Haja vista que nosso primeiro contato direto com filosofia moral foi com Aristóteles, não é de ser surpreender que nosso primeiro contanto direto com epistemologia também seja por meio dele. Entretanto, estudar a física aristotélica é fundamentalmente diferente de estudar o seu sistema ético. Enquanto a ética das virtudes ainda é relevante no contexto contemporâneo, e assim é sua teoria política consequentemente, a física clássica é substancialmente ridícula do ponto de vista contemporâneo. Comecemos a discutir, pois, como se deve ler a física de Aristóteles e que lições se deve extrair dessas leituras. A discussão aqui em pauta se inicia na sua obra Física – cujo nome é póstumo e não advindo do próprio filósofo – e segue sendo desenvolvida em seu Dos Céus. Basicamente, pode-se dizer que o objeto de estudo desses trabalhos é a physis -- em alguns aspectos a mesma physis que foi estudada pelos milesianos, em outros algo profundamente distinto --, que significa algo similar a natureza, embora não no sentido primário que nos acomete ao pensarmos nessa palavra. Physis não representa a natureza em sua dimensão palpável e factual, como os fenômenos, as coisas, os seres vivos e etc.; em vez disso, o significado de natureza aqui remete a pergunta “qual a natureza de alguma coisa?”. Quando vemos uma semente, sabemos que ela pode vir a se tornar uma árvore, então é da natureza de uma semente tornar-se uma árvore. A physis aristotélica é, dessa forma, teleológica – assim como boa parte do pensamento de Aristóteles, como já deve estar claro a esse ponto --, ou seja, dirige-se aos fins das coisas. Essa é a primeira grande diferença entre a física aristotélica e a física moderna, mas há algo que é, de uma perspectiva contemporânea, muito mais significativo. A física aristotélica não é falseável!
FALSEABILIDADE
Bem, esse definitivamente é um tópico de filosofia contemporânea e não antiga, mas acho que seria interessante falar algumas coisas sobre para fazer das falhas da “ciência” aristotélica mais evidentes. Não obstante, ter um conhecimento básico sobre isso vai facilitar o seu futuro com epistemologia, ainda que você não a entenda completamente – o que é bastante compreensível --, e também vai ter proporcionar um conhecimento deveras relevante para o nosso contexto político atual. Certamente você já deve ter tido contato com termos como “obscurantismo”, “anti-cientificismo” e principalmente “pseudociência”. A grande maioria das pessoas acredita saber perfeitamente a diferença entre ciência e pseudociência, mas, como veremos ao longo da filosofia moderna, a demarcação entre ambas é bastante complicada. Até os dias de hoje, muitos filósofos se dedicam ao estudo da história e dos limites do conhecimento científico.
A começar, hipóteses científicas não têm que estar certas, o que, por sua vez, não quer dizer que a ciência está errada. Por exemplo, a física newtoniana é uma hipótese científica, mas é uma hipótese que, fora do seu escopo experimental, é incorreta. Em outras palavras, quando uma teoria científica substitui outra como mais satisfatória para os fenômenos observados, a antiga teoria não se torna uma pseudociência. No século XX, teremos um pensador chamado Karl Popper, um dos mais proeminentes filósofos do século e um dos pais da epistemologia contemporânea. Popper vai enunciar o célebre princípio da falseabilidade, ou verificabilidade, que diz que hipóteses científicas não são aquelas que estão certas, mas sim aquelas que podem ser refutadas caso estejam erradas; ou seja, se alguém lhe diz que há um bule invisível orbitando Saturno em meio ao seu anel, de tal maneira que sua presença não possa ser constatada experimentalmente, então essa afirmação não é científica. O bule pode de fato existir, mas caso ele não exista, não se poderá constatar sua não-existência, logo a hipótese de sua existência é pseudocientífica. Logo, percebemos que hipóteses pseudocientíficas podem também estar certas.
Isso certamente deve confundir a maioria das pessoas que nunca tiveram contato com epistemologia, ou que ainda pensam em termos de ciência moderna – por moderna entenda aquela do século XVI ao XVIII --, pois têm uma concepção positivista da ciência, uma concepção ainda bastante dominada pelo conceito moderno de progresso. As pessoas, mesmo uma boa parte dos cientistas, pensam na ciência como um método de acumular verdades, daí emerge a idealização de algumas figuras como seres iluminados que viram a verdade. Infelizmente – na verdade, eu diria felizmente --, a ciência não é assim; ela não se constrói com um indivíduo, mas por meio de uma comunidade; ela não está somente nas mudanças de paradigmas, mas nos paradigmas em si; e, também muito importante, ela não progride acumulando verdades, mas eliminando hipóteses falsas. Cada teoria científica apenas o é, pois podem – e provavelmente serão – refutadas eventualmente, o que não quer dizer, contudo, que a teoria esteja errada por completo. A mecânica newtoniana não explica satisfatoriamente o movimento de objetos absurdamente grandes e massivos, assim como não explica o movimento de objetos extremamente pequenos e insignificantes; mas ela explica perfeitamente o movimento dos corpos na superfície da terra e nos planetas mais próximos, de tal maneira que, para a maioria dos cálculos de dinâmica, ainda utilizamos a mecânica clássica. Onde muitos podem ver uma espécie de fraqueza na ciência, é onde verdadeiramente está o seu diferencial. A ciência erra, mas aprende com seus erros. O fato de a ciência nunca assumir suas verdades como sendo inquestionáveis é o que permite que ela veja as falhas das suas teorias e as corrija.
