Aula 1.3 - Etnocentrismo e Guerra ao Terror

A partir da queda do Muro de Berlim, o historiador Samuel Huntington afirmou que, a partir desse momento, o mundo passava a disputar não mais por blocos político-econômicos, mas sim por civilizações. Manter isso em mente é essencial para compreendender a configuração do mundo pós-moderno e inclusive atual. Se filosofia é uma “amizade” com saber, não é possível desenvolver tal tipo de relação sem entender como o saber, isto é, o pensamento, nasceu, desenrola-se e suas prospecções.

Assim sendo, o mundo na década de 1990 estava em profunda transição. Estava-se rompendo laços com a ordem vigente anteriormente; contexto esse em que nada era mais importante do que definir, tomar lados e literalmente decidir quase qualquer coisa tendo como centro do processo de ação o conflito bipolar entre capitalismo e socialismo. Mesmo os não-alinhados, que foram e são muito importantes, especialmente no campo de descolonização, no fim do dia escolhiam um dos sistemas para funcionar, ainda que adotasse uma política mais pragmática ou até misturasse pontos de diferentes ideologias internamente (o que gerou muitos conflitos).

O ponto é que, no contexto da ordem bipolar, tudo o que não fosse fortalecer o lado a que se correspondia e enfraquecer o outro não importava, ao menos não tanto, e foi deixado de lado. Por esse motivo, diz-se que a Guerra Fria na verdade foi um período de congelamento de conflitos latentes há muito tempo - o que é verdade, já que esses contenciosos voltaram à superfície e de maneira muito intensa junto com o Muro de Berlim vindo ao chão. Assim, com esse jogo de prioridades, algumas ações que influenciam muito a percepção cultural dos povos hoje foram tomadas.

É importante observar essa constituição de fatos porque ela revela, ponto a ponto, como se construiu a conjuntura que hoje se vê principalmente no Oriente Médio, mas também na Ásia em geral, bem como nos Bálcãs, de certo modo. Tudo isso, para a Filosofia, configura-se relevante para pensar sobre como o Ocidente teve a sua percepção completa e até meticulosamente moldada com relação ao lado leste do mundo. Na verdade, como já foi bastante dito em aulas anteriores, o tal Oriente é formado por uma variedade imensa de povos e não apresenta homogeneidade, mas essa mera noção está longe de ser senso comum e isso tem o cerne no etnocentrismo, fomentado por decisões tomadas no século XX que reverberam na atualidade.

Com a disputa dos dois blocos, na segunda metade do século passado, o Oriente Médio era um local muito importante e estratégico, como é até hoje, não à toa há o interesse de potências lá. Dessa maneira, tanto a União Soviética tinha planos visando expandir sua área de influência na região, inclusive próxima do ponto de vista físico e geográfico, quanto os Estados Unidos tinham plena consciência disso e, por essa razão, sistematizaram a necessidade de conter a URSS. Assim, como veio sendo revelado nas últimas décadas, muçulmanos foram treinados por instituições estadunidenses para lutar contra outras pessoas financiadas e/ou ao lado dos soviéticos.

Lembra-se que a religião islâmica tem uma (principal, várias outras secundárias) cisão interna - sunitas e xiitas - e esse fator histórico de séculos não deixou de existir automaticamente por causa da Guerra Fria; ele apenas entrou na soma de fatores que continha parcelas de maior valor, especialmente a já explanada disputa bipolar. Além disso, não é possível dizer que essa divisão religiosa não se refletiu nos campos de batalha, bem como nas disputas políticas, como ocorre até os dias de hoje. Só é preciso lembrar das prioridades da época. Algo que também se deve manter-se em mente é que países árabes e islâmicos, como Irã e Síria, eram aliados soviéticos, o que, para o Ocidente, cria essa acepção de distância cultural, que será apenas ainda mais explorado com o tempo.

Tudo isso ocorreu quando já se caminhava para o fim da Guerra Fria, com o início da falência da União Soviética. Ela acabou e, com isso, pode-se dizer que os Estados Unidos venceram. Todavia, continuaram existindo resquícios da lógica dos conflitos de antes. Sem a necessidade de combater uma influência soviética, agora não mais existente, os grupos anteriormente financiados pelos EUA começaram a tomar outros rumos, justamente no contexto do que foi tratado no início do texto e em seu decorrer, quanto ao choque de civilizações, no plano geral, e uma reafirmação das cisões internas religiosas do Islã, do ponto de vista específico da problemática do Oriente Médio.

Nesse contexto, surge a Guerra ao Terror: a necessidade irremediável de combater a entidade grupos terroristas. Não é possível negar que, de fato, há terrorismo no Oriente Médio, assim como em outros lugares; o problema dessa doutrina são prejuízos muito grandes que ela traz. Eles estão concentrados na existência de intermináveis generalizações, que não são por acaso: elas servem - muito bem, inclusive - ao (novo) interesse geopolítico ocidental, especialmente dos Estados Unidos, que é o de ter presença e não aceitar posturas autonomistas dos países da região. Assim, uma grande carga de propaganda de massa foi emitida, nas mais diferentes formas, inclusive e especialmente por parte da imprensa, o que trouxe sérias consequências para a relação que se tem com a Filosofia Oriental, em geral.

As Filosofias não só do Islã, bem como o arabismo e até mesmo o pan-africanismo, às quais já não se dava muita atenção, agora passaram a existir sob um regime de serem renegadas automaticamente: é esse o ponto central e germinativa do etnocentrismo moderno. No contexto do choque de civilizações, a cultura de massa, propagada, estimulada e que ganhou bastante engajamento da maioria da população promove a ignorância, para usar um termo mais sucinto. Insere-se, mais do que uma discordância, um sentimento de que o outro é “uma coisa só” é essa coisa é totalmente diferente e, por isso, sequer merece o trabalho de ser entendida e de se interagir com ela, senão para combater “terroristas”.

O resultado desse processo foi tóxico e um exemplo bastante elucidativo da tese são os ataques do 11 de setembro de 2001, o símbolo máximo do clash of civilizations, sendo inclusive o momento em que a teoria foi posta à prova. Além disso, como tocado antes, conflitos que foram “congelados” pela bipolaridade da Guerra Fria se reacendem nesse momento, o que só contribui para tornar o cenário ainda mais intrincado. Nesse contexto, é importante lembrar que muitos contenciosos ocorrem em razão de cultura e etnias, o que só prova a grande diversidade cultural que existe na mesma medida que é ignorada.

As tecnologias e novas práxis do século XXI também se integram à questão. Ao mesmo tempo que se luta e, a passos curtos, há ganhos em favor da valorização do multiculturalismo, grupos começaram a pregar justamente o ódio, com movimentos ultranacionalistas “temendo” que a civilização ocidental seja “afetada” pela interação com outros povos. Nesse ínterim surgem também novos espantalhos, dentre eles os refugiados, que servem de bode expiatório para toda sorte de associações que promovem a intolerância. A mecânica da problemática não é nova; o etnocentrismo vai se integrando às novidades de cada tempo - o que é muito irônico, um conceito anacrônico se utilizar de modernidades. Todavia, os esforços de questionamento, popularização e apropriação do conhecimento, tanto no Ocidente quanto no Oriente, de modo global, também crescem: é a primeira pá da construção do caminho em direção a um novo “enlightenment” da Filosofia.

 

- Aula escrita por João Vitor Zaidan

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