Aula 3 - A questão Agrária

Escrito por Gabriel Volpato Lima

Agora que já temos uma compreensão sobre a origem da agricultura e o processo de formação econômica do Brasil, vamos explorar as principais questões agrárias que têm sido o foco da disciplina de geografia agrária e áreas relacionadas. Uma questão importante a ser considerada é: Será que o campesinato ainda existe no século XXI? E o que caracteriza um camponês?

O sistema econômico vigente no século XXI é caracterizado pelo modo de produção capitalista, baseado na exploração do trabalho e na acumulação de capital monopolista, bem como pelo antagonismo existente entre a burguesia e o proletariado. No entanto, de forma contraditória, existem na sociedade capitalista relações de trabalho pré-capitalistas, reflexo do processo de negação/exclusão do próprio sistema que se renova estrategicamente com o objetivo de fortalecer a estrutura desigual da sociedade capitalista.

Baseado em Kautsky (1980, p.25), “o modelo de produção capitalista não constitui a única forma de produção existente na sociedade de nossos dias”. Embora essa afirmação se refira à sociedade do início do século XX, podemos estender esse pensamento aos nossos dias. Nesse contexto, vale ressaltar que ainda existem vestígios de formas de produção pré-capitalistas, que são sinônimo de resistência do campesinato em meio a um sistema econômico que sufoca e desenvolve estratégias para impedir a existência de outro modelo econômico que não atenda aos interesses do capital.

A expansão da agricultura

É importante explorar tanto os clássicos que discutem a evolução das questões agrárias quanto os autores contemporâneos que estudaram profundamente os mecanismos de funcionamento da agricultura diante do processo de expansão do sistema capitalista.

Karl Kautsky, um teórico marxista do final do século XIX e início do século XX, abordou a questão agrária em suas obras. Ele sugeriu que Marx pode não ter abordado adequadamente a tendência evolutiva da agricultura diante do processo de expansão do sistema capitalista. No entanto, é importante lembrar que a análise de Marx sobre a agricultura foi feita no contexto do século XIX, e as condições agrícolas e econômicas mudaram significativamente desde então.

Karl Kautsky

“De resto, a teoria marxista do sistema de produção capitalista não consiste simplesmente em reduzir a evolução deste à fórmulas – Desaparecimento da pequena exploração diante da grande – que, uma vez decorada, nós pudesse por assim dizer no bolso a chave do edifício da economia moderna” (p. 28).

Ao mesmo tempo, reforça tal pensamento quando diz,

“Se se deseja estudar a questão agrária segundo o método de Marx, não se deve equacionar apenas o problema de saber se a pequena exploração tem ou não futuro na agricultura. Deve-se, ao contrário, pesquisar todos as transformações experimentadas por esta última no decurso do regime de produção capitalista. Deve-se pesquisar se e como o capital se apodera da agricultura, revolucionando-a, subvertendo as antigas formas de produção e de propriedade,
criando a necessidade novas formas” (KAUTSKY, 1980, p.28).

A grande discussão sobre a teoria de Marx não deve ser sobre sua aplicação ou não à agricultura, mas o foco de análise seria sobre a importância de enxergar a capturação do espaço agrário pelo capital de forma desigual e combinada, gerando desequilíbrios sociais no espaço agrário mundial, principalmente nos países em desenvolvimento. O sistema de produção capitalista origina-se primeiramente nas cidades e consequentemente nas atividades industriais. Com isso, as atividades rurais passaram um longo período sem sofrer a influência direta do modelo de produção capitalista. Nesse contexto, as características das famílias camponesas da Idade Média eram marcadas pela produção de gêneros alimentícios para o autoconsumo, mas também construíam suas casas, seus utensílios domésticos, fabricavam grosseiramente suas roupas, dentre outras atividades que proporcionavam maior autonomia e segurança diante das adversidades naturais, sociais e políticas.

No entanto, essa tranquilidade, segurança e felicidade estão sendo cada vez mais ameaçadas pela introdução do modelo de produção capitalista, agora no campo, com novas técnicas de produção e novas concepções de trabalho que aproximaram progressivamente o modo de produzir e consumir da cidade no espaço agrário. Os filhos dos camponeses começaram a ter maior contato com o modelo de produção capitalista produzido na cidade, da mesma forma que o recrutamento militar também possibilitou a transferências de grandes contingentes de jovens camponeses para as cidades, familiarizando-se com os costumes urbanos, repercutindo em um processo de descamponização.

