Escrito por Gabriel Volpato Lima
O primeiro problema da Geografia Humana consiste em elucidar as relações entre o homem e o meio, a partir do ângulo espacial. Trata-se de uma relação recíproca, posto que por meio da técnica os homens modificam o ambiente natural, ao tempo que adaptam-se a ele. Re-criamos a cada momento nosso meio ao tempo que estamos submetidos a ele. Excetuando alguns casos, cada dia mais raros, a imagem do meio que descrevemos encerra uma parte considerável do esforço humano. Encontra-se ela humanizada por um jogo de ações mútuas. Este jogo é, propriamente, a matéria da Ecologia, ciência das relações entre os seres vivos e o meio, segundo Haeckel. Em boa parte, a Geografia Humana apresenta-se como uma ecologia do homem. (SORRE, 2003).
Max Sorre
Max Sorre, geógrafo francês nascido em 1880, dedicou seu tempo a pesquisar e estudar a Geografia Humana e suas particularidades. Em sua obra “Fundamentos de Geografia Humana”, Sorre explora o surgimento dessa nova abordagem geográfica, na qual o conceito tradicional de geografia como uma disciplina descritiva evolui para uma abordagem também explicativa. Em primeiro lugar ele definiu o conjunto dos grupos humanos, uma vez que - segundo Max - o homo sapiens se destaca entre os outros seres vivos devido a quatro características
- Plasticidade: A capacidade notável dos seres humanos de se adaptar e evoluir, compartilhada apenas com espécies que evoluem conosco, como o cachorro.
- Desenvolvimento Mental: O alto grau de desenvolvimento mental do ser humano o torna um criador incansável de técnicas, inicialmente baseadas no empirismo e depois em uma razão cada vez mais refinada. Isso permite a conservação da experiência adquirida e o progresso técnico contínuo.
- Mobilidade Espacial: O progresso humano tem sido especialmente eficaz na satisfação da necessidade de mobilidade espacial. A aspiração de conquistar espaços é antiga, como confirmado pela arqueologia pré-histórica, e nosso triunfo nesse campo supera todas as expectativas anteriores.
- Sociabilidade: Os avanços e vitórias humanas não podem ser imaginados fora das sociedades organizadas. O ser humano apresenta um grau de sociabilidade mais alto do que qualquer outra espécie, vivendo em grupos e incorporando elementos sociais em sua personalidade básica.
A sociabilidade é o que mais se destaca em nós, pois nenhum animal tem o nosso grau de interação com a mesma espécie, tanto é que nós somos considerados um animal político por Aristóteles. Essas características são o que separam nós dos outros animais, e o que faz com que a Geografia Humana se dedique a estudar a nossa relação com o espaço. A noção de ambiente ou meio ganhou significado pleno com o triunfo das doutrinas evolucionistas e da ideia da adaptação. No entanto, uma análise mais profunda revela toda a sua riqueza. Inicialmente, o meio parece ser uma combinação de traços elementares isolados: situação geográfica, características do relevo, elementos climáticos (como temperatura e pressão), composição da cobertura vegetal e estabelecimentos humanos. Raramente o inventário desses traços é completo, e seu significado varia conforme o uso que cada grupo humano faz deles. (SORRE, 2003)
No entanto, esses traços não atuam de forma isolada; eles interagem entre si, formando conjuntos ou, para sermos mais precisos, complexos elementares. Por exemplo, independentemente da tolerância térmica do ser humano à umidade, temos diante de nós um complexo hidrotérmico. Da mesma forma, os seres vivos estão incorporados em combinações específicas devido ao parasitismo e à simbiose, formando os complexos biológicos. Além disso, indústrias de diferentes naturezas se agrupam em associações regionais, constituindo os complexos industriais, que os geógrafos analisam considerando as forças de atração que os unem e os tornam verdadeiras unidades vivas. A noção de complexo geográfico elementar, embora ainda pouco enfatizada, possui aplicações fecundas em todas as esferas da Geografia Humana. Na luta constante pela sobrevivência, o ser humano não apenas enfrenta forças isoladas, mas também intervém para formar novos núcleos em benefício próprio, como na associação de plantas cultivadas. (SORRE, 2003)
