RESENHA FILOSÓFICA #1: O Discurso do Método – René Descartes
Nesta semana, mais especificamente com este texto, estaremos iniciando um novo projeto de estudo, o qual será composto por uma série de análises literárias de clássicos da filosofia universal. O termo “resenha” remete a um gênero de escrita particular com suas devidas características, que é comumente empregado em sites de crítica literária e cinematográfica. Contudo, esse não é o nosso intuito. Não pretendemos analisar estas obras em termos de se são boas ou ruins, ou se agradam ou não agradam certo público-alvo; mas sim, decompô-las a nível argumentativo e buscar compreender e interpretar as verdades perscrutadas pelo autor. Desta forma, ao tratar do livro de nossa análise como objeto de estudo, pressupomos que, por detrás de cada sentença nele presente, cada inferência, cada raciocínio e cada divagação, existe uma tese central sendo defendida que pode, ou não, dividir-se em teses secundárias e que pode, ou não, fazê-lo de forma lógica e/ou persuasiva. Não obstante, também pretendemos estuda-lo enquanto produto de um contexto sócio-histórico material, ou seja, entender o período e as condições na qual o texto foi escrito e de que formas isso se relaciona com seu conteúdo. Por último, devemos deixar claro que, apesar desse quadro ser reservado a livros de filosofia, estes podem ser tanto representantes de uma filosofia acadêmica como de uma filosofia literária; ou seja, livros como O Mito de Sísifo, O Mundo de Sofia, A Náusea, Admirável Mundo Novo etc. são livros que poderão participar deste quadro. Obviamente, todas essas obras serão analisadas unicamente por seu conteúdo filosófico e não propriamente por suas características mais literárias. O mesmo se aplica a textos de fundamentação científica, em particular para a sociologia e a história.
DISCOURS DE LA METHODE
A obra que iremos discutir aqui foi escrita por ninguém mais, ninguém menos que René Descartes, um dos filósofos e matemáticos mais importante que já viveram e que é tido por muitos estudiosos como o pai do pensamento moderno — até o fim desta análise, iremos explicar em que se baseia essa afirmação. Não obstante, não apenas seu autor teve um papel imprescindível no surgimento da filosofia moderna, mas a obra em si também o teve, podendo até mesmo ser entendida como um manifesto dos valores e dos questionamentos modernos, ainda que seu autor não a visse dessa maneira.
Sob muitas perspectivas, O Discurso do Método é um livro simples, com uma tese explícita que é retomada constantemente ao longo de sua extensão. Ora, vemos logo de cara que ele não foi escrito para ser um livro altamente complexo com inúmeras problemáticas. Trata-se de um livro curto e direto, que na época (1637) fora publicado em francês e não em latim. Pode parecer, para os dias de hoje, que isso não tem muita importância, mas na realidade é parte fundamental da proposta do livro. Todas as grandes obras de filosofia até então eram escritas em linguagem culta, ou seja, latim, o que materializava uma barreira educacional entre o povo, que em sua grande maioria sequer era alfabetizado em suas próprias línguas, quanto menos em línguas eruditas como o latim e o grego, e a Academia, composta sempre por membros da alta sociedade. Escrever o livro em língua comum é uma prova segura de que Descartes não se dirigia à Academia — ou não se dirigia aos seus membros enquanto acadêmicos —, mas sim às pessoas, ao povo. Isso por si só já manifesta uma profunda dissociação paradigmática na pessoa de Descartes e para um estudo superficial seria o suficiente entende-la por meio de afirmações como “a mentalidade que se instaurava era uma mentalidade moderna”, mas para um estudo mais completo e aprofundado — que é exatamente o que buscamos aqui — esta afirmação e toda a classe de afirmações homólogas a essa são inconclusivas ou até mesmo tautológicas.
