Física - Ideia 32

Escrito por Vinicius Névoa

As origens de um mundo não clássico

A necessidade da mecânica quântica surge quando tentamos aplicar os preceitos da mecânica clássica e da eletrodinâmica clássica a sistemas atômicos, e nos deparamos com resultados em óbvio conflito com a realidade. Provavelmente, o primeiro grande exemplo disso é a previsão clássica de que os elétrons emitiriam radiação eletromagnética ao orbitarem os núcleos de seus átomos, o que por si só tornaria impossível a existência de qualquer matéria agregada, algo que espero que você já tenha se convencido do contrário experimentalmente.

Mas então, como sequer começaríamos a construir um mundo diferente do nosso clássico? Bem, existem duas respostas: a histórica, que é organizada pela cronologia dos desenvolvimentos da quântica, e a teórica, que é organizada pelos passos lógicos desse desenvolvimento. Aqui, por conveniência, escolheremos uma abordagem teórica. Desde já, me desculpo se fui mais breve do que deveria.

Se a motivação para essa teoria é experimental, nada mais justo do que começar por um fato experimental:

  • Um feixe de elétrons, ao incidir sobre uma tela impermeável com duas fendas, sofre interferência tal como uma onda clássica sofreria.

A consequência direta disso é que, seja lá o que for um elétron em sua essência, sua dinâmica não pode possuir nem posição nem trajetória bem definidas. Essa é a origem de toda a diferença entre o clássico e o quântico, é o pedra fundamental do mundo microscópico. Então, as características de um sistema quântico serão determinadas por uma função, até agora arbitrária, chamada de função de onda, que é definida em todos os pontos do espaço:

\Psi=\Psi(r,t)

Agora, é necessário que haja algo análogo a uma equação de movimento para \Psi obedecer. Eis que surge a equação de Schrödinger. Embora haja uma forte motivação para a forma dessa equação, ela é, invariavelmente, um postulado. Em uma dimensão (denotada por x) e para uma "partícula" de massa m:

i \hbar \dfrac{\partial \Psi}{\partial t} = - \dfrac{\hbar^2}{2m} \dfrac{\partial^2 \Psi}{\partial x^2} + V(x) \Psi

Para aliviar um pouco o desconfortável gosto de mistério que um postulado tão importante deixa, me sinto na obrigação de dizer de onde ele veio: O mundo quântico nasce onde o mundo clássico acaba, e isso quer dizer que, de alguma forma, a mecânica clássica é um caso limite da mecânica quântica. Algo semelhante ocorre na ligação entre a ótica física e a ótica geométrica, uma vez que no limite em que o comprimento de onda da luz se torna desprezível em relação as dimensões do sistema, a ótica física converge para a ótica geométrica.

Na ótica física, um parâmetro que descreve um campo eletromagnético (o componente x do campo \vec{E}, digamos) é sempre da forma A e^{i \phi}, em que A é uma amplitude real e \phi uma fase real. O que ocorre no limite da ótica geométrica? A amplitude A é praticamente constante e a fase \phi assume valores muito grandes (se convença disso).

Na ótica geométrica, o que determina a trajetória do raio de luz é o Princípio de Fermat, que equivale a dizer que a diferença de fase entre o início e o final do raio de luz é mínima (ou máxima). Mas isso lembra muito o Princípio de Hamilton, não? (esse princípio diz que de todas as trajetórias possíveis de uma partícula clássica, a que ela toma é a que minimiza a ação, no mesmo espírito do princípio de Fermat, mas nesse caso a ação é em termos da energia da partícula). Então faremos um paralelismo entre uma "ação" e a fase \phi: S=constante \times \phi.

Se quisermos que a mecânica quântica seja completa, é preciso que a função de onda em um tempo futuro \Psi(r,t) seja determinada pela função de onda em um dado instante \Psi(r,0). Mais ainda, o princípio da superposição é virtualmente onipresente na física, então é justo assumir uma relação que seja linear em \Psi:

\dfrac{\partial \Psi}{\partial t} = \hat{L} \Psi

Em que \hat{L} é um operador linear, até então indeterminado,  que vai conter toda a física do sistema. Eis o pulo do gato: e se identificarmos o termo \dfrac{\partial \Psi}{\partial t} com a derivada temporal de A e^{i \phi} no limite geométrico?

\dfrac{\partial \Psi}{\partial t} = A \dfrac{\partial \phi}{\partial t} \Psi

\hat{L} \sim \dfrac{\partial \phi}{\partial t} \sim \dfrac{\partial S}{\partial t}

Adivinhe que quantidade clássica é exatamente \dfrac{\partial S}{\partial t}? Exatamente ela, a função hamiltoniana! E é essa sequência de paralelismos e analogias a melhor tentativa de ilustrar o nascimento da mecânica quântica: ela nasce de princípios de mínima ação. Mais para frente vamos ver porque o operador Hamiltoniano assume a forma - \dfrac{\hbar^2}{2m} \dfrac{\partial^2 \Psi}{\partial x^2} + V(x) \Psi.

