudo, o balanceamento de que falava Aristóteles não mirava no ponto médio entre os dois vícios, pois nunca seria fácil para um homem reconhece-lo; ele deveria, pois, sempre mirar mais naquele vicio cuja natureza mais se assemelhasse a da própria virtude. Ele afirma que a coragem é muito mais semelhante à temeridade que à covardia e, portanto, um homem balanceado deveria sempre tender para o lado do vicio por excesso, pois assim mais se aproximaria da virtude.
Nessas duas aulas introdutórias sobre o pensamento ético de Aristóteles, pudemos observar uma série de conceitos e argumentos de fundamental importância para o estudo da filosofia moral. Cabe a vocês, meus caros leitores, destrinchar tais argumentos e criticá-los ao máximo para ou decidir os que consideram mais firmes ou elaborar novos mais consistentes. O estudo da moral está apenas começando, ainda que já tenhamos de fazer escolhas o tempo todo. Pautas como legalização das drogas, aborto, suicídio assistido, pena de morte e muitas outras trazem fortes reações dos nossos sentimentos e, muitas vezes, não sabemos distinguir exatamente o porquê. Uma grande parte de saber o que é a coisa certa é buscar entender o que se deve levar em consideração para tomar uma boa ação. Infelizmente isso é muito mais complicado do que parece. Na próxima aula, iremos buscar entender a física e a metafísica de Aristóteles, compreendendo de uma vez por todas o que é essa tal de “metafísica”. Mais adiante, daremos uma atenção aos autores contemporâneos que foram influenciados pela teoria ética aristotélica, em especial, os comunitaristas.
-Aula escrita por Cauan Marques
Próximo: Aula 4.7 - Física Aristotélica
Bons Estudos!
As aulas do Curso NOIC de Filosofia são propriedade do NOIC e qualquer reprodução sem autorização prévia é terminantemente proibida. Se você tem interesse em reproduzir algum material do Curso NOIC de Filosofia para poder ministrar aulas, você pode nos contatar por esta seção de contato .
Para dúvidas e sugestões, fale conosco pela seção de contato ou pelas nossas redes sociais (Facebook e Instagram).