O pensamento de nossos predecessores foi dominado pela prepotência do meio físico sobre o homem. No entanto, hoje não precisamos mais nos preocupar com o problema do determinismo, que gerou muitos debates inúteis. As conquistas da tecnologia sobre a natureza têm concentrado nossa atenção na capacidade do ser humano, especialmente à medida que as análises dos sociólogos se tornam a base da ciência das sociedades. Além do estudo do meio natural, também consideramos o meio social. Muitos fatos permanecem incompreensíveis se não considerarmos sua influência. Nossa concepção de ambiente se torna mais rica e complexa, como indicado por Vidal de La Blache ao se referir ao meio natural. Todas as análises do meio estão centradas em considerações espaciais. Desde o surgimento da Geografia Humana, destacam-se as noções de situação e área de extensão dos fenômenos. A situação pode ser absoluta, determinada pelas coordenadas geográficas (latitude, longitude, altitude), ou relativa, descrita em relação a outras características geográficas, como grau de continentalidade, posição em relação às correntes de circulação, entre outros. (SORRE, 2003)
A ideia de área de extensão inclui a noção de limite, que varia desde limites lineares até zonas limites com faixas de degradação (o mesmo se aplica à Geografia Natural). Outra noção importante é a do gênero de vida, que serve como um elo entre a atividade dos grupos humanos e as propriedades do meio. O gênero de vida refere-se a um conjunto coletivo de atividades transmitidas e consolidadas pela tradição, por meio das quais um grupo humano assegura sua existência em um ambiente específico. Essas atividades envolvem técnicas adaptativas tanto do homem quanto do meio. O conceito de gênero de vida atua como uma ponte entre a atividade dos grupos humanos e as propriedades do meio. Ele se refere a um conjunto coletivo de atividades transmitidas e consolidadas pela tradição, por meio das quais um grupo humano assegura sua existência em um ambiente específico. Essas atividades envolvem técnicas adaptativas tanto do homem quanto do meio, incorporando elementos mentais e intelectuais. (SORRE, 2003)
O gênero de vida oferece estabilidade máxima em sociedades submetidas à tirania de um meio natural muito específico, como os criadores nômades do deserto ou os esquimós. À medida que os seres humanos se emancipam dessa sujeição à natureza, o foco da vida se desloca, e a noção de gênero de vida se enriquece com elementos sociais. Por exemplo, podemos falar do gênero de vida dos operários nas áreas de mineração ou dos agentes envolvidos nas atividades de circulação. Mesmo com essa evolução, o conceito não perde sua relevância e interesse. (SORRE, 2003)
Milton Santos
Nosso querido Milton Santos. O professor Milton Santos (Milton de Almeida Santos) nasceu em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, em 3 de maio de 1926. Ele é reconhecido como um geógrafo e livre pensador brasileiro. Sua contribuição para a geografia e seu pensamento crítico tiveram um impacto significativo na compreensão do espaço e das relações sociais (e nas redações do ENEM 😉 ).
Até 2001, o geógrafo brasileiro Milton Santos produziu críticas à globalização, especialmente sob a perspectiva do capital financeiro. Ele propôs uma visão alternativa de globalização. Sua abordagem considerava o espaço como uma produção humana, mediada pela técnica e pelo tempo determinado pela atividade humana. Santos participou de debates intelectuais significativos e influenciou a formulação de bases teóricas em geografia, com orientação de figuras como Jean Tricart e Pierre Mombeig, entre outros. Sua concepção de geografia é considerada híbrida, incorporando diversas influências.
Espaço e território
Encontrar uma definição singular para espaço, ou mesmo para território, segundo Milton Santos, é uma tarefa desafiadora, pois cada categoria abarca múltiplas interpretações e incorpora diversos elementos. Essas definições não são imutáveis, rígidas ou eternas; pelo contrário, são flexíveis e sujeitas a mudanças. Isso implica que os conceitos possuem significados variados, historicamente construídos, como ocorreu com as noções de espaço e território.