Quer dizer então que a mecânica quântica, em toda sua glória, é, literalmente, uma ramificação da óptica geométrica? Errrrr, são primas distantes...

A função de onda

Ao dizer que uma "partícula quântica" não possui trajetória, definimos uma função \Psi. O que é essa função? Se a partícula não tem trajetória, então que tipo de quantidade poderia representá-la? O que poderia defina-la?

Uma possível resposta é uma distribuição de probabilidades. Oras, se eu não posso dizer se o elétron "está" ali ou acolá, que eu pelo menos seja capaz de atribuir a cada ponto do espaço uma probabilidade. Isso também é consistente com a ideia de que o elétron se espalha pelo espaço. Então, definimos a interpretação de Born:

P(x | a <x<b) = \displaystyle{\int \limits_{a}^{b} |{\Psi (x,t)}|^2 dx}

Em palavras, a probabilidade de a partícula estar entre os pontos a e b (lembrem-se de que toda essa teoria unidimensional generaliza de forma óbvia para 3 dimensões) é a integral do quadrado do módulo da função de onda entre tais pontos. Isso significa que, nesse instante, uma medição do elétron (por um fotosensor, digamos) retornaria o elétron entre a e b com probabilidade dada pela fórmula acima. Nesse argumento, surge uma das maiores problemáticas do século XX: imediatamente antes da medição, onde estava a partícula? A resposta mais aceita é: ela não "estava". Ela não tinha posição definida, isto é, não é nossa incompetência em não saber onde ela estava, e sim que ela não estava em nenhum ponto específico. A partícula estava espalhada pelo espaço, e ao ser medida, acabou, por acaso, no ponto em que foi detectada, mas poderia muito bem ter acabado em algum outro lugar, com suas respectivas probabilidades.

Agora que iluminamos mais o significado da função \Psi, vamos voltar para a equação de Schrödinger:

i \hbar \dfrac{\partial \Psi}{\partial t} = - \dfrac{\hbar^2}{2m} \dfrac{\partial^2 \Psi}{\partial x^2} + V(x) \Psi

Perceba que toda a física de uma situação é determinada por uma função potencial V(x), que codifica toda a informação sobre o ambiente em que \Psi(x,t) evolui. Resta, então, resolver essa equação. E, a parte de alguns elementos especiais como spin, a mecânica quântica praticamente se encerra nessa frase. Contudo, para qualquer situação real, a função V(x)  torna essa equação quase impossível de resolver, e para superar esse desafio, surgem inúmeros artifícios, dos quais o primeiro é a seguinte ideia, a separação de variáveis:

\Psi(x,t)=\psi(x) \phi(t)

Ou seja, vamos decompor a função de onda em um produto de uma função apenas do espaço com uma outra função apenas do tempo. Isso soa extremamente restritivo, e da a impressão que forçar essa condição nos fará perder inúmeras soluções para a equação acima. De fato, mas mais para frente as resgataremos. Substituindo e separando as funções em cada lado:

 

i \hbar \psi(x) \dfrac{\partial \phi(t)}{\partial t} = - \dfrac{\hbar^2}{2m} \phi(t) \dfrac{\partial^2 \psi(x)}{\partial x^2} + V(x) \psi(x) \phi(t)

i \hbar \dfrac{1}{\phi(t)} \dfrac{\partial \phi(t)}{\partial t} = -\dfrac{\hbar^2}{2m} \dfrac{1}{\psi(x)} \dfrac{\partial^2 \psi(x)}{\partial x^2} + V(x)

Como o lado esquerdo é independente do direito, para essa igualdade ocorrer, ambos devem se igualar a um número constante, que por conveniência chamaremos de E (você já deve imaginar onde isso vai parar...):

i \hbar \dfrac{1}{\phi(t)} \dfrac{\partial \phi(t)}{\partial t} = E

-\dfrac{\hbar^2}{2m} \dfrac{\partial^2 \psi(x)}{\partial x^2} + V(x) \psi(x) = E \psi(x)

A primeira equação pode ser resolvida imeadiatamente, pois não depende de V(x):

\phi(t) = e^{- i \dfrac{E}{\hbar} t}

Vou omitir a amplitude uma vez que podemos anexá-la ao \psi(x). Então definimos o operador Hamiltoniano:

\hat{H}= -\dfrac{\hbar^2}{2m} \dfrac{\partial^2 }{\partial x^2} + V(x)

\hat{H} \psi(x) = E \psi(x)

Essa equação imeadiatamente acima é a famosa equação de Schrödinger independente do tempo, isso por que o fator temporal e^{- i \dfrac{E}{\hbar} t} foi "descascado". Antes de fazermos nossos primeiros exercícios, falta uma última peça: a equação acima geralmente possui várias soluções \psi_{n}(x), que constituem uma família de funções ortogonais. Naturalmente, cada uma dessas soluções possui sua própria constante de separação E_{n}:

\hat{H} \psi_{n}(x) = E_{n} \psi(x)

Cada uma dessas soluções \psi_{n}(x) e^{- i \dfrac{E_{n}}{\hbar} t} é chamada de estado estacionário, isso porque as probabilidades e valores esperados são independentes do tempo.

