Mecânica dos Fluidos - Parte 1 & 2 - Os Básicos e a Equação da Continuidade

Escrito por Guilhermo Cutrim Costa.

Parte 1 - Os Básicos

Uma das áreas da física mais importantes é a mecânica dos fluidos (também conhecida como hidrodinâmica). A maioria das olimpíadas de física não aborda essa área com muita profundidade; o Torneio Internacional de Jovens Físicos (conhecido como IYPT, do inglês International Young Physicists’ Tournament), porém, cobra conhecimentos profundos dessa área, para resolver problemas abertos de pesquisa. Por isso, começaremos agora uma série de posts para ajudar você a dominar essa área, se preparar para essa divertidíssima competição, e aprender um pouco mais sobre as leis que regem desde gigantescos tsunami até o fluxo do sangue por diminutos capilares. Nesta primeira postagem, vamos explicar os básicos da mecânica de fluidos. Ao terminar de ler essa postagem, você entenderá como a mecânica dos fluidos descreve fluidos matematicamente e você terá uma ideia dos próximos passos para compreender melhor esses meios fascinantes.

O objeto de estudo da mecânica dos fluidos são os fluidos (líquidos e gases), como você, astuto leitor, deve ter deduzido. A primeira consideração que faremos no nosso estudo do fluidos é considerá-los como contínuos. Isto é, ignoraremos o fato que, em uma escala microscópica, os fluidos são compostos de moléculas discretas, e tomaremos uma perspectiva macroscópica. Vamos falar muito de elementos de fluido ao longo dessa série. Quando falamos dessas coisas, estamos falando de volumes muito pequenos, que são simultaneamente pequenos o suficiente para considerarmos eles infinitesimais, mas grandes o suficiente para conterem um número grande o suficiente de moléculas para que possamos considerar o fluido como um contínuo. Esse conceito é um pouco paradoxal, mas, como as equações deduzidas a partir dele funcionam experimentalmente, os físicos ignoram as dificuldades filosóficas com ele e simplesmente “calam a boca e calculam", nas célebres palavras de David Mermin (comumente atribuídas a Richard Feynman).

Agora que temos uma ideia de como modelar um fluido, podemos pensar na questão de como descrever um fluido matematicamente. Faremos isso por meio de campos. Um campo é simplesmente uma função cujo domínio é um espaço (no caso da mecânica dos fluidos, o espaço que consideramos é uma região do espaço tridimensional na qual o fluido está presente). Essa definição é abstrata, então vamos olhar alguns exemplos de campos que você já deve conhecer: a temperatura de uma uma sala é descrita por um campo T(x, y, z, t) e a intensidade e direção do campo elétrico também, como o nome indica, é descrita por um campo \mathbf{E}(x, y, z, t). Note que campos podem ser escalares ou vetoriais. Perceba também que os campos podem variar com o tempo.

Na mecânica dos fluidos, estamos especialmente interessados em três campos: a velocidade do fluxo \mathbf{v}(x, y, z, t), a pressão p(x, y, z, t), e a densidade \rho(x, y, z, t). Na verdade, de acordo com a termodinâmica, esses três campos descrevem completamente o fluido! Se encontrarmos as leis que regem a evolução desses campos, e tivermos as condições iniciais, podemos prever o comportamento futuro do fluido! (Pelo menos em teoria... Veremos nas próximas postagens que nem sempre isso é prático.)

Uma sutileza importante é que, quando falamos da velocidade \mathbf{v}(x, y, z, t) em um ponto no fluido, estamos considerando um ponto fixo. Não estamos acompanhando o caminho de uma folha flutuando em um rio, mas sim olhando para um catavento fincado no solo para medir a direção e intensidade da velocidade do vento.

Perceba que podemos expressar a função vetorial \mathbf{v}(x, y, z, t) em termos de três funções escalares v_x(x, y, z, t), v_y(x, y, z, t), e v_z(x, y, z, t), que representam os componentes da velocidade nos eixos x, y, e z, respectivamente. Logo, um fluido é descrito por cinco campos escalares, e, portanto, precisamos de cinco equações escalares para determinarmos a evolução do fluido.

Quais são essas equações? Ao longo dessa série, você verá todas essas equações. A primeira delas é a chamada equação de estado: alguma função f(p, \rho, T) da pressão, densidade e temperatura tal que f(p, \rho, T) = 0. Essa equação depende das propriedades do fluido e é objeto de estudo da termodinâmica, não da mecânica dos fluidos. A segunda equação é a equação da continuidade, uma equação que expressa a conservação da massa matematicamente. As outras três equações são as componentes da equação de Euler, uma equação vetorial que expressa a conservação de momento – basicamente, uma versão de F = ma para fluidos.

Na próxima postagem, introduziremos a equação da continuidade e deduziremos a mesma. Podemos resolver alguns problemas surpreendentes com essa equação, e ver relações profundas entre a mecânica dos fluidos e o eletromagnetismo!

