Física - Ideia 35

Escrito por Paulo Henrique

Introdução

É muito comum que alunos olímpicos de Física tenham bastante dificuldades em problemas relacionados com corpos rígidos. Principalmente, quando a situação envolve rotações tridimensionais. As dificuldades encontradas em problemas desse tipo surgem, muitas vezes, devido à um mal aprendizado sobre a cinemática dos corpos rígidos. Naturalmente, o aluno que carrega essa carência para o estudo da dinâmica dos corpos rígidos acaba repudiando o assunto pela sua dificuldade. Com isso, pode-se dizer que o objetivo dessas aulas é tornar alguns conceitos fundamentais mais claros, estes que algumas vezes são deixados de lado nos livros-texto usuais de Mecânica Clássica. Além do interesse intrínseco no estudo desse assunto, ocasionalmente, as ferramentas matemáticas e físicas introduzidas na formulação rigorosa da teoria dão ao aluno um novo rumo no seu estudo da Física. Nesse sentido, algumas vezes a matemática utilizada foge do que alunos do ensino médio estudam normalmente, portanto, recomenda-se que o aluno tenha um conhecimento básico sobre vetores e matrizes. A aula está organizada em 5 seções dispostas da seguinte maneira: a primeira seção nos ensina um pouco sobre a formulação matemática das rotações, apresentando o conceito de transformações lineares. Após essa introdução, apresentamos o Teorema de Euler, que nos diz como um corpo rígido se desloca quando um ponto do mesmo é fixo. Para a demonstração desse teorema, utilizaremos tanto argumentos geométricos quanto puramente analíticos. Na quarta seção, a generalização do teorema de Euler, devido a Chasles é apresentada. Finalmente, os ângulos de Euler são apresentadas na última seção. O estudo das rotações será separado em 3 partes. A primeira serve como base para o aluno se familiarizar com os principais teoremas. Na segunda parte, utilizaremos esse conhecimento para formular o conceito de vetor velocidade angular, juntamente com uma análise mais analítica das rotações de um corpo rígido. Na última parte, iniciamos o estudo da dinâmica dos corpos rígidos.

Essa ideia é particularmente útil para alunos da Seletiva brasileira das OIF´s. Mesmo assim, alguns pontos são imprescindíveis para os alunos do nível 3 da OBF e, portanto, recomendo a leitura.

 

Seção I: Conceitos iniciais

Os corpos rígidos consistem numa idealização de um corpo totalmente indeformável. Isso significa que a distância entre qualquer par de pontos fixos no corpo permanece a mesma durante todo o movimento. É comum trabalharmos com o conceito de partícula na análise de tais corpos. Pode-se imaginar um corpo rígido como sendo uma coleção de N partículas submetidas a vínculos do tipo:

d(P_i(t),P_j(t))=K(i,j)          (1)

Onde P_n(t) corresponde a posição da partícula n no instante t e d(A,B) é igual a distância no espaço entre os pontos A e B. A equação acima nos diz que a distância entre os pontos i e j não é função do tempo, ou seja, é constante. É importante, toda vez que lidamos com um sistema mecânico, que saibamos o número de graus de liberdade do sistema. Essa quantidade representa o número de parâmetros independentes necessários para a determinação de todos os objetos do sistema. Ou seja, dados esses parâmetros conseguimos determinar a posição de todas as partículas em função do tempo. Além disso, qualquer equação de vínculo é identicamente satisfeita quando escritas em termos desses parâmetros. Esses parâmetros são chamados de coordenadas generalizadas ou coordenadas independentes. Por exemplo, em um pêndulo simples, se especificarmos o ângulo que o fio faz com a vertical, teremos determinado univocamente a posição de todos os objetos do sistema (que nesse caso consiste somente na massa pontual), segue, portanto, que o número de graus de liberdade é um. Em geral, para um sistema de N partículas e p equações de vínculos (do mesmo tipo que as equações em (1)), o número de graus de liberdade n é dado por n=3N-p. De fato, caso não houvesse nenhum vínculo, teríamos que especificar três coordenadas para cada partícula, pois estamos no R^3. Mas cada equação de vínculo pode ser utilizada para escrever uma dessas 3N coordenadas em função das outras. Logo, para p vínculos teremos, em geral, 3N-p graus de liberdade. Para um corpo rígido de várias partículas não podemos ser tão simplórios. Seguindo essa linha de raciocínio, poderíamos calcular o número de equações geradas pela permutação dos índices em (1) e subtrair de 3N. O primeiro é dado por N(N-1)/2 que, claramente, pode exceder 3N para N suficientemente grande. A razão desse erro aparente está no fato de que nem todas equações em (1) são independentes, e, portanto, superestimamos o número de vínculos. O teorema abaixo nos fornece o número de graus de liberdade de um corpo rígido.

