Pode-se dizer certamente que a principal contribuição dos gregos foi o estabelecimento de extremos teóricos para a elaboração de hipóteses. Como vimos, eles não eram grandes partidários da moderação: ou todo o universo está em constante movimento, mudança, ou nada está e as coisas permanecem sempre as mesmas. Sabendo disso, abordaremos adiante outra dicotomia filosófica, esta de ordem epistemológica; de um lado teremos os Sofistas, representados pelas figuras de Protágoras e Górgias principalmente, que se declaravam detentores do conhecimento geral — Vale ressaltar que este não se trata de um conhecimento absoluto, mas sim uma consequência do caráter relativo da verdade; como veremos, estes, com efeito, podem ser chamado de pensadores céticos — e Sócrates, provavelmente o filósofo mais respeitado de todo o pensamento ocidental, que defendeu a eterna ignorância humana, cujas dimensões são muito incompreendidas pelo senso comum e merecem esclarecimento e definição mais bem trabalhada.
Nesta primeira aula, iremos tratar dos fatores que levaram ao surgimento do pensamento sofista e socrático; como, por exemplo, o desenvolvimento da democracia e da vida na pólis, enquanto ambiente discursivo-argumentativo e politizado. Não obstante, também iremos discorrer sobre a transformação referente ao objeto filosófico do pensamento clássico, que se distanciará da natureza (physis) e da realidade abstrata para um estudo pessoal, ético e político do homem.
A VIDA NA PÓLIS
As pólis, ou “cidades” em grego, foram uma das primeiras experiências a moldarem o conceito moderno que temos de cidade; com organização social complexa, estratificação econômica, áreas centrais e periféricas, pouco a pouco os gregos foram se afastando das aldeias, possivelmente fraternais, aos quais chamavam de genos. Embora tenham surgido ainda no século VIII a.C., foi apenas no final do século VI a.C. e começo do século V a.C. que estas fortaleceram-se e se consolidaram como as lendárias cidades helênicas que temos registro. O tema das cidades gregas, e de suas respectivas organizações sociais e sistemas políticos, representa um extenso e importante estudo, que revela inúmeras facetas desconhecidas do mundo helênico, como a da própria mentalidade do homem grego médio e também nos auxilia no entendimento de eventos históricos, como veremos, brevemente, em relação à Guerra do Peloponeso.
A cidade inicial que trataremos é Atenas, conhecida como o berço do pensamento clássico, assim como o maior expoente da democracia grega. Apesar de, em muitos aspectos, a democracia ateniense ser bem mais democrática do que a nossa, podemos dizer que, em muitos outros, ela é bem mais entregue a preconceitos. Apenas homens livres nascidos na pólis e com relativo poder econômico podiam participar da vida política da cidade, decidindo o que seria melhor para esta em detrimento do que as mulheres, os estrangeiros, escravos, agricultores de diminutas propriedades e trabalhadores despossados, maior parte da população, considerassem adequado. Com efeito, havia uma classe amplamente dominante e hegemônica, conhecidos como Eupátridas, eram homens que detinham as maiores porções de terra e constituíam representativamente em absoluto o povo ateniense, até para questão de censo demográfico. Portanto, tenha em mente que quase todos os pensadores atenienses que eu mencionar futuramente fazem parte desta seleta minoria.
Aliás, ainda que a puerilidade teórica que embasa este pensamento xenófobo, sexista e racista seja, hoje, condenável, é inegável que, por séculos, ele esteve atrelado ao desenvolvimento da filosofia, pois foi este grupo dominante extremamente farto e que vivia principalmente do ócio que se considerou detentor da capacidade de entender as coisas. Além disso, é necessário comentar que, neste período, durante julgamentos, tanto o acusador como o acusado apresentavam-se diretamente, assim como defendiam seus posicionamentos sem o auxilio de mediadores ou advogados. Desta forma, fica clara a relação entre o êxito em um julgamento e a habilidade oratória e retórica do indivíduo, o que vai levar muitas pessoas a buscarem dominar estas técnicas, ainda que, para isso, precisem recorrer a professores especiais.
Não obstante, tinha-se também, neste contexto, que os próprios debates que ocorriam na ágora não o eram feitos por meio de representantes ou intermédios. A democracia ateniense era o que se chama de participativa; ou seja, as próprias pessoas — Eupátridas — debatiam acerca do futuro da pólis, assim como elas próprias executavam o que havia sido consensual. Agora, não apenas podemos inferir que os indivíduos iriam querer buscar as mesmas habilidades para expandir sua representatividade política e, consequentemente, seu poder, mas também que as decisões e medidas tomadas pelo povo não representavam nem sequer esta elite em totalidade, mas um grupo ainda menor de pessoas que detinham da retórica e da oratória. Em outras palavras, havia toda uma questão política, socioeconômica e jurídica que coagia o homem grego médio a buscar o conhecimento filosófico.
