Física - Ideia 27

Escrito por Vinicius Névoa

Desacoplamento de movimentos

Aqui trataremos de uma ideia que tem a ver com escalas de tempo, e de como movimentos que ocorrem em escalas de tempo muito distintas podem ser desacoplados. Muitas vezes vemos na natureza fenômenos que são a composição de duas ou mais oscilações de frequências muito distintas.

Por exemplo, as estações do ano e o ciclo noite-dia afetam a temperatura que percebemos. Contudo, a troca da noite pelo dia ocorre tão mais frequentemente que a troca das estações que podemos, qualitativamente, dizer que uma época do ano é mais fria do que outra baseando-se apenas nas estações e ignorando os vai-e-vem diários.

Separar fenômenos físicos em fase rápida e fase lenta, pode fazer surgir propriedades para além de meras distinções qualitativas como a acima, como estabilização dinâmica, ressonâncias paramétricas e outros. Por questões didáticas, primeiro solucionarei um problema famoso, e depois desenvolveremos uma teoria geral.

 

O Pêndulo de Kapitza

Um pêndulo simples possui dois pontos de equilíbrio: \theta=0 e \theta=\pi. Contudo, esse último ponto de equilíbrio é instável. Curiosamente, é possível torna-lo estável se o ponto de suporte do pêndulo oscilar verticalmente muito rápido!
Seja um pêndulo simples de massa m e comprimento L, e a posição do ponto de apoio sendo Y(t)=asin(\lambda t). Considere A<<L e \lambda>>\sqrt{\dfrac{g}{L}}. Ache a condição para que a posição \theta=\pi seja um equilíbrio estável.

Solução:

Como \lambda>>\sqrt{\dfrac{g}{L}}, isso quer dizer que quando o ponto de suporte tiver feito uma oscilação completa, a o ângulo que o pêndulo faz com a vertical não terá tido tempo de mudar apreciavelmente. Para quantificar isso, escreveremos a coordenada \theta da posição do pêndulo como a soma de uma fase lenta e uma fase rápida, definidas como na figura:

\theta=\phi+\alpha

Aplicando a lei dos senos no triângulo ABC:

\dfrac{asin(\lambda t)}{\alpha}=\dfrac{L}{sin \phi}

\alpha=\dfrac{a}{L} sin \phi sin(\lambda t)

Temos que \alpha é um ângulo pequeno pois A<<L. Vamos escrever o torque agindo na massa em relação ao ponto de suporte B. As forças são (usando \vec{F}_{inercia}=-m\vec{a}_{suporte}):

 F_{g}=-mg\hat{y}

F_{inercia}=+ma\lambda^2 sin(\lambda t) \hat{y}

Agora calcularemos os torques, ou melhor, a média dos torque durante um período de oscilação de \alpha, já que nosso interesse é a coordenada lenta \phi:

\overline{\tau_{g}}=-mgL\overline{sin (\phi+\dfrac{a}{L} sin \phi sin(\lambda t))}

\overline{\tau}_{inercia}=ma\lambda^2 L\overline{sin(\lambda t) sin (\phi+\dfrac{a}{L} sin \phi sin(\lambda t))}

Entrando e saindo do papel respectivamente. Agora, basta abrir os senos e cossenos: qualquer termo que for proporcional a sin(\lambda t) ou cos(\lambda t) terá média zero.  É fácil ver que:

\overline{\tau_{g}}=-mgL sin(\phi)

\overline{\tau}_{inercia}=\dfrac{ma^2\lambda^2}{2}sin \phi cos \phi

Veja bem, o que isso quer dizer? Na escala de tempo em que \phi muda apreciavelmente (e por isso fizemos a média), a gravidade tenta fazer o pêndulo cair e a força inercial tenta mantê-lo no topo. Para que seja estável, o torque inercial deve ganhar:

\overline{\tau_{g}}+\overline{\tau}_{inercia}>0

Substituindo \phi=0, que é o nosso ponto de interesse, essa estabilidade ocorre desde que:

a \lambda > \sqrt{2gL}

É possível, inclusive, determinar até onde o desvio da vertical será estável. Os pontos críticos são aqueles nos quais o torque médio total é nulo:

\phi_{critical}=\pm arccos \dfrac{2gL}{a^2\lambda^2}

Comentário sobre energias: se você quiser tentar fazer esse exemplo por energia, cuidado! A energia desse sistema não se conserva, já que a força que faz oscilar o suporte do pêndulo realiza trabalho a todo instante. Contudo, se você for bem versado em mecânica analítica, sugiro fortemente que tente fazer esse exemplo com formalismo Lagrangiano ou Hamiltoniano, que já incluem naturalmente o trabalho da força externa. De fato, o pêndulo de Kapitza e sistemas análogos são normalmente resolvidos por Lagrangiana, esse método por torques acima é um "bizu" para ilustrar a ideia. Alguns outros comentários para quem se aventurar:

  • A função Hamiltoniana não corresponderá à energia total do sistema (isso é porque o vínculo entre a coordenada \theta e as coordenadas cartesianas é reonômico, ou seja, depende do tempo)
  • Quando se soma a derivada temporal total de uma função F à uma Lagrangiana, as equações de movimento são mantidas inalteradas:

L_{1}=L_{2}+\dfrac{dF}{dt}

Isso é porque o que importa é a variação da ação, que é a integral da Lagrangiana no tempo, então somar uma constante à ação é irrelevante. Use esse fato para fazer sumir termos \dot{\theta}sin\theta da Lagrangiana.