Neste ponto de nossa análise, estamos preocupados em ter uma noção mais cientifica do contexto no qual a obra foi publicada, portanto é nosso dever inquisitivo atender ao princípio da causalidade, a base primária da argumentação que se espera em um ensaio filosófico. Dessa forma, o objeto ao qual nos atemos é “a mentalidade que se instaurava no século XVII, em particular nos textos cartesianos”, contudo, este deve ser o nosso efeito e não a nossa causa. Esta mudança de paradigmas não é algo espontâneo e aleatório, ou ao menos é o que indica as condições em que ela ocorreu. Até pouco tempo atrás, a Europa estava imersa numa fase conhecida como Idade Medieval, em que as doutrinas vigentes política e socialmente eram os dogmas do pensamento cristão. A inflexibilidade dos princípios cristãos impediu o desenvolvimento do ceticismo ao longo do século V até o século XV, o que não significa de forma alguma que os estudos feitos nesse período não possam ser considerados filosofia. Nós tivemos autores como Santo Anselmo, Santo Agostinho, Guilherme de Ockham e, principalmente, São Tomás de Aquino, pai da Escolástica surgida no século XII e pensador responsável por repopularizar o pensamento aristotélico — devidamente adequado ao pensamento cristão. Imerso no corpus aristotelium, tínhamos é claro a física aristotélica, que até o século XVI perdurou como modelo inabalável de conhecimento científico. Foi quando em 1543, Nicolau Copérnico, logo antes de sua morte, publicou De Revolutionibus orbium coelestium (Da Revolução dos Corpos Celestes), em que defendia sua célebre teoria heliocêntrica. A ideia de que a Terra orbitava ao redor do Sol e não o contrário desafiava primorosamente uma das características mais fundamentais da ciência clássica: a teleologia, que pressupunha que tudo no universo existia para alguma coisa e a posição privilegiada da Terra no Cosmos servia exatamente para representar a relevância particular do nosso planeta no contexto universal. Hoje em dia, pode-nos parecer sem sentido discutir algo desse tipo — ou talvez não se levarmos em conta movimentos anti-cientificistas que estão tomando conta do nosso país e de todo o mundo —, dado que bastaria analisar se os textos de Copérnico faziam ou não sentido e se eram prova suficiente do que afirmavam. Mas as coisas não são tão simples, o embate entre ciência clássica e ciência moderna não dizia respeito a uma informação em particular, mas sim de todo um paradigma de investigação. A ciência clássica se baseava em princípios e na lógica, enquanto que os resultados de Copérnico se baseavam puramente em observações empíricas.
Consequentemente, pode-se pressupor que o período em que Descartes escreve é um período de demasiada incerteza quanto à ciência, pois esta era um ciência extraordinária e não uma ciência normal, nos termos do epistemólogo e físico Thomas Kuhn. As anomalias nos resultados da ciência clássica a colocava em cheque, mas ainda não havia confiança suficiente nos resultados e nos fundamentos da ciência moderna. Ora, assim deduzimos o tema central de O Discurso do Método, ele busca fundamentar consistentemente a ciência moderna, ou Nova Ciência.
Entretanto, isso ainda não explica muitas das particularidades desse livro, como o fato de ele ter sido escrito em francês. Para responder a esse questionamento, devemos dirigir nossa atenção à estrutura socioeconômica vigente na Idade Medieval e a que estava por surgir no século XVI. Até o século XV, o sistema econômico na Europa era o feudalismo, em que havia os senhores de terra, que recebiam suas terras do rei, e os camponeses, que cultivavam nessas terras. A maior parte da produção dos camponeses ia diretamente para os senhores de terra, que, em contrapartida, permitiam a esses que morassem nessas terras e mantivessem para si aquilo que fosse de seu sustento primário (subsistência); além disso, quando esses produtos, enfim, chegavam ao rei, era de sua vontade consumi-los e vende-los a preços inflacionados. Em troca o rei lhes fornecia proteção contra os ataques bárbaros. Esse sistema, no entanto, foi se degradando ao longo da chamada Baixa Idade Média. Vários autores estudaram o surgimento do Mercantilismo e posteriormente do Capitalismo Moderno, mas a leitura que a pinta de maneira mais histórica e materialmente necessária é a feita por Friedrich Engels e Karl Marx no primeiro capítulo de seu Manifesto do Partido Comunista:
A descoberta da América, a circunavegação da África abriram um novo campo de ação à burguesia nascente. Os mercados das Índias orientais e na China, a colonização da América, o comércio com as colônias, a multiplicação dos meios de troca e, em geral, das mercadorias deram ao comércio, à navegação, à indústria, um impulso até então desconhecido e, em consequência, favoreceram um rápido desenvolvimento do elemento revolucionário na sociedade feudal em decomposição.