Depois dessa discussão, podemos conversar mais livremente sobre as hipóteses gregas acerca do cosmos e, particularmente, sobre Aristóteles. A física aristotélica é bastante intricada e coerente, a tal nível que levou o mundo ocidental a defender suas ideias por milênios. Mas o fato de suas ideias poderem ser verdade não implica que elas devam ser verdade. O mais preocupante das pseudociências é exatamente isso, por não serem passíveis de verificação, elas podem ser metamorfosear para se defender de críticas. Quando Galileu apontou seus satélites para as luas de Júpiter, a tese aristotélica da diferença natural da terra e dos outros corpos foi posta em cheque; mas a “ciência” aristotélica não vai dos experimentos aos princípios, mas dos princípios aos experimentos. Nada no mundo pode refutar uma pseudociência nos termos da própria pseudociência.
MOVIMENTO
Voltemos então para o assunto da aula em si, o que defendia Aristóteles quanto a natureza dos seres? Primeiramente, é válido ressaltar que qualquer pensador que ousasse abordar esse tema deveria antes lidar com a discussão monista-mobilista dos pré-socráticos; isto é, o movimento existe ou não existe? Aristóteles responde essa questão de maneira ímpar, ao recorrer aos conceitos de Ato e Potência. Ato é o que as coisas são de fato, imediatamente; enquanto que potência é tudo aquilo que podem potencialmente vir a tornar-se. Analisemos o exemplo clássico de uma semente: uma semente é apenas uma semente em ato, mas é potencialmente uma árvore. Dessa forma, o movimento – entenda aqui não apenas locomoção, mas mudanças em geral – existe, como afirmava Heráclito, pois todas as coisas passam de ato para potência. Contudo, por mais que as coisas mudem, elas ainda são fundamentalmente as mesmas. Em decorrência desse fato, Aristóteles estabelece a diferença entre ser e ente, que abordaremos na próxima aula acerca da metafísica.
No final da Física, o filósofo discute a ideia de um primeiro motor imóvel, que não foi movido inicialmente por nada mais. Em desacordo com a 1ª Lei de Newton, Aristóteles acredita que corpos na ausência de forças devem permanecer imóveis ou em movimento circular uniforme (?). Como os corpos estão em movimento, devem ter algo inicial que os pôs em movimentos. Esse motor inicial é essa força motriz radial que orbita os limites do universo que seria esférico, com a terra no centro. Para ter uma noção mais completa disso, vamos ver o que Russel diz em sua análise de Dos Céus:
O tratado Dos Céus expõe uma teoria simples e agradável. As coisas que estão em baixo da Lua estão sujeitas a geração e decadência; da Lua para cima, tudo é ingerado e indestrutível. A Terra, que é esférica, está no centro do universo. Na esfera sublunar, todas as coisas são compostas de quatro elementos: terra, água, ar e fogo; mas há um quinto elemento, de que se compõem os corpos celestes. O movimento natural dos elementos terrestres é retilíneo, mas o do quinto elemento é circular. Os céus são perfeitamente esféricos, e as regiões superiores são mais divinas do que as inferiores. As estrelas e os planetas não são compostos de fogo, mas do quinto elemento; seu movimento é devido ao das esferas a que estão ligados. (Tudo isto aparece, em forma poética, no Paraíso de Dante).
Os quatro elementos terrestres não são eternos, mas gerados uns dos outros: o fogo é absolutamente luz, no sentido de que o seu movimento natural é para cima; a terra é absolutamente pesada. O ar é relativamente leve e a água relativamente pesada.
(RUSSEL, História da Filosofia Ocidental vol.1)
Bem, como já comentei anteriormente, esses detalhes tem um valor muito mais mitológico e estético do que científico. Nenhum aristotélico que se preze defenderia essas ideias, literalmente, nos dias de hoje. Se nós, entretanto, tentarmos ver não o literal dessas afirmações, mas as premissas metafóricas escondidas nelas podemos ter um aproveitamento bem mais satisfatório. Ao longo dessas aulas, já discutimos bastante como os gregos não distinguiam muito evidentemente afirmações conotativas e denotativas, o que as vezes nos deixa na dúvida se eles realmente queriam dizer aquelas coisas ou estavam apenas usando analogias. Não se pode saber ao certo, mas, em certo sentido, não é preciso saber. De qualquer forma, nenhum dos casos faz com que eles estejam certos e ambas formas de análise podem trazer interpretações históricas de grande importância para a ciência.
A física aristotélica não apresenta alguns erros, ela é intrinsicamente equivocada; mas ainda assim, é um dos acontecimentos mais importante para o estudo da história da ciência. O maior pensador da história, como era defendido, pai da biologia e da lógica erudito estudioso da política e da ética, conhecedor de temas obtusos como metafísica, dizia que aquilo era a verdade. Ideias que foram defendidas por mais de mil anos e postas acima da própria liberdade humana. Ainda assim, estavam erradas. A principal reflexão que pode ser tirada disso diz respeito a arrogância humana em se achar detentora da verdade e do sentido do universo e também da ausência de liberdade para a comunidade científica. Às vezes, a despeito do desenvolvimento de nossa ciência, parecemos compelidos e atados a crenças há muito ultrapassadas.
No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da história universal, mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer.
(NIETZSCHE, Verdade e Mentira no Sentido Extramoral)
-Aula escrita por Cauan Marques
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