A partir dessa integração inicial, acelerou a dissolução da pequena indústria camponesa pré-capitalista que produzia para o auto-sustento, sendo lentamente substituída pela expansão industrial urbana. Cabe refletir sobre as vantagens que o capital industrial urbano tinha e continua a ter sobre a influência que era exercida por meio dos veículos de comunicação, contribuindo para expandir os valores e os costumes, assim como a importância do modelo de produção capitalista para a sociedade moderna, se contrapondo ao modelo de produção camponesa e seus costumes, considerados por eles arcaico e ultrapassado.

“Só a indústria capitalista se reveste de tão grande superioridade, de molde a eliminar rapidamente a indústria doméstica do camponês que produz para o seu próprio uso. Unicamente o sistema de comunicações da sociedade capitalista, com suas estradas de ferro, os seus correios e jornais podem transportar as idéias e os produtos urbanos até os cantos mais recuados do interior, submetendo assim o conjunto da população agrícola, e não apenas os subúrbios das cidades, a esse processo” (1980, p. 31).

Imagem representativa da agricultura de subsistência

A indústria capitalista se reveste de tão grande superioridade que é capaz de eliminar rapidamente a indústria doméstica do camponês que produz para o seu próprio uso. O sistema de comunicações da sociedade capitalista, com suas estradas de ferro, seus correios e jornais, pode transportar as ideias e os produtos urbanos até os cantos mais recuados do interior, submetendo assim o conjunto da população agrícola, e não apenas os subúrbios das cidades, a esse processo. É importante destacar que, diante da substituição da indústria doméstica camponesa pela indústria urbana, os recursos básicos que eram produzidos pelos próprios camponeses agora passam a ser produzidos em larga escala pela indústria urbana. Isso subordina o campo em relação à cidade por meio do capital que agora se torna necessário para atender às necessidades, em parte, consideradas importantes para a manutenção da família camponesa.

Diante do processo de transformação do espaço agrário, em que a terra significa a segurança e a tranquilidade do camponês ao mesmo tempo que funciona como lócus de trabalho e resistência, é paulatinamente negado ao camponês através da expropriação capitalista de produção. Os camponeses são paralelamente transformados em proletários, engrossando a fila de mão-de-obra de reserva, necessária para exploração da mais-valia. É nesse contexto que surgem as ligas camponesas que lutam em defesa e resistência do campesinato. Vale ressaltar que os conflitos agrários surgem não somente para questionar a democratização da terra, mas também para lutar contra a exploração do capital. Portanto, diante de várias consequências geradas pela transformação do espaço rural, pode-se destacar o trabalho acessório em determinado período do ano como estratégia de sobrevivência e permanência do campesinato.

“O pequeno camponês arranja o tempo necessário para realizá-lo, pois a exploração de sua terra só lhe reclama os cuidados em determinadas épocas. Ele enfrenta as suas necessidades de dinheiro vendendo não o excesso dos seus produtos, mas o seu excesso de tempo. Representa no mercado o mesmo papel do proletariado, que nada possui” (KAUTSKY, 1980, p. 187).

Talvez devido ao caráter ideológico implícito no conceito do campesinato, exista uma divergência de análise por diferentes intelectuais que estudaram a questão agrária. Assim, “o campesinato existe por responder a uma necessidade social” (ABRAMOVAY, 1992, p. 52). Daí, percebe-se a influência de autores clássicos como Chayanov e Jerzy que vão reforçar a existência e a importância do campesinato diante do modelo de produção capitalista. Tal concepção vai de encontro com as ideias defendidas por Marx, Kautsky e Lênin.

Ricardo Abramovay

Os pesquisadores dos estudos agrários, ao analisar as transformações que vêm ocorrendo no campo, não podem conceber o campesinato a partir da criação ou recriação de conceitos que não correspondem às suas formas de vida. Baseado em Abramovay (1992, p. 58-59), “embora a unidade de produção camponesa lide com trabalho, bens de produção e terra, disso não decorre a presunção de que ela gera salário, lucro e renda da Terra”.

Portanto, depois de mostrar que a concepção de Marx a respeito da desintegração do campesinato e/ou seu fim, Abramovay sintetiza essa discussão da seguinte maneira: “(…) O campesinato não é simplesmente uma forma ocasional, ao contrário, mas que um setor social, trata-se de um sistema econômico sobre cuja existência é possível encontrar as leis da reprodução e do desenvolvimento”. Vale ressaltar que o mecanismo de existência camponesa pode ser resumido na expressão “balanço entre trabalho e consumo” (Abramovay, 1992, p.60). Portanto, diferentemente do modelo econômico capitalista, na propriedade camponesa o critério de maximização da utilidade não é a obtenção da maior lucratividade possível em determinadas condições. Pelo contrário, o uso do trabalho camponês é limitado pela satisfação das necessidades familiares. É claro que essas necessidades divergem do anseio das empresas capitalistas.