Por mais científico que tenha sido o florescimento da filosofia com os pensadores de Mileto, têm-se que, ao se desenvolver no sul da Itália, a tradição tenha adquirido um caráter místico-religioso e, sob muitos aspectos, órfico. Não encontraremos, no estudo da escola italiana, uma verdadeira preocupação com a physis; com efeito, pode-se dizer que o objeto destes pensadores é bem mais abstrato e distante da realidade.
Compõe a escola italiana: a escola pitagórica — fundada por Pitágoras — e a escola eleática — cuja figura principal é Parmênides. Contudo, por questões didáticas, deixaremos para falar de Parmênides e do pensamento eleático juntamente com a análise do pensamento de Heráclito de Éfeso; ou seja, nesta aula, trataremos apenas do pensamento da escola pitagórica.
Desta forma, o principal pensador a ser analisado é o próprio Pitágoras, uma das figuras mais controversas e peculiares de toda a história; por um lado, um célebre matemático cujas contribuições vão desde a sistematização da geometria até as bases do pensamento platônico, por outro, um líder de uma seita esotérica que acreditava na transmigração da alma e pregava a abstenção de se alimentar de favas.
BIOGRAFIA
Não é nem um pouco fácil escrever sobre a vida de Pitágoras, pois, devido a sua personalidade misteriosa e ao caráter místico de sua escola, muitos de seus discípulos espalhavam lendas acerca de sua pessoa. Uns diziam que era filho do próprio deus Apolo, senhor de toda beleza e harmonia; acredita-se ainda que, ele próprio, considerava-se um ser semidivino. De qualquer forma, existem alguns acontecimentos de sua vida que são tidos como consenso pela maioria dos historiadores.
Acredita-se que tenha nascido na ilha de Samos, na Jônia, em cerca de 570 A.C, filho de um cidadão rico chamado Mnesarcos. Samos foi dominada pelo tirano Polícrates de 538 a 522 A.C, o que o levou a abandonar sua cidade por desgosto do governo vigente. Supõe-se que tenha passado pelo Egito, onde teve contato com as religiões egípcias e as ideias de transmigração da alma, embora ele também possa ter tido contato com essas crenças na região da Trácia, no Norte da Grécia.
Logo após, ele migrou para Crotona, na Itália, onde pôde finalmente fundar sua sociedade de discípulos, dado que se tratava de uma cidade rica e próspera. O apreço do povo por sua seita decresceu progressivamente até ser expulso, culminado em fuga para Metaponto, local de sua morte. Em relação a sua morte, existem inúmeras histórias, algumas trágicas e outras cômicas; uns afirmam que teria morrido de inanição voluntária, ao acreditar que já vivera o suficiente, outros defendem que a sua abstenção a favas o levou a ser linchado, e outros ainda acreditam que teria morrido queimado junto com alguns de seus discípulos. A única coisa que se sabe de fato é que alcançara uma idade próxima de 80 anos.
ESCOLA PITAGÓRICA
Temos que reconhecer as contribuições do pensamento pitagórico aos tempos contemporâneos. Pitágoras e seus discípulos foram os fundadores da matemática como argumento dedutivo, isto é, da matemática pura e os primeiros a defender a esfericidade do planeta terra. Sua sociedade foi uma das, senão a primeira, a aceitar mulheres e a trata-las com igualdade de condições. Nela também havia um modo de vida comum, em que todos os bens e realizações matemáticas eram tidos como coletivos.
Quanto a sua crença na imortalidade da alma, Pitágoras defendia que, assim como tudo na terra não some, mas transforma-se em algo novo, a alma também deve voltar indefinidamente para novas vidas em corpos distintos; podendo, inclusive, aderir ao corpo de animais. Esta crença levou a pregação do vegetarianismo em meio aos membros de sua sociedade, assim a pregação para animais.
A influência de sua escola se estende desde Euclides até a forma como nós vemos a religião atualmente. O deus de Pitágoras é um deus atemporal e perfeito, que se manifesta na existência por meio dos números, que por sua vez são também perfeitos e atemporais. Nasce em seu pensamento o abandono do mundo material e a pregação de um mundo inteligível, o mundo dos teoremas, das provas e, sobretudo, o mundo de deus. Fica evidente o quão substancial foi a influência de Pitágoras no pensamento platônico, particularmente em relação ao saber e ao amor contemplativo, que comentaremos mais adiante.
Outro tópico que foi profundamente estudado por Pitágoras foi a música. Por muito tempo ela foi tratada como matéria de cunho geométrico, o que explica termos como “progressão harmônica” e “média harmônica”. Ele também analisava seus efeitos sobre o funcionamento da mente humana.
Como última grande influência, temos o método geométrico, que influenciou indefectivelmente o avanço da ciência durante o período moderno; especialmente, no que se refere à formulação do método científico. Além disso, vemos a ideia dos axiomas, pressupostos incontestáveis que servem de base para a teoria, tanto na ética, ao considerarmos, por exemplo, os direitos inalienáveis de todo e qualquer ser humano, como na teologia, ao considerarmos os dogmas da patrística.