Teoria Geral

Agora que fizemos um exemplo, vamos desenvolver uma teoria geral para isso no contexto da mecânica clássica, primeiro para o caso de apenas um grau de liberdade. Seja uma partícula de massa m sujeita a um potencial externo U(x,t). Suponha que essa partícula executa, sob ação desse potencial apenas, um movimento que se confina numa região finita do espaço (i.e, que é uma órbita fechada no espaço de fase), e que esse movimento se repete com um tempo característico T. Agora suponha que, em adição a esse campo U(x,t), seja ligada uma força:

f(x,t)=A(x) cos(\omega t +\phi)

 Com a propriedade que T>>\dfrac{2\pi}{\omega} e de que as amplitudes dos movimento que ela causa são pequenas. Isso nos convida a separar a coordenada da partícula em uma fase rápida e uma fase lenta:

x(t)=X(t)+\xi(t)

A equação de movimento é:

m\ddot{x}=-\nabla U(x,t)+f(x,t)

Como, por hipótese, \xi(t) é pequeno, vamos expandir em primeira ordem nele:

U(x,t)=U(X,t)+(x-X)\dfrac{dU}{dx}= U(X,t)+\xi \dfrac{dU}{dx}

f(x,t)=f(X,t)+\xi\dfrac{\partial f}{\partial x}

A equação de movimento pode ser escrita como:

m\ddot{X}+m\ddot{\xi}=-\dfrac{dU}{dx}-\xi\dfrac{d^2U}{dx^2}+f(X,t)+\xi\dfrac{\partial f}{\partial x}

O desacoplamento é afirmar que as partes rápidas e as partes lentas da equação acima são satisfeitas separadamente.

  • Parte rápida: apesar da amplitude de \xi ser pequena, \ddot{\xi} é grande uma vez que a frequência \omega é grande. Por isso, vamos desprezar os termos (rápidos) de ordem \xi do lado direito:

m\ddot{\xi}=f(X,t)

O que, pela forma da função f, permite integração direta:

\xi=-\dfrac{f}{m\omega^2}

  • Parte lenta: Vamos fazer a média temporal da equação de movimento. Perceba que todo termo que contenha apenas uma potência de \xi ou f rende média zero. Os únicos termos que sobrevivem são:

m\ddot{X}=-\dfrac{dU}{dx}+\overline{\xi\dfrac{\partial f}{\partial x}}

m\ddot{X}=-\dfrac{dU}{dx}-\overline{\dfrac{f}{m\omega^2}\dfrac{\partial f}{\partial x}}

Agora, a parte mais importante: vamos jogar aquele f para dentro da derivada:

m\ddot{X}=-\dfrac{d U}{dx}-\dfrac{1}{2m\omega^2}\overline{\dfrac{\partial f^2}{\partial x}}

m\ddot{X}=-\dfrac{dU_{eff}}{dx}

Em que o potencial efetivo é:

U_{eff}=U+\dfrac{\overline{f^2}}{2m\omega^2}

Perceba que isso pode ser escrito como:

U_{eff}=U+\dfrac{m\overline{\xi^2}}{2}

Ou seja, o potencial efetivo da coordenada lenta é o potencial real somado a energia cinética média da parte rápida!

Observações finais:

  • No caso da força externa f ser uma superposição de N frequências, duas a duas desacopláveis, é fácil ver que (produtos de funções senoidais de frequencias muito diferentes são dominados pela de maior frequência tem média zero):

U_{eff}=U+\sum \limits_{i=1}^{N}\dfrac{\overline{f^2_{i}}}{2m\omega^2_{i}}

  • O resultado acerca da energia cinética é válido para mais coordenadas: mesmo se o sistema tiver vários graus de liberdade, o potencial efetivo da coordenada lenta continua sendo o potencial real mais a energia cinética média total do movimento rápido.

Exercícios:

 

1) Quase Kapitza

Quais são os pontos de equilíbrio estável de um pêndulo cujo suporte oscila muito rápido na horizontal, sendo a amplitude dessa oscilação pequena?

2) Cometa infrequente

Um cometa de massa m orbita uma estrela de massa M_{0} em uma órbita fechada de energia E<0 e excentricidade e. Então, por algum processo astrofísico, a massa da estrela começa a variar como:

M(t)=M_{0}+\Delta m sin( \omega t)

Se o período dessa oscilação for muito menor que o da órbita, e \Delta m<<M_{0}, qual a nova excentricidade média \overline{e} ?

3) Andando com suavidade

Quando uma pessoa anda, existe uma certa estabilização dinâmica causada pelo andar que ajuda seu tronco ficar ereto. Obviamente, apenas caminhar não é suficiente: os músculos da base da coluna garantem que a parte superior do nosso corpo não caia, como um pêndulo invertido faria. Seja uma pessoa de altura H e comprimento das pernas L. A parte superior do seu corpo pode ser pensada como um pêndulo invertido de massa efetiva m, concentrada no topo da cabeça. Se a abertura angular da pernas quando a pessoa caminha é \Delta \theta, e sua cabeça permance na mesma altura sempre, estime o aumento da estabilidade quando ela anda com uma velocidade v, em que o aumento da estabilidade é a variação do expoente real que governa a queda do "pêndulo efetivo".