Teorema 1 O número de graus de liberdade de um corpo rígido livre é 6.

Demonstração: Podemos induzir isso intuitivamente. É preciso 3 coordenadas para determinar a posição de um ponto de referência fixo no corpo e mais 3 ângulos para determinar a orientação angular do corpo em relação a 3 direções fixas. De qualquer forma, uma demonstração por triangulação é mais elegante. Suponha que especificamos as 9 coordenadas de 3 pontos A, B e C não colineares fixos no corpo. Como temos ao nosso dispor as (N-1)N/2 equações em (1), temos, em particular as distâncias da partícula i aos pontos A, B e C. Isso especifica, por triangulação, a posição da partícula i. Como i é arbitrário, determinamos todas as posições de todas as outras N-3 partículas. Mas, de (1):

d(P_A(t),P_B(t))=K(A,B) d(P_A(t),P_C(t))=K(A,C) d(P_B(t),P_C(t))=K(B,C)          (2)

Com essas três equações podemos escrever 3 das nove coordenadas dos pontos A, B e C em função das outras. No total, precisamos de 6 coordenadas independentes para a descrição do sistema.

Agora, devemos escolher uma forma de designar essas 6 coordenadas. A forma apresentada inicialmente é através de cossenos diretores. Esse modo consiste em fixar um sistema de eixos cartesianos no corpo x_1', x_2' e x_3', conforme a figura abaixo. Em outras palavras, a medida que o sistema evolui, a direção desses eixos varia para um observador no referencial do laboratório, mas não varia para um observador no referencial do corpo rígido. Tomando como referência um sistema de eixos cartesianos fixo no referencial do laboratório, a determinação da orientação do corpo pode ser obtida através dos ângulos entre os eixos fixos no corpo e aqueles fixos no espaço.

Onde x_1, x_2 e x_3 (denominado sistema \kappa) representam os eixos fixos no espaço. O ponto O' é a origem do sistema de eixos fixos no corpo (denominado sistema \kappa'). Dessa forma, tomemos como parâmetros de descrição as coordenadas do ponto O' relativas a \kappa e os ângulos entre os eixos dos dois sistemas. Evidentemente, nem todos os parâmetros são independentes, visto que só precisamos de 3 coordenadas para especificar a orientação do corpo (ou seja, a orientação dos eixos do sistema \kappa' em relação àqueles do sistema \kappa). Vejamos como fazemos isso: queremos determinar \hat{x_i} em função de \hat{x_1}, \hat{x_2} e \hat{x_3}, para i=1, 2 e 3. Para isso, utilizamos o diagrama abaixo:

Onde os cossenos diretores são dados por:

\cos{\theta_{11}}=\cos(\hat{x_1'}\cdot{\hat{x_1}})=\hat{x_1'}\cdot{\hat{x_1}}          (3)

\cos{\theta_{12}}=\cos(\hat{x_1'}\cdot{\hat{x_2}})=\hat{x_1'}\cdot{\hat{x_2}}          (4)

\cos{\theta_{21}}=\cos(\hat{x_2'}\cdot{\hat{x_1}})=\hat{x_2'}\cdot{\hat{x_1}}          (5)

\cos{\theta_{22}}=\cos(\hat{x_2'}\cdot{\hat{x_2}})=\hat{x_2'}\cdot{\hat{x_2}}          (6)

Analogamente para \cos{\theta_{13}}, \cos{\theta_{31}}, etc. Com isso, podemos escrever \hat{x_i} em função de \hat{x_1}, \hat{x_2} e \hat{x_3}, para i=1, 2 e 3, veja:

