Aristóteles e a Sistematização do Pensamento Filosófico

A partir desta aula, começaremos a discutir acerca daquele que é considerado um dos filósofos mais importantes da tradição ocidental, que persiste, não apenas vestigialmente, nas discussões contemporâneas sobre política, ética e lógica; sendo, assim como Sócrates, mestre de seu mestre Platão, um divisor de águas na história da filosofia. Existe, pois, um empecilho natural ao se analisar a obra de um pensador como Aristóteles ― como bem observa Russell, este empecilho nos atinge de ambos os sentidos: passado e futuro; pois, como é esperado que tratemos do autor dentro de uma perspectiva histórica, e não como um agente atemporal cujas ideias emergem espontaneamente, precisamos lidar tanto daqueles sobre o qual se apoia o pensamento aristotélico, isto é, seus predecessores, como daqueles sob o qual repousam as ideias de Aristóteles, ou seja, os que por ele foram influenciados ― e certamente sabemos que não foram poucos. O fato é que, por um lado, os pensamentos de Aristóteles estão absolutamente mais em concordância com os nossos pensamentos contemporâneos do que os de qualquer outro pensador anterior, salvo talvez alguns materialistas que a tradição tratou de esnobar, como Demócrito. Por outro, suas ideias são de tal forma dignas de respeito, que salta aos olhos como terrível ato de arrogância se pôr a questioná-las, soma-se a isso ainda a relevância que teve Aristóteles nos 2000 anos que sucederam sua morte e sua completa hegemonia sobre a doutrina cristã tomista da baixa Idade Média e têm-se uma ideia primordial do quão doutrinário tornou-se o corpus aristotelicum; porém, não é factível atribuir essa carga doutrinária a pessoa de Aristóteles, mas sim aos seus sucessores. Na realidade, o que se tem é quase o contrário disso, pois Aristóteles foi um