A MATEMÁTICA
No estudo da vida e do pensamento de Pitágoras, percebe-se uma relação obscura entre matemática e religião, fato que se torna ainda mais curioso quando comparado ao pensamento jônico. Uma boa hipótese do porquê de isso acontecer é a seguinte: o florescimento da filosofia se deu em ausência de uma sistematização intrínseca a investigação racional, o que corroborou a ramificação da filosofia em uma vertente que buscava racionalizar a physis e outra que buscava um objeto racionalizado a priori.
Este objeto, na concepção dos pitagóricos, era o número. Dado que esse seria o elemento fundamental, presente em todas as coisas, e que associaria a aritmética à geometria. A visão que Pitágoras tinha da aritmética era que esta fundamentava o estudo da estética; este fato pode ser observado na arte e na arquitetura grega, que buscavam sempre trazer proporções exatas entre os elementos representados. Não obstante, temos que ele já apresentava uma ideia embrionária de atomismo, ao entender os comprimentos, áreas e volumes como múltiplos inteiros de uma unidade comum.
Existe outra forma de explicar o misticismo presente em sua corrente, que é usada por Francis Cornford e diz que o Pitagorismo é, na verdade, uma reforma do orfismo, culto a Orfeu, que se utiliza de uma análise, particularmente, intelectual; ou seja, o pensamento de Pitágoras não representa uma ramificação da tradição filosófica em uma abordagem mais religiosa — talvez até o faça, porém de forma diminuta —, mas sim de um culto místico-religioso de caráter filosófico.
A aversão ao mundo natural em Pitágoras se expressa pela segurança do saber matemático, enquanto saber teórico, em oposição ao saber empírico dos físicos; dado que a validade de um teorema está baseada totalmente na veracidade de seus axiomas, estes que são auto evidentes. Portanto, seguindo este mesmo raciocínio, Pitágoras prioriza bem mais o conhecimento fruto do puro raciocínio do que aquele derivado de experiência sensível.
Infelizmente, foram suas próprias descobertas que acabaram por destruir sua teoria. Estou me referindo exatamente ao seu mais célebre teorema, que pode, no entanto, ter sido descoberto por um de seus discípulos. Os egípcios já sabiam que um triângulo cujos lados medem , e tem um ângulo reto se opondo ao maior lado. Contudo, foram os pitagóricos os primeiros a perceber que e a partir desse caso, provar a proposição geral. Sabendo desse fato, eles consideraram um triângulo reto isósceles, com ambos os catetos valendo unidade, o que levou a descoberta de uma hipotenusa com valor irracional. Pitágoras supôs que tal número pudesse ser representado na forma com e sendo inteiros positivos e primos entre si, isto é, sem fatores primos comuns. Desta forma, ⇒ . Sabe-se então que o quadrado de é par e, portanto, também é, podendo, assim, ser escrito na forma , com inteiro. Por outro lado, se o substituirmos na primeira equação, teremos: , o que analogamente implica que é par. Portanto chega-se a um absurdo, pois foi suposto que e não tinham fatores primos em comum, mas se são ambos pares, certamente terão o número em suas fatorações.
Esta observação destruiu a teoria pitagórica de que, para tudo no mundo, existiriam proporções racionais de seus valores. Depois disso, a aritmética e a geometria foram separadas em dois estudos distintos. O próprio Euclides dedica todo o capítulo 10 da sua obra Elementos para tratar de medidas incomensuráveis (irracionais), claramente usando de uma abordagem geométrica. Apenas com René Descartes que estes dois estudos irão convergir novamente, a geometria, amplamente desenvolvida pelos gregos, e a aritmética, juntamente com a álgebra desenvolvida pelos árabes.
ÉTICA CONTEMPLATIVA
Para Pitágoras e seus discípulos, a vida boa e correta só podia ser alcançada através da observação passiva e da reflexão. Os seres humanos, pois, só existiriam para contemplar a beleza de deus e da geometria e era isso que os qualificava como pessoas morais. Este louvor à contemplação irá influenciar profundamente o pensamento de Platão e toda forma de religião ocidental.
De acordo com a doutrina platônica, as pessoas que vão a um espetáculo apenas assistir são superiores aquelas que, de fato, farão o espetáculo. Quando ele cunha o termo filosofia, amor à sabedoria, é exatamente este amor ao qual ele se refere. O amor contemplativo, que aprende desinteressadamente. Estes valores fogem muito ao homem moderno.
A contemplação, naquele contexto aristocrático e escravocrata, dignificava o ócio da classe no poder — o trabalho era visto como uma atividade inferior —; todavia, com as revoluções burguesas que destituíram a classe dominante do poder e caracterizaram o mundo moderno, novos valores foram instaurados, valores que prezam a atuação, o liberalismo e o pragmatismo. Neste novo mundo, há pouco espaço para a contemplação desinteressada, o que nos distancia dos ideais pitagóricos.
- Aula escrita por Cauan Marques
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