\hat{x_1'}=\cos{\theta_{11}}\hat{x_1}+\cos{\theta_{12}}\hat{x_2}+\cos{\theta_{13}}\hat{x_3}         (7)

\hat{x_2'}=\cos{\theta_{21}}\hat{x_1}+\cos{\theta_{22}}\hat{x_2}+\cos{\theta_{23}}\hat{x_3}         (8)

\hat{x_3'}=\cos{\theta_{31}}\hat{x_1}+\cos{\theta_{32}}\hat{x_2}+\cos{\theta_{33}}\hat{x_3}         (9)

Perceba que o sistema \kappa' varia com o tempo, dessa forma, determinar os cossenos diretores em função do tempo completa a análise do sistema. Evidentemente, esses 9 ângulos não são todos independentes, pois sabemos que precisamos somente de 3 ângulos para especificar a orientação do corpo. Então, é de se esperar que haja algumas relações entre esses ângulos, válidas para todo t. Para encontrar essas relações, escrevamos as componentes de um vetor qualquer \vec{v} nas bases \kappa e \kappa'.

\vec{v}=v_1\hat{x_1}+v_2\hat{x_2}+v_3\hat{v_3}=v_1'\hat{x_1'}+v_2'\hat{x_2'}+v_3'\hat{x_3'}         (10)

Onde v_i são as componentes do vetor \vec{v} na base \kappa e v_i' são as componentes na base \kappa'. Tomando, em (10), o produto escalar dos dois lados da equação por \hat{x_1'}, \hat{x_2'} e \hat{x_3'}, sucessivamente, obtemos:

v_1'=v_1\cos{\theta_{11}}+v_2\cos{\theta_{12}}+v_3\cos{\theta_{13}}        (11)

v_2'=v_1\cos{\theta_{21}}+v_2\cos{\theta_{22}}+v_3\cos{\theta_{23}}        (12)

v_3'=v_1\cos{\theta_{31}}+v_2\cos{\theta_{32}}+v_3\cos{\theta_{33}}        (13)

Onde foi usado que a base de \kappa' (assim como a de \kappa) é ortonormal, isto é \hat{x_i'}\cdot{\hat{x_j'}}=\delta_{ij}. Utilizando a notação de Einstein (em todo termo em que algum índice é repetido, somatório é tomado sobre todos os valores possíveis do índice), a partir de agora, as equações (11) a (13) podem ser escritas de forma mais compacta: v_i'=\alpha_{ij}v_j. Onde \alpha_{ij}=\cos{\theta_{ij}}. Agora, podemos utilizar o fato de que a norma de um vetor (seu comprimento no R^3) não muda ao descompô-lo em bases diferentes, isto é:

v_i'v_i'=v_iv_i         (14)

Ou seja:

(\alpha_{ij}v_j)(\alpha_{ik}v_k)=(\alpha_{ij}\alpha_{ik})v_jv_k=v_iv_i         (15)

Agora, v_iv_i=\delta{jk}v_jv_k. Onde \delta_{jk} é o delta de Kronecker. Daí:

 

(\alpha_{ij}v_j)(\alpha_{ik}v_k)=(\alpha_{ij}\alpha_{ik})v_jv_k=\delta_{jk}v_jv_k         (16)

Pela arbitrariedade de \vec{v}, segue que:

\boxed{\alpha_{ij}\alpha_{ik}=\delta_{jk}}         (17)

Essas condições são obedecidas por todos os nove cossenos diretores. A condição em (17) é conhecida como condição de ortogonalidade, veremos adiante o motivo dessa nome.

No final dessa seção, introduziremos o conceito de transformações ortogonais.