Ora, claramente Atenas não foi a única cidade grega e, portanto, não condiz com os modelos e ideologias defendidas pelas demais. De fato, creio que a oposição que mais faz jus a essa afirmação é Esparta, pois esta é, em muitos aspectos, oposta aos ideais atenienses, ainda que sejam semelhantes em diversos outros. Quanto às suas características principais, a primeira é certamente o militarismo: advindos dos Dórios, igualmente bélicos, os espartanos possuíam o exército mais poderoso do mundo grego, eram considerados imbatíveis em combates terrestres. Ao contrário da liberdade que tinham os cidadãos atenienses, os espartanos nasciam e viviam em um regime rigoroso de treino e obediência; já se tornaram até populares as histórias a respeito do treinamento do jovem espartano, que se iniciava aos 7 anos, ou ainda os cuidados das jovens espartanas que aprendiam de suas mães a satisfazer sexualmente seus maridos, isto somado ao ato de sacrificar bebês deficientes e disformes faz com que muitas pessoas automaticamente dissociem Esparta do ideal de sabedoria e inteligência que atribuímos a Atenas. Indubitavelmente, mesmo com todos os seus preconceitos, a sociedade ateniense está muito mais próxima da nossa do que a sociedade espartana, ainda que esta última tenha vasta influência sobre nós.
Por último, vale mencionar a Guerra do Peloponeso, conflito entre Atenas e Esparta que se inicia em 431 a.C. e põe as duas cidades em um profundo e extenso conflito, que fragilizará a democracia ateniense e destituirá sua supremacia política, ainda que esta mantenha-se como potência cultural. Também é compreensível que muitos atenienses estivessem com Esparta na defesa da Oligarquia, pois eles certamente seriam beneficiados com isso. O conflito se encerrou com a derrota de Atenas e o estabelecimento, por parte dos espartanos, de um governo oligárquico chamado de Os Trinta Tiranos. Devido a sua impopularidade, foram destituídos em um ano e novamente a democracia se estabeleceu em Atenas; embora não a mesma democracia, mas uma conflituosa, cínica e vingativa.
O HOMEM ENQUANTO OBJETO
Em seu História da Filosofia Ocidental — uma das obras que embasa este curso, cuja leitura é fortemente sugerida —, Bertrand Russel afirma que, com o fim do pensamento pré-socrático, há também o fim de uma filosofia mais pura, desinteressada e vigorosa. Tanto os físicos como os filósofos mais místicos buscavam estudar a realidade por genuíno interesse científico, sempre perseguindo temas que lhes satisfaziam e lhes agradavam. O autor chega a salientar a infantilidade presentes neles, o que pode parecer pejorativo à priori, mas na verdade é um elogio. Os pré-socráticos são como crianças na medida em que possuem o espírito curioso e aventureiro que os move; são crianças na medida em que julgam o conhecimento como uma tarefa mais fácil do que ela realmente é; mais principalmente, são crianças na medida em que são inocentes, desprovidos de preconceitos ou resultados prévios e estão dispostos a aceitar qualquer verdade que seus estudos constatarem como certos.
Quando adentramos no período clássico, e isso há de perdurar por toda a idade média, ocorre a “pragmatização” da filosofia, pois ela não é mais um estudo inocente e criativo da realidade, mas um poderoso instrumento que alguns homens hão de usar para justificar seus conhecimentos prévios. Se antes a conclusão advinha dos experimentos, agora os experimentos apenas servem como maneira de constatação da conclusão e, caso ambos discordem, a conclusão — que a esta altura já até pode ser chamada de princípio — tem soberania absoluta. Tudo isso será calmamente verificado nos pensadores que futuramente abordaremos, por hora, basta que se entenda isso.
Russell, porém, em sua análise acaba por ser demasiado parcial ao atribuir, ao menos didaticamente, um juízo acerca dessa mudança, chegando mesmo a chama-la de falha. Nós não iremos considera-la assim, cabe a você decidir o que acha sobre isso. O fato é que houve uma revolução na estrutura do pensamento grego, que antes se dissociava da prática sociopolítica e se importava tão somente com temas abstratos, como a matemática, ou com a physis e, então, passou a tratar principalmente de temas mais humanos, como a ética e a política. Com efeito, alguns autores já haviam tratado sucintamente desses temas, mas nunca com a mesma intensidade e com os mesmos interesses dos pensadores clássicos. Antigamente, o estudo do homem seria feito para si próprio ou, por definição, seria inútil; enquanto que, no contexto que então se situavam, haveria o estudo do homem para; ou seja, o objetivo final já não é mais o homem em si.
Talvez você se pergunte quando que aquela atitude inocente irá retornar ao âmbito filosófico e acabe se deparando com duas repostas que expressam ideias bem gerais. Por um lado, pode-se dizer que o período moderno trará de volta a supremacia dos experimentos em relação às conclusões com a revolução científica, logo estamos bem mais próximos dos pré-socráticos do que o estiveram Platão e Aristóteles; pode-se ainda comentar que com pensadores como Espinosa, Berkeley e os mestres da suspeita: Marx, Nietzsche e Freud, nós novamente voltamos a questionar o óbvio e nos afastar de nossos preconceitos. Contudo, ainda assim, estaríamos nós totalmente desprovidos de interesses, seria isso possível? A resposta de um contemporâneo muito provavelmente será não.
-Aula escrita por Cauan Marques
Próximo: Aula 2.2 - O Movimento Sofístico.
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