Exercícios.

1. Qual a equação de estado de um gás ideal?

2. Use a regra da cadeia para encontrar a derivada total da velocidade \dfrac{d\mathbf{v}}{dt}. Considere que \mathbf{v} = \mathbf{v}(x, y, z, t).

3. Considere uma folha flutuando na superfície de um rio, cujo fluxo é descrito pelo campo de velocidades \mathbf{v}(x, y). A folha, começando na posição \mathbf{r}_0, é arrastada pela corrente, acompanhando a velocidade do fluxo. Qual a aceleração \mathbf{a} da folha em função do campo de velocidades?

Dica: A resposta não é \dfrac{\partial \mathbf{v}}{\partial t}. Você consegue entender por quê?

Parte 2 – A Equação da Continuidade

Nota: para entender essa e as próximas postagens neste curso, é muito útil ter uma boa base de cálculo vetorial. A matemática da mecânica dos fluidos, como você verá, é muito similar àquela vista no eletromagnetismo; portanto, se você ainda não tem essa base, você poderá aprender essa matemática tanto em um livro de cálculo quanto em um livro introdutório de eletromagnetismo.

Podemos entender a mecânica clássica por meio da análise das quantidades conservadas: coisas, como energia e momento, que podemos calcular e verificar que o valor das mesmas não muda com o tempo. Vamos estudar a mecânica dos fluidos de maneira análoga. Você já deve estar se perguntando: quais são as quantidades conservadas da mecânica dos fluidos? Felizmente, essas quantidades são as mesmas velhas conhecidas da mecânica clássica! Em especial, usaremos a conservação de massa e a conservação de momento para deduzir as equações fundamentais da hidrodinâmica. Nesta postagem, usaremos a conservação de massa para deduzir a equação da continuidade.

É importante lembrar que a conservação de massa é uma lei de conservação local: isto é, além de a massa total total do universo ser conservada 1, uma quantia de massa não pode ir do ponto A ao ponto B sem passar pelo espaço entre esses pontos . Isso significa que podemos relacionar a variação de massa de uma região com o fluxo total de massa para fora dessa região!

Para que essa relação seja a mais simples possível, vamos considerar uma região fixa, que chamaremos de \Omega por conveniência. A superfície dessa região é chamada de \partial \Omega. A conservação local de massa é dada por \dfrac{dM_\Omega}{dt} = - \Phi_{\partial \Omega},
onde M_\Omega é a massa de fluido dentro da região \Omega e \Phi_{\partial \Omega} é o fluxo total de massa pela superfície da região \Omega. O sinal de menos é necessário pois, por convenção, tomaremos o fluxo como positivo quando ele está saindo da região.

O termo mais fácil de entendermos é \dfrac{dM_\Omega}{dt}. A massa é simplesmente a integral da densidade no volume da região

M_\Omega =\displaystyle \int_\Omega \rho \, dV,

então podemos derivar a massa da região usando a regra de Leibnitz:

\dfrac{dM_\Omega}{dt} = \dfrac{d}{dt} \displaystyle \int_{\Omega} \rho \, dV = \displaystyle \int_{\Omega} \dfrac{\partial \rho}{\partial t} \, dV.

Perceba que usamos o fato que a região é fixa.

Agora precisamos descobrir o fluxo de massa saindo da região. Para isso, vamos pensar num caso mais simples: considere um fluxo tal que a velocidade \mathbf{v} é uma constante, e temos uma área a formando um certo ângulo \theta com o vetor velocidade. Qual o fluxo de massa por essa área?

Bem, podemos pensar da seguinte forma: a velocidade normal à superfície tem magnitude v \cos \theta, e, durante um intervalo de tempo pequeno \delta t, o volume que passa pela superfície é a \cdot v \cos \theta \cdot \delta t. Consequentemente, a massa que passa pela superfície é

\delta m = \rho v \cos \theta \cdot a

O fluxo total de massa é igual à derivada \dfrac{dm}{dt}, que é simplesmente

\dfrac{dm}{dt} = \lim_{\delta t \rightarrow 0} \dfrac{\delta m}{\delta t} = \rho v \cos \theta \cdot a.

Se considerarmos o fluxo total de massa for uma área muito pequena \delta a, podemos definir o fluxo de massa (por unidade de área por unidade de tempo) da seguinte forma:

\mathbf{J} = \rho \mathbf{v}, \text{ tal que } \dfrac{dm}{dt} \text{ por } \delta a = \mathbf{J} \cdot \hat{\mathbf{n}} \, \delta a,

onde \hat{\mathbf{n}} é um vetor normal à superfície. Para que o fluxo seja positivo quando a massa sai da região, definimos \hat{\mathbf{n}} como apontando para fora.