As equações de (11) a (13) podem ser escritas por meio da notação matricial, através das definições:

[\vec{v}]_{\kappa'}=\begin{pmatrix} v_1' \\ v_2' \\ v_3' \end{pmatrix}         (18)

[\vec{v}]_{\kappa}=\begin{pmatrix} v_1 \\ v_2 \\ v_3 \end{pmatrix}         (19)

A=(\alpha_{ij})=\begin{pmatrix} \alpha_{11} & \alpha_{12} & \alpha_{13} \\ \alpha_{21} & \alpha_{22} & \alpha_{23} \\ \alpha_{31} & \alpha_{32} & \alpha_{33} \end{pmatrix}        (20)

Dessa forma, ficamos com:

[\vec{v}]_{\kappa'}=A[\vec{v}]_{\kappa}        (21)

Observe que, claramente, \alpha_{ij}=(A^{T})_{ji}. Logo, de (17):

(A^{T})_{ji}(A)_{ij}=\delta_{jk}         (22)

Ou seja, pela definição de produto de matrizes, segue que:

A^{T}A=I          (23)

Ou, de forma equivalente, A^{T}=A^{-1}. Ou seja, A é uma matriz ortogonal, e dizemos que (18) é uma transformação ortogonal. 

Para ver melhor como as coisas funcionam, consideremos uma rotação no plano, para exemplificar.

Rotação no plano Considere uma rotação no R^2, conforme a figura abaixo, onde o ângulo \beta é o ângulo de rotação. Mostre que a transformação que leva [\vec{r}]_{\kappa} em [\vec{r}]_{\kappa'} é ortogonal.

Para duas dimensões nossa transformação é dada por:

[\vec{r}]_{\kappa'}=A[\vec{r}]_{\kappa}        (24)

Com

A=\begin{pmatrix} \cos{\beta} & \sin{\beta} & 0 \\ -\sin{\beta} & \cos{\beta} & 0 \\ 0 & 0 & 1 \end{pmatrix}          (25)

Agora devemos testar a condição de ortogonalidade, de acordo com (17), devemos ter

\alpha_{11}\alpha_{11}+\alpha_{21}\alpha_{21}=1         (26)

\alpha_{12}\alpha_{12}+\alpha_{22}\alpha_{22}=1         (27)

\alpha_{11}\alpha_{12}+\alpha_{22}\alpha_{21}=0         (28)

Que são claramente satisfeitas, pois \sin^2{\beta}+\cos^2{\beta}=1. Além disso, podemos escrever as novas coordenadas do vetor \vec{r} no sistema de coordenadas rotacionado

r_1'=r_1\cos{\beta}+r_2\sin{\beta}         (29)

r_2'=-r_1\sin{\beta}+r_2\cos{\beta}         (30)

Seção II: Teorema de Euler

Na seção passada, interpretamos a matriz de transformação A como sendo um operador sobre as componentes de \vec{v}. Ou seja, após a rotação, o vetor permanece inalterado: apenas escrevemos suas componentes com relação à outra base. Esse é o ponto de vista passivo. Para análise dos corpos rígidos, o outro ponto de vista, chamado ponto de vista ativo, é mais útil. Com esse ponto de vista, tomamos A como sendo um operador sobre o vetor \vec{v} de forma que, após a rotação, o vetor é rotacionado. A matriz de rotação A relaciona as componentes dos vetores antes e depois da rotação, ambos decompostos na mesma base. No exemplo da rotação no plano, podemos dizer que \vec{r}'=A\vec{r}, onde \vec{r}' é o vetor obtido pela rotação de \vec{r} de um ângulo \beta no sentido horário. Pense um pouco para aceitar o argumento acima. Nesse sentido, as componentes de \vec{v} na base \kappa' são iguais as componentes do vetor \vec{r}' na base \kappa, este que foi obtido pela rotação de \vec{v}. Evidentemente, ambas interpretações geram os mesmos resultados, todavia, o ponto de vista ativo é, geralmente, melhor visualizado. O argumento acima é resumido na observação abaixo.

Observação: O operador A pode ser considerado como a transformação que gira o sistema de eixos coordenados por um ângulo \phi ou como sendo uma rotação sobre o vetor \vec{v} por um ângulo -\phi.

Antes de apresentarmos o Teorema de Euler, iremos enunciar duas propriedades importantes das transformações ortogonais, essas que são obtidas a partir do estudo da matriz de transformação A. A primeira será útil na secção dos ângulos de Euler, enquanto a segunda será de fundamental importante para a caracterização de um possível deslocamento de um corpo rígido. As propriedades serão apresentadas da forma enunciado-demonstração.