Assim, vale:

\Psi_{n}(x,t) = \psi_{n}(x) e^{- i \dfrac{E_{n}}{\hbar} t}

Como todas as equações envolvidas são lineares em \Psi(x,t) (isto é, não há termos como \Psi^2), a solução geral é uma combinação linear:

\Psi(x,t) = \displaystyle{ \sum \limits_{n=0}^{\infty} c_{n} \psi_{n}(x) e^{- i \dfrac{E_{n}}{\hbar} t}}

A solução geral acima já não é mais estacionária.

Mas calma, o que são funções ortogonais? Da mesma forma que o produto interno de dois vetores ortogonais é nulo, funções ortogonais são tais que:

\displaystyle{\int \psi_{n}^{*}(x) \psi_{m}(x) dx}=0 para m \neq n

Acima, o asterisco denota a conjugação complexa (em geral temos funções de números complexos). A integral acima é descrita pela notação de braket como: \left \langle \psi_{n}(x) | \psi_{m}(x) \right \rangle. Inteprete isso como o componente de \psi_{n}(x) ao longo da "direção" de \psi_{m}(x).

Normalizando a função de onda

Uma partícula, mesmo que quântica, deve estar em algum lugar. Por isso, uma restrição física sobre a função de onda é que a probabilidade de encontrar a partícula em algum lugar deve ser 1. Geralmente, essa condição de normalização determina um fator multiplicativo que precede a função de onda. Matematicamente, a função obtida acima deve ser multiplicada por uma constante apropriada para que valha:

\displaystyle{\int \limits_{-\infty}^{\infty} |{\Psi (x,t)}|^2 dx} = 1

Somente funções de onda normalizáveis corresposdem a estados fisicamente realizáveis. Mais para frente, veremos exemplos de funções de onda não normalizáveis. O primeiro exemplo que me vem é a função de onda de uma particula livre com energia bem definida (tente você mesma): significa que isso não pode existir (nesse caso isso ocorre devido ao princípio da incerteza, que veremos mais adiante).

Vale lembrar que |{\Psi (x,t)}|^2 = \Psi^{*}(x) \Psi(x), e devido a essa conjugação, os fatores dependentes do tempo se cancelam. Disso vem um resultado muito importante:

Uma função de onda normalizada em um dado instante do tempo sempre estará normalizada em qualquer outro instante do tempo

Duas consequências nascem disso: precisamos normalizar a função de onda apenas uma vez e as probabilidades globais se conservam.

Combinação linear de estados estacionários

Agora, lembra de quando falamos que resgataríamos todas as soluções possíveis? Então, é um fato matemático que qualquer função pode ser escrita como uma combinação linear de funções ortogonais. Logo, a equação acima se torna, enfim, a solução mais geral possível. Só nos resta determinar os coeficientes c_{n}, e para isso vamos usar o fato das funções serem ortogonais junto a uma condição inicial em t=0:

\Psi(x,0)=\displaystyle{ \sum \limits_{n=0}^{\infty} c_{n} \psi_{n}(x)}

Multiplicando os dois lados por \psi_{m}^{*}(x) e integrando:

\displaystyle{ \int\Psi(x,0)\psi_{m}^{*}(x) dx}=\displaystyle{\int \sum \limits_{n=0}^{\infty} c_{n} \psi_{m}^{*}(x) \psi_{n}(x) dx}

Como os estados estacionários são ortogonais, o único termo que sobrevive à integração do lado direito é o termo m=n. Portanto:

\displaystyle{ \int\Psi(x,0)\psi_{m}^{*}(x) dx}= c_{m }\displaystyle{\int \psi_{m}^{*}(x) \psi_{n}(x) dx}

c_{m} = \dfrac{\displaystyle{ \int\Psi(x,0)\psi_{m}^{*}(x) dx}}{\displaystyle{\int \psi_{m}^{*}(x) \psi_{m}(x) dx}}.

Finalmente, isso determina a função de onda do sistema. Recapitulando:

\hat{H}= -\dfrac{\hbar^2}{2m} \dfrac{\partial^2 }{\partial x^2} + V(x)

\hat{H} \psi_{n}(x) = E_{n} \psi(x)

c_{m} = \dfrac{\displaystyle{ \int \limits_{-\infty}^{\infty} \Psi(x,0)\psi_{m}^{*}(x) dx}}{\displaystyle{\int \limits_{-\infty}^{\infty} \psi_{m}^{*}(x) \psi_{m}(x) dx}}.

\Psi(x,t) = \displaystyle{ \sum \limits_{n=0}^{\infty} c_{n} \psi_{n}(x) e^{- i \dfrac{E_{n}}{\hbar} t}}

Dessa forma, construimos uma solução geral para a equação de Schrödinger de uma partícula em uma dimensão. Nos encontramos na próxima ideia.

 

Até logo!