Tendo isso em mente, é fácil calcular o fluxo total de massa! Basta integrar o fluxo de massa por toda a superfície da região:

\Phi_{\partial \Omega} = \displaystyle \oint_{\partial \Omega} \mathbf{J} \cdot \hat{\mathbf{n}} \, da = \displaystyle \oint_{\partial \Omega} \rho \mathbf{v} \cdot \hat{\mathbf{n}} \, da.

Agora, podemos escrever a equação da continuidade em sua forma integral:

\boxed{\displaystyle \int_{\Omega} \dfrac{\partial \rho}{\partial t} \, dV = - \displaystyle \oint_{\partial \Omega} \rho \mathbf{v} \cdot \hat{\mathbf{n}} \, da.}

Essa equação, de maneira análoga à forma integral da lei de Gauss, é útil para casos simétricos. Para muitos problemas, porém, não temos simetrias bonitas, e queremos uma forma diferencial para simular um fluido usando um computador. Para isso, aplicaremos um teorema do cálculo vetorial, chamado teorema de Stokes. Esse teorema afirma que, para qualquer campo vetorial \mathbf{f}, temos que

\displaystyle \oint_{\partial \Omega} \mathbf{f} \cdot \hat{\mathbf{n}} \, da = \displaystyle \int_{\Omega} \nabla \cdot \mathbf{f} \, dV.

Aplicando esse teorema, obtemos

\displaystyle \int_\Omega \dfrac{\partial \rho}{\partial t} \, dV = - \displaystyle \int_\Omega \nabla \cdot (\rho \mathbf{v}) \, dV \Rightarrow \displaystyle \int_\Omega \bigg( \dfrac{\partial \rho}{\partial t} + \nabla \cdot (\rho \mathbf{v}) \bigg) \, dV = 0.

Para que essa equação seja válida para uma região \Omega arbitrária, o integrando deve ser zero em todos os pontos. Consequentemente, deduzimos a forma diferencial da equação da continuidade:

\boxed{\dfrac{\partial \rho}{\partial t} + \nabla \cdot (\rho \mathbf{v}) = 0}

Um caso importante é quando um fluido é incompressível, isto é, tem densidade constante. Nesse caso, a equação da continuidade simplesmente afirma que o divergente do campo da velocidade é nulo:

\nabla \cdot \mathbf{v} = 0.

Se você já tem alguma experiência com cálculo vetorial, você pode lembrar da interpretação geométrica do divergente: um divergente positivo representa uma fonte do campo vetorial, e um divergente negativo representa um sorvedouro do campo vetorial. Logo, a equação de continuidade simplesmente afirma que um fluido incompressível não aparece magicamente em alguns pontos e desaparece em outros, o que faz bastante sentido!

Outra coisa que você pode ter percebido, caso você tenha algum domínio da área de eletromagnetismo, é que a equação da continuidade para o caso incompressível é idêntica à lei de Gauss no espaço vazio! Basta trocar o campo elétrico pelo campo de velocidades. Na verdade, existe um análogo exato da equação da continuidade para a conservação de carga, como você verá nos exercícios. Essas analogias entre a hidrodinâmica e o eletromagnetismo, como você verá no decorrer desse curso, são recorrentes e muito poderosas.

Na próxima postagem, você verá como aplicar a conservação de momento para fluidos, e deduziremos a equação de Euler! Poderemos resolver muitos problemas de hidrodinâmica usando apenas essas duas equações.

Exercícios.

1. Mostre que o campo de velocidades

\mathbf{v} = v_0 (\cos \theta \, \hat{\mathbf{x}} + \sin \theta \, \hat{\mathbf{y}})

satisfaz a equação da continuidade para um fluido incompressível.

2. Um fluido em repouso, com densidade inicial \rho_0, sofre uma pequena perturbação, tal que \rho = \rho_0 + \rho_1 e \mathbf{v} = \mathbf{0} + \mathbf{v}_1 onde o subscrito 1 representa uma quantidade pequena. Expresse a equação da continuidade, desprezando termos de segunda ordem.

3. Seja \rho a densidade de carga em um fluido que se move com velocidade \mathbf{v}. Mostre, a partir das equações de Maxwell, que

\dfrac{\partial \rho}{\partial t} + \nabla \cdot (\rho \mathbf{v}) = 0.

4. Considere uma bolha esférica de raio R, imersa n’água, pulsando radialmente de tal forma que a velocidade da superfície da bolha é dada por

\mathbf{v}_\text{sup}(t) = v_0 \cos (\omega t) \, \hat{\mathbf{r}}.

Encontre o campo de velocidades \mathbf{v}(r, \theta, \varphi) em todos os os pontos. Assuma que a água é um fluido incompressível.


  1. Bem, pelo menos na mecânica clássica…Na relatividade, vemos que a massa pode se transformar em energia e vice-versa. Não vamos nos preoucupar com isso nesse curso!↩︎