Propriedade 1: Considere duas transformações ortogonais sucessivas, representadas pelas matrizes A e B, onde A acontece primeiro. Existe uma única transformação ortogonal que leva o corpo do estado inicial para o final, sem passar por um estado intermediário. Chamando essas matriz de C, teremos: C=BA.

Demonstração: Temos que \vec{r}'=A\vec{r} e \vec{r}''=B\vec{r}'. Daí: \vec{r}''=BA\vec{r}. Para provar a ortogonalidade de C$, calculemos o produto C^{T}C: C^{T}C=(BA)^{T}(BA)=A^{T}B^{T}BA=A^{T}(B^{T}B)A=A^{T}IA=A^{T}A=I. Onde foi usado que A e B são ortogonais.

Propriedade 2: Se A é uma matriz ortogonal, |A|=\mp{1}.

Demonstração: A^{T}A=I\to{|A^{T}A|=|I|\to{|A^{T}||A|=|I|\to{|A|^2=|I|=1}}}. Onde foi usado que o determinante da transposta de A é igual ao determinante de A.

Até agora, pouco falamos sobre a cinemática de um corpo rígido propriamente dito. O estudo dessas transformações pode parecer um pouco abstrato mas, como verá na demonstração do Teorema de Euler abaixo, o formalismo algébrico pode ser bastante útil, já que não conseguimos visualizar facilmente a situação de forma geométrica.

Propriedade 3: Se A representação uma transformação ortogonal rígida, isto é, uma transformação na qual as distâncias são preservadas, |A|=1.

Demonstração: Primeiramente, note que a propriedade acima é particularmente útil para o nosso estudo pois estamos lidando com corpos rígidos. Para provar esse resultado, basta mostrarmos que |A|\ne{-1}. Alternativamente, podemos mostrar que uma transformação na qual |A|=-1 não é possível para um corpo rígido. Observe que uma matriz ortogonal com determinante -1 é a matriz -I. A transformação efetuada por ela é:

v_1'=-v_1         (31)

v_2'=-v_2         (32)

v_3'=-v_3         (33)

Que corresponde a uma inversão dos eixos coordenados. Portanto, uma inversão transforma um sistema cartesiano segundo a mão direita num sistema cartesiano orientado a mão esquerda. Isso, claramente não representa um deslocamento possível para um corpo não deformável. Agora, qualquer matriz A com determinante -1 pode ser escrita como: A=(-I)(-A) com |-A|=1. Portanto, toda matriz A pode ser escrita como uma matriz própria (matrizes com determinante 1) multiplicada por outra imprópria (determinante -1). Segue, portanto, que A inclui uma operação de inversão e não é possível também.

Teorema 2 (Euler) O deslocamento mais geral de um corpo rígido com um ponto fixo é uma rotação em torno de algum eixo.

Demonstração: Primeiramente, consideremos a demonstração algébrica. O teorema nos diz que se um corpo rígido se desloca com um ponto fixo (isto é, passa de uma configuração inicial para uma final tal que o ponto em questão não se move) a transformação que leva o corpo da configuração inicial para a final pode ser tomada como uma rotação em torno de algum eixo (que contém o ponto imóvel, evidentemente. Caso não contivesse, o ponto imóvel se moveria). Se tal rotação existir, todo vetor \vec{u} ao longo do eixo de rotação permaneceria imóvel, após a rotação. Portanto, o problema se reduz em provar a existência de um vetor \vec{u} não nulo tal que

A\vec{u}=\vec{u}        (34)

Ou seja, (A-I)\vec{u}=0. A equação ao lado tem solução não trivial, se e somente, |A-I|=0. Como A é ortogonal I=AA^{T}. Logo A-I=A-AA^{T}=A(I-A^{T})=-A(A-A^{T})=(-I)A(A-I)^{T}\to{|A-I|=|-I||A||A-I|}\to{|A-I|=0}. Onde foi usado que |A|=1, pois, estamos lidando com uma transformação rígida. Observe que além da condição imposta acima, uma rotação deve preservar distâncias, mas isso já foi imposto pelas condições de ortogonalidade quando fizemos |A|=1. Para visualizar o teorema visualmente clique aqui.