Em 1637, quando Descartes escreveu seu Discurso, o Capitalismo moderno, do qual Engels e Marx tratam, ainda não existia. Não se podia falar em uma classe operária no Século XVII, e a classe burguesa ainda era, sob todos os efeitos, uma classe oprimida pela Aristocracia. Contudo, já se prenunciava o surgimento dessa nova classe social, que aos poucos ascendia economicamente. Pode-se dizer que era para essa classe burguesa em ascensão que Descartes dirige seu Discurso, o que o faz também peça fundamental na história do Iluminismo. O uso da linguagem culta pela Academia era um símbolo da inexistência de mobilidade social no contexto da Idade Medieval, assim como também era uma forma de representar que o único conhecimento legítimo era aquele advindo da própria Academia. Porém, estava claro que a doutrinação escolástica não era mais uma fonte confiável de conhecimento, pois ela manteve uma noção completamente equivocada da realidade por quase cinco séculos.
Por último, antes de iniciarmos a análise do livro em si, precisamos comentar brevemente acerca da subjetividade presente no Discurso. Logo no começo, Descartes não tem a intenção de que aquele seja um texto objetivo acerca de como investigar a realidade, mas sim uma espécie de autobiografia epistemológica, em que ele nos narra seus próprios meios de estudo. Essa é outra característica que encontramos na Modernidade, a subjetividade. Uma das primeiras vezes que a vemos se manifestar é na obra de Montaigne, em seu Essais, o primeiro ensaio moderno de que se tem registro. Outra fonte de subjetividade extremamente rica são as obras de William Shakespeare, em particular de seu personagem mais famoso Hamlet, que muitos consideram o primeiro homem moderno — no sentido literário do termo, o que foge do nosso campo de análise. É razoável dizer que a subjetividade da Modernidade surge como uma consequência da desvaloração do sistema feudal; as pessoas, então, não eram mais pontos fixos em uma máquina, mas supunha-se, pelos valores burgueses, certo grau de liberdade e individualismo para cada indivíduo, o que contribui bastante para esse novo ponto de vista.
PRIMEIRA PARTE
Descartes inicia sua obra falando sobre bom-senso, o que aqui significa a mesma coisa que razão. Como um racionalista, ele pressupõe a existência da razão em cada um de nós, independente de sermos mais inteligentes e doutos ou mais defasados e leigos. Todos a temos igualmente, na exata mesma porção. Não obstante, seria essa a característica que nos diferenciaria dos animais, que não a possuem em nível algum (segundo sua concepção). O que explicaria, portanto nossos erros e mal-entendidos? Segundo Descartes, quando erramos em alguma afirmação, não o fazemos devido à ausência da razão ou do mau funcionamento de nossas faculdades mentais, mas por termos considerado as coisas incorretamente; isto é, por termos orientado nossa razão pelo caminho errado.
Isso mostra que a capacidade de bem-julgar, e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se chama o bom-senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, assim, que a diversidade de nossas opiniões não se deve a uns serem mais racionais que outros, mas apenas a que conduzimos nossos pensamentos por vias diversas e não consideramos as mesmas coisas.
