Parte 3 - A Equação de Euler

Parte 3 - A Equação de Euler

Nas duas últimas postagens, você aprendeu a estrutura básica da mecânica dos fluidos e viu a primeira equação fundamental desse campo da física, a equação da continuidade. Agora, você verá a equação de Euler – uma aplicação do princípio da conservação do momento à hidrodinâmica. Com apenas essas duas equações, você poderá resolver a enorme maioria dos problemas de mecânica dos fluidos! (Bem, pelo menos os que podem aparecer nas olímpiadas tradicionais... Para a IYPT, é importante aprender modelos mais realistas, que aparecerão nas próximas partes dessa série!)

Sem mais delongas, vamos direto à dedução dessa equação. Você pode estar se perguntando: “Como podemos aplicar a conservação de momento para algo contínuo como um fluido?" A maneira mais fácil de fazer isso é esquecendo o fato de que um fluido é contínuo e analisar um elemento infinitesimal de volume de um fluido. Para que nossa dedução seja a mais similar possível à análise de forças atuando sobre blocos (com a qual você já deve estar acostumado), consideraremos um elemento que acompanha o movimento do fluido, tal que não há um fluxo de fluido pelas sua superfície. Sendo assim, não há variação da massa desse elemento de fluido, e, portanto, a conservação de momento se reduz à Segunda Lei de Newton – aquele bom e velho F = ma.

Não é muito complicado achar a massa e a aceleração de um elemento de fluido: a massa é simplesmente dada por \rho \, dV, como esperado, e a aceleração é dada por

\mathbf{a} = \frac{d\mathbf{v}}{dt} = \frac{\partial \mathbf{v}}{\partial t} + (\mathbf{v} \cdot \nabla) \mathbf{v}.

(Essa é simplesmente a derivada total da velocidade do elemento de fluido.)

Para acharmos a força que incide sobre o elemento de fluido, porém, temos que pensar um pouco mais. Ignorando por um instante campos externos (como o elétrico ou o gravitacional), a única força que atua sobre o elemento de fluido é aquela causada pela pressão. Porém, a pressão comprime o elemento de fluido em todas as direções; como, então, podemos achar a força resultante? Bem, podemos simplesmente integrar sobre a superfície do elemento de fluido. Seja \Omega o elemento de fluido e \partial\Omega sua superfície; a força causada pela pressão é

- \oint_{\partial\Omega} p \hat{\mathbf{n}} \, da = - \int_{\Omega} \nabla p \, dV,

onde usamos o Teorema de Gauss para tomar o passo mágico de transformar uma integral de área em uma integral de volume. Na verdade, esse passo não é tão mágico assim: a equação acima apenas indica que a força por volume que atua sobre um elemento de fluido é menos o gradiente da pressão, o que faz algum sentido (se a pressão é constante, a força é nula; e o elemento se aproxima das regiões de baixa pressão).

Se você quer ter uma visão mais intuitiva dessa força causada pela pressão, pense no seguinte exemplo: um tubo cilíndrico de área A é preenchido por um fluido com pressão variável p(z) ao longo do eixo do cilindro. A força devido à pressão que atua em um elemento de espessura dz é

dF = - p(z + dz) A + p(z) A = - [p(z + dz) - p(z)] A = - \left[\frac{\partial p}{\partial z} dz \right] A = - \frac{\partial p}{\partial z} dV.

(Note que a pressão sempre atua comprimindo o elemento de fluido.)

Essa dedução heurística também é aplicável em três dimensões, sem grandes diferenças do caso unidimensional. Se você não se lembrar da equação de Euler na hora da prova, essa dedução, apesar de ser pouco rigorosa, tem a vantagem de ser simples e fácil de lembrar.

Agora que estamos convencidos que a força por volume é - \nabla p \, dV, uma simples aplicação da Segunda Lei de Newton nos dá a equação de Euler! Veja:

d\mathbf{F} = \mathbf{a} \, dm \Rightarrow - \nabla p \, dV = \rho \frac{d \mathbf{v}}{dt} \, dV \Rightarrow \boxed{ \frac{\partial \mathbf{v}}{\partial t}+ (\mathbf{v} \cdot \nabla) \mathbf{v} = - \frac{1}{\rho} \nabla p. }

Note que a equação de Euler é uma equação diferencial parcial não-linear: o termo convectivo (\mathbf{v} \cdot \nabla) \mathbf{v} tem um produto da velocidade com sua derivada. Consequentemente, várias propriedades bonitas que você usa para resolver equações diferenciais lineares (como o princípio da superposição) não se aplicam. Devido à dificuldade de encontrar soluções analíticas para a equação de Euler quando o termo convectivo é não-nulo, questões de olimpíadas, em geral, introduzem suposições adicionais ao problema de tal forma que os efeitos do termo convectivo se tornam desprezíveis. (Na IYPT, é claro, isso não pode não se aplicar! Existem vários fenômenos interessantes cuja existência depende do termo convectivo, e nesses casos, você terá que trabalhar com toda a complexidade – e toda a beleza – da equação de Euler.)

Exercícios

1. Mostre que a equação de Euler é satisfeita por um fluxo uniforme \mathbf{v} = \text{cte.} Mostre que, nesse caso, a pressão é a mesma em todos os pontos.

2. Considere que a atmosfera terrestre tem temperatura uniforme T. Seja p_0 a pressão atmosférica ao nível do mar e \rho_0 a densidade do ar na mesma altitude. Encontre a pressão atmosférica em função da altitude p(z) e a espessura aproximada da atmosfera \ell.

3. Suponha que um fluido, inicialmente em repouso, é levemente perturbado, tal que o campo de pressões é p = p_0 + p_1, onde p_0 é a pressão (constante) do fluido não-perturbado e p_1 é uma pequena perturbação de primeira ordem. Analogamente, expandimos o campo de densidades tal que \rho = \rho_0 + \rho_1 e o campo de velocidades tal que \mathbf{v} = \mathbf{v}_1.

(a) Escreva a equação de Euler, desprezando termos de segunda ordem e acima. A equação resultante é linear ou não?

(b) Faça o mesmo para a equação da continuidade (ou use sua resposta do exercício 2 da parte 2).

(c) Não é possível resolver o sistema acima; precisamos de mais uma equação, que nos dirá as propriedades do fluido. Assuma, para este e para os próximos items, que o fluido é um gás ideal. Usando a equação de estado de um gás ideal e considerando uma transformação adiabática, relacione a perturbação na pressão p_1 e a perturbação na densidade \rho_1. Lembre-se que as perturbações são pequenas.

(d) Tendo a equação final em mãos, mostre que a perturbação na pressão é regida por uma equação de onda

\frac{1}{c^2} \frac{\partial^2 p_1}{\partial t^2} = \nabla^2 p_1,

onde c é uma constante tal que c^2 = \gamma p_0 / \rho_0. Você acaba de provar rigorosamente que pequenas perturbações em um gás ideal geram ondas! E, de quebra, calculou a velocidade do som para um gás ideal.