Agora, daremos uma prova geométrica. Como a prova geométrica devido a Euler foge do escopo dessa aula, será apresentada uma demonstração criativa bastante simples. Primeiramente, devemos provar dois lemas:

Lema 1 Seja O o ponto estacionário do corpo rígido. Ao determinarmos o movimento dos pontos do corpo que estão sobre uma esfera centrada em O, teremos determinado o movimento de todo o corpo.

Demonstração: É deixado como problema na aula Rotações no espaço II

Lema 2 Sejam P a configuração inicial do corpo rígido e Q a configuração final. Se T é a transformação que leva o corpo rígido de P a Q, existem dois pontos que terminam na mesma posição. Ou seja, os estados desses pontos em Q são os mesmo em P.

Demonstração: É deixado como problema na aula Rotações no espaço II

Com esses dois lemas a nossa disposição, o restante da prova segue da arbitrariedade do lema 2. Ou seja, o lema é válido para qualquer T. Tomemos T como uma transformação infinitesimal. Em outras palavras, P e Q são configurações entre t e t+dt. O deslocamento dos pontos do lema 2, são dados por \vec{V}dt, para um certo \vec{V}. Como esse deslocamento deve ser nulo, segue que \vec{V}=0. Logo, esses pontos (A e B na figura abaixo) são se movem para qualquer T. Sendo assim, todos os pontos da reta que une esses dois pontos permanecem imóveis. Caso não permanecessem, as distâncias entre esses pontos supostamente móveis e o ponto parado se alterariam, o que não é possível, por hipótese. Logo, a reta citada é o eixo de rotação.

Seção IV: Teorema de Chasles

O teorema a seguir nos diz qual é o deslocamento mais geral de um corpo rígido.

Teorema 3 (Chasles) Todo deslocamento de um corpo rígido é uma composição de uma translação e uma rotação em torno de um eixo.

Demonstração: A demonstração segue facilmente do teorema 2. De fato, dadas as configurações inicial P e final Q, podemos tomar as seguintes transformações sucessivas: escolhemos um ponto genérico O do corpo rígido. Em seguida, transladamos o ponto O do seu estado inicial em P para seu estado final em Q. A translação anterior é feita para todo o corpo rígido. Isto é, se \vec{r}_O é o vetor posição de O em P e \vec{r}'_O é o vetor posição de O em Q, a primeira transformação consiste na adição do deslocamento \vec{r}'_O-\vec{r}_O para os vetores posição de todos os pontos do corpo. Após essa primeira transformação, a orientação do corpo permaneceu inalterada. Portanto, para levarmos o corpo desse estado intermediário para Q, precisamos de uma transformação que ajusta a orientação do corpo e seja tal que o ponto O permanece imóvel. Pelo último teorema, esta última transformação pode ser tomada como uma rotação em torno de um eixo que contém O.

A seguir enunciaremos dois teoremas úteis. O primeiro trata de uma composição de transformações úteis e o segundo de um deslocamento geral.

Teorema 4 A composição de duas rotações de um corpo rígido em torno de eixos paralelos em sentidos opostos de mesmo ângulo é equivalente a uma translação perpendicular à direção desses eixos.

Demonstração: A demonstração é bastante simples. Observe que em cada rotação nenhum ponto do corpo tem deslocamento ao longo dos eixos, portanto, o mesmo é válido para o deslocamento total. Agora, considere uma reta no plano perpendicular aos eixos. Na primeira rotação, essa reta gira um ângulo \theta, e na segunda, um ângulo -\theta. Segue, portanto, que após o deslocamento total do corpo rígido, a reta continua paralela a sua direção original. Da arbitrariedade dessa reta, segue que todos os pontos do corpo são deslocados por uma mesma quantia de forma paralela, o que constitui uma translação. Observe também que o teorema implica que uma rotação precedida ou acompanhada de uma translação perpendicular ao eixo de rotação pode ser obtida através de uma única rotação de torno de um eixo paralelo ao primeiro.

Teorema 5 Na condição do teorema de Charles, a translação pode ser escolhida como paralela à direção do eixo de rotação.