Em sua obra Por uma Geografia Nova (1978), Milton Santos atribui centralidade ao conceito de espaço. Ele o compreende como um conjunto de formas que representam relações sociais do passado e do presente, além de uma estrutura manifestada por relações que estão em curso e se expressam por meio de processos e funções. Nas palavras do autor, o espaço é um verdadeiro campo de forças, cuja configuração é desigual. Por essa razão, a evolução espacial não se manifesta de modo uniforme em todos os lugares
(...) O espaço por suas características e por seu funcionamento, pelo que ele oferece a alguns e recusa a outros, pela seleção de localização feita entre as atividades e entre os homens, é o resultado de uma práxis coletiva que reproduz as relações sociais, (...) o espaço evolui pelo movimento da sociedade total. (SANTOS, 1978, p. 171).
(...) o espaço organizado pelo homem é como as demais estruturas sociais, uma estrutura subordinada-subordinante. É como as outras instâncias, o espaço, embora submetido à lei da totalidade, dispõe de uma certa autonomia. (SANTOS, 1978, p. 145).
Segundo Milton Santos, o espaço deve ser compreendido como uma totalidade que abrange relações complexas mediadas por funções e formas, as quais se manifestam historicamente tanto no passado quanto no presente. Essa concepção do espaço ganhou destaque na geografia das décadas de 1970 e 1980, especialmente em países como França, EUA e Brasil, quando os princípios do materialismo histórico e dialético eram amplamente utilizados.
O espaço, além de ser uma instância social que tende a se reproduzir, possui uma estrutura que reflete a organização realizada pelo ser humano. Ele também é subordinado à lei da totalidade, possuindo certa autonomia e expressando-se por meio de suas próprias leis. Assim, o espaço organizado é uma forma resultante da interação de diversas variáveis. Ele abrange tanto o espaço social, que é o lugar de vida e trabalho humano, sem definições fixas, quanto o espaço geográfico, que é organizado pelas sociedades historicamente e serve como lugar de sua própria reprodução.
Território e espaço são conceitos diferenciados na obra de Santos (1978). Segundo ele, “a utilização do território pelo povo cria o espaço”. O território, imutável em seus limites e sujeito a mudanças ao longo da história, antecede o espaço. Por outro lado, o espaço geográfico é mais amplo e complexo, sendo entendido como um sistema indissociável de objetos e ações, onde a instância social se manifesta concretamente e historicamente. O território, por sua vez, representa um dado fixo e delimitado, uma área.
Milton Santos destaca cinco categorias principais (isso é bem importante de lembrar) que devem ser consideradas na análise geográfica do espaço. Essas categorias auxiliam na compreensão do território e contribuem para a construção de uma visão mais completa:
- Forma: Refere-se ao aspecto visível e exterior de um conjunto de objetos, ou seja, as formas espaciais. Cada sociedade imprime suas características específicas nas formas que cria e utiliza.
- Função: Representa a atividade desempenhada pelos objetos criados. A função está intrinsecamente ligada ao propósito e à utilidade desses elementos no espaço.
- Estrutura Social-Natural: Essa estrutura é definida historicamente e abrange tanto as formas quanto as funções. Ela reflete a organização realizada pelo homem e está sujeita a mudanças ao longo do tempo.
- Processo: Refere-se às ações contínuas que visam a resultados e implicam tempo e mudança. Esses processos ocorrem dentro de uma estrutura social e econômica, resultando das contradições internas.
- Totalidade: Essa categoria é fundamental para o estudo do espaço. Ela possui um caráter global e tecnológico, relacionando-se ao modo de produção e à história. A totalidade espacial é inseparável da noção de estrutura e está presente em todas as análises geográficas.
O espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida (...) o espaço deve ser considerado como um conjunto de funções e formas que se apresentam por processos do passado e do presente (...) o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que se manifestam através de processos e funções (SANTOS, 1978, p. 122)
Conclusão
A incessante busca por abordagens e concepções que nos permitam compreender as transformações da realidade é uma das principais virtudes e características do professor, pesquisador e cidadão Milton Santos. Uma análise, mesmo que superficial (não deixaram eu publicar um livro toda aula de Geografia Humana) , dos traços de sua obra evidencia claramente essa dedicação. Santos foi um autor profundamente comprometido com a produção intelectual e atuou de forma engajada em processos políticos em prol de uma sociedade mais justa.