Descartes afirma que todos os homens podem cometer enganos em suas considerações, ainda que sejam os mais inteligentes; aliás, não apenas podem, como são igualmente suscetíveis a esses erros como os são os mais burros dos homens. Partindo disso, ele acredita que a melhor forma de alcançar um conhecimento confiável é a partir de um método, que acabar por ser, na realidade, um guia para a razão, ajudando-a a evitar preconceitos e interpretações incorretas. No entanto, Descartes faz questão de deixar claro que não pretende apresentar um método universal para a obtenção do conhecimento, mas apenas descrever o método que vem utilizando desde a sua juventude e que, acredita ele, tem lhe trazido resultados. As pessoas aderirem ou não a esse método deriva da vontade e das convicções delas.
Meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deve seguir para bem-conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira procurei conduzir a minha.
Nesse ponto, Descartes começa a falar sobre sua trajetória pessoal; tendo estudado numa das melhores universidades da Europa, era de se esperar que alcançasse as respostas que tanto procurava em sua vida, mas não foi o caso. Ele via na Academia o exato oposto do caminho que pretendia seguir, pois seu objetivo era se contrapor a qualquer mau uso da razão, enquanto que a Academia era baseada em defender o mau uso da razão que grandes pensadores fizeram no passado.
Fui nutrido nas letras desde a infância, e, convencido que por meio delas podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida [...] Mas assim que conclui todo esse curso de estudos, ao cabo do qual é costume ser admitido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois me vi embaraçado em tantas dúvidas e erros que me pareceu não ter tirado outro proveito, ao tratar de instruir-me, senão descobrir cada vez mais a minha ignorância.
Depois de terminada sua formação, Descartes passa a um estudo mais pessoal em relação às suas próprias verdades e quanto às verdades do mundo. Para ele, todo o seu conhecimento filosófico deveria ser repensado; e quanto às ciências, por estarem fundamentadas exatamente sobre a filosofia, jamais poderiam estar mais certas. Assim nasce a dúvida cartesiana, que será mais bem explorada ao longo do discurso. Descartes se dedicou então a viajar por todo o mundo, explorá-lo. O grande livro do mundo, então, se abria para seus estudos, que não se baseariam mais nas lições engessadas da Academia.
De modo que o maior proveito que eu retirava era aprender, vendo várias coisas que nos pareçam extravagantes e ridículas, não deixam de ser comumente aceitas e aprovadas por outros grandes povos, a não crer muito firmemente naquilo que me fora persuadido apenas pelo exemplo e o costume, e assim a livrar-me aos poucos de muitos erros que podem ofuscar nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão.
SEGUNDA PARTE
No inicio da segunda parte, somos apresentados ao argumento das maçãs, embora Descartes não o apresente dessa forma. Se temos uma cesta com várias maçãs e sabemos que algumas delas estão podres, o melhor a se fazer é tirarmos uma a uma, analisando-as individualmente. Não nos livrarmos de toda a cesta, pois isto nos custaria boas maçãs e nem nos alimentarmos delas indiferentemente. O mesmo se aplica às nossas verdades e às bases do nosso conhecimento, não vale a pena destruí-los por completo, mas devemos analisar cada uma das coisas que acreditamos para diferenciar aquelas que temos motivos para acreditar daquelas que fomos impelidos, persuadidos, a aceitar na infância ou na juventude (ou em qualquer época de nossa vida que não nos dedicássemos à dúvida).
Não seria plausível um particular ter o propósito de reformar um Estado, mudando tudo desde os fundamentos e derrubando-o para corrigi-lo; como também não o seria reformar o corpo das ciências, ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las; mas que o melhor a fazer, em relação a todas as opiniões que eu acolhera até então, era empreender de uma vez por todas retirar-lhes a confiança, afim de substituí-las depois ou por outras melhores, ou pelas mesmas, quando as tivesse ajustado ao nível da razão.
Isso o leva a uma longa investigação acerca das verdades que lhe tinham sido impostas, tanto pela ciência como pela lógica. Ele considerou o alto número de regras da lógica aristotélica como desnecessário e unindo seus conhecimentos de geometria e aritmética, fundamentou seu método, que em muito lembrava o método de Euclides, em quatro passos muito simples:
O primeiro era não aceitar jamais alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal. [...] nada incluir em meus julgamentos senão o que se apresentasse de maneira tão clara e distinta a meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de coloca-lo em dúvida.
O segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas possíveis e que fossem necessárias para melhor resolvê-las.
O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir aos poucos, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos.
E o último, fazer em toda parte enumerações tão completas, e revisões tão gerias, que eu tivesse a certeza de nada omitir.
Parecia então muito clara a jornada que ele teria de percorrer para reformular suas opiniões. Entretanto, para que isso fosse possível, primeiramente ele teria de encontrar uma verdade tão clara e tão indistintamente confiável, que dela decorreriam todas as outras verdades do universo de tal forma, que não se desconfiasse, nem mesmo um pouco, de qualquer uma dessas conclusões. Como veremos na parte quatro, Descartes acreditava tê-la encontrado.
TERCEIRA PARTE
Neste momento, Descartes estipula alguns comportamentos que ele considera necessários em relação à vida prática, porque é óbvio que levar essa atitude ultra cética ao dia a dia seria prejudicial e até fatal para nós enquanto seres humanos. Para não me estender nesse que não é o ponto central do texto, apenas resumirei essa atitude prática ao qual ele se referia. Basicamente, a atitude prática a ser tomada era o oposto da atitude filosófica: deveria se manter firme às suas afirmações inexoravelmente, pois qualquer dúvida levaria o terror filosófico às nossas vidas pessoais. Dentre algumas normas que ele sugeria, tínhamos a de respeitar a lei e a moral de nossa nação; nossa crença; e de não buscar afirmações muito radicais, mas sempre atitudes moderadas para que ainda que nos distanciássemos da atitude correta, nos distanciássemos o mínimo possível, em qualquer situação possível.
QUARTA PARTE
Chegamos enfim àquela que é a parte mais fundamental desse texto e também a mais célebre. Descartes parte na busca daquele que seria seu ponto arquimediano, ou seja, seu axioma fundamental. Algo que nenhum ser racional poderia justamente duvidar. Para alcançar isso, Descartes passa por uma radicalização do ceticismo moderno, o que nos leva a uma versão primitiva do argumento do cogito; enquanto que o argumento em seu aspecto mais formal só viria ser apresentado em seu Meditações de Primeira Filosofia (esse sim escrito em latim e dirigido para a Academia).
Basicamente, esse argumento diz que não podemos confiar totalmente nos nossos sentidos, pois estes nos enganam constantemente, principalmente em relação às ilusões de movimento e escala. E ainda em relação aos nossos sentidos mais imediatos, devíamos duvidar, pois são para nós os mesmos de quando sonhamos. Em nossos sonhos, acreditamos piamente estarmos realizando alguma atividade que de fato não estamos ou estarmos em algum local específico, quando na verdade estamos deitados em nossas camas. Nessa versão do argumento, Descartes ignora por completo os raciocínios abstratos, como os matemáticos, que permanecem válidos inclusive nos sonhos, e nem sequer considera o Gênio Maligno, que, com os poderes de um verdadeiro Deus, inebria nossos pensamentos, levando-nos ao erro. Ele pula todas essas outras etapas e conclui que, ainda que estejamos questionando, e ainda mais, pelo fato de estarmos questionando, temos de primeiramente ser algo capaz de pensar, e para ser, têm-se de existir. Existir nada mais seria do que ser algo. Logo o ato de duvidar, nos reveste de uma verdade muito evidente, a de que existimos. Cogito ergo sum, ou Penso, logo existo.
Embora a sua prova no Discurso seja inquestionavelmente inferior a forma como a apresenta no Meditações, ela parece mais consciente de sua “falha”. O cogito não é um ponto arquimediano. Pode-se até considera-lo como uma verdade indubitável, mas é uma verdade isolada que não leva a lugar algum. O que Descarte busca evidenciar com ela, é o fato de existirem coisas que para nós são evidentes e absolutamente distintas. Mas o que faria como que essas coisas fossem assim, e mais o que as faria ser de fato verdadeiras? Deus.
Deus é para Descartes o verdadeiro axioma da realidade. Com base na Teoria Clássica da Correspondência, ele acredita provar sua existência. Esta teoria diz que tudo que conseguimos pensar são coisas que temos contato, ou seja, que já experienciamos. Como vimos, não temos como buscar as informações da realidade fora da gente, mas apenas em nós mesmos. Assim tudo que pensamos, ou está em nós, ou é colocado em nós por um ser superior, mais completo. Desta forma, reconhecemos que somos capazes de pensar em Deus, portanto ou nós o somos — no sentido de contermos toda a realidade em nós mesmos — ou ele existe fora de nós e insere a realidade em nossa mente. Logo de cara, pode-se descartar a primeira hipótese, porque a nossa dúvida e inconstância nos impede de ser Deus. Só resta pois acreditar que ele existe objetivamente fora de nós e tem contato direto com a nossa alma, embora não necessariamente com nosso corpo. Sendo a alma nossa essência pensante, nosso cogito.
Eu também não podia tirar essa ideia de mim mesmo. Assim restava apenas que ela tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita que a minha, e mesmo que tivesse em si todas as perfeições que eu pudesse conceber, isto é, para explicar-me numa palavra, que fosse Deus.
Logo, as coisas que conseguimos ver como evidentemente verdadeiras e sem uma sombra de dúvida, deve ser verdadeiras, pois todas elas advêm de Deus. Se adviessem de nós mesmo estariam sempre cobertas de inquietância e dúvida, coisas que jamais poderiam compor Deus. Assim o cogiro deveria ser verdade e não só ele, mas qualquer outro conhecimento que se visse evidentemente como tal.
[...] que as coisas que conhecemos de maneira muito clara e distinta são todas verdadeiras, só é seguro porque Deus é ou existe, e porque ele é um ser perfeito, e porque tudo que está em nós vem dele.
QUINTA PARTE
A quinta parte do Discurso não nos interessa particularmente, pois sai do campo da fundamentação e passa para a aplicação que Descartes fez desses conhecimentos para estudar o movimento circulatório do sangue no corpo humano.
SEXTA PARTE
Por último, Descartes dedica-se as falar dos benefícios que teríamos se todos nos empenhássemos em desenvolver, com nossos próprios esforços, nossos próprios métodos, ou ainda compartilhar os nossos, para que outros dele usufruam. Com efeito, desenvolver um caminho seguro para a razão me que todos pudessem percorrer e alcançar os mesmo resultados, com base apenas na razão e nas experiências que podíamos apreciar com distinção. Fala também, apaixonadamente, da utilidade destes conhecimentos e do valor técnico que deles pode surgir.
INFLUÊNCIAS
Depois de ter lido tudo isso, você pode ainda está se perguntando o que há de tão importante na discussão que Descartes levantou. A questão é que toda a filosofia moderna, que irá se instaurar depois dele até sua crise no começo do Século XX, vai se desenrolar no contexto de fundamentar a ciência moderna. Empiristas, racionalistas, positivistas, kantianos, hegelianos, tudo isso surge com a urgência teórica que emerge de responder a esse questionamento. Em 1620, Francis Bacon havia desenvolvido a ideia de método empírico-indutivo, que foi de suma importância para a ciência do século XVII, mas que ainda assim busca fundamentar a ciência em si mesma e não em um saber externo e seguro, o que leva a certa circularidade falaciosa no seu método, apesar de sua utilidade. Apenas um ano após o Discurso, Galileu Galilei publicará Duas Novas Ciências, o livro que vai decretar a matemática como a linguagem universal da física e a experiência como fundamento absoluto da verdade, levando a ciência aristotélica ao seu aguardado fim.
INFORMAÇÕES TÉCNICAS –
Autor da obra: René Descartes
Nome da obra: Discurso do Método
Data de Publicação: 1637
Quantidade de Páginas (Aproximação): 83
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