Demonstração: Sejam A a posição de um ponto qualquer do corpo rígido na configuração inicial e B a posição do mesmo ponto na configuração após a translação. Defina AK como sendo a reta que passa por A paralela à direção na qual a rotação acontece, onde K foi escolhido como sendo o pé da perpendicular de B a AK. Podemos, decompor a translação de A em dois vetores \vec{\delta}_1 e \vec{\delta}_2, conforme a figura abaixo.

Observe que \vec{\delta}_1 é paralelo ao eixo de rotação. A translação \vec{\delta}_2 junto com a rotação que acontecerá é a situação do teorema 4. Logo, esta última composição pode ser obtida por uma rotação em torno do eixo AK. Portanto, tomando o ponto A como ponto base, o deslocamento total do corpo rígido pode ser obtido através da composição de uma translação paralela a AK acompanhada de uma rotação em torno dessa reta, o que demonstra o teorema.

Seção V: Ângulos de Euler

Conforme vimos na primeira secção, 9 cossenos diretores não foram um conjunto de coordenadas independentes. Por esse motivo, é comum definirmos 3 ângulos (denominados ângulos de Euler) independentes que descrevem completamente a rotação do corpo rígido. A transformação que leva \kappa a \kappa' é realizada em três estágios sucessivos, cada um servindo para definir um dos ângulos de Euler. Nessa secção, \kappa é o sistema de eixos cartesianos fixos no espaço x, y e z. A configuração final (mediante o ponto de vista passivo) é determinada pela orientação de \kappa' em relação à \kappa. O primeiro representa o sistema de eixos cartesiano da configuração final x', y' e z'. Acompanhe atentamente as transformações sucessivas (verifique que as matrizes associadas a cada transformação estão corretas).

i) Rotação dos eixos (x,y,z) em torno do eixo z do ângulo \phi. A matriz D associada a transformação (x,y,z)\to{(\xi,\eta,\zeta)} é dada por:

D=\begin{pmatrix} \cos{\phi} & \sin{\phi} & 0 \\ -\sin{\phi} & \cos{\phi} & 0 \\ 0 & 0 & 1 \end{pmatrix}         (34)

ii) Rotação dos eixos (\xi,\eta,\zeta) em torno do eixo \xi do ângulo \theta. Seja C a matriz associada a transformação (pxi,\eta,\zeta)\to{(\xi',\eta',\zeta')}, então:

C=\begin{pmatrix} 1 & 0 & 0 \\ 0 & \cos{\theta} & \sin{\theta} \\ 0 & -\sin{\theta} & \cos{\theta} \end{pmatrix}         (35)

iii) Rotação dos eixos (\xi',\eta',\zeta') em torno do eixo \zeta' do ângulo \psi. Sendo B a matriz associada a (\xi',\eta',\zeta')\to{(x',y',z')}, temos:

\begin{pmatrix} \cos{\psi} & \sin{\psi} & 0 \\ -\sin{\psi} & \cos{\psi} & 0 \\ 0 & 0 & 1 \end{pmatrix}        (36)

A transformação (x,y,z)\to{(x',y',z')} é dada por A=BCD. O cálculo desse produto nos a matriz A:

A=\begin{pmatrix} \cos{\psi}\cos{\phi}-\cos{\theta}\sin{\phi}\sin{\psi} & \cos{\psi}\sin{\phi}+\cos{\theta}\cos{\phi}\sin{\psi} & \sin{\psi}\sin{\theta} \\ -\sin{\psi}\cos{\phi}-\cos{\theta}\sin{\phi}\cos{\psi} & -\sin{\psi}\sin{\phi}+\cos{\theta}\cos{\phi}\cos{\psi} & \cos{\psi}\sin{\theta} \\ \sin{\theta}\sin{\phi} & -\sin{\theta}\cos{\phi} & \cos{\theta} \end{pmatrix}        (37)

 

A figura abaixo representa, visualmente, essas três rotações.

Observe que o eixo \xi é denominado linha nodal.

Na parte II dessa aula, aprenderemos como lidar com esses ângulos para computar rotações em problemas concretos. Outras aplicações dos teoremas aqui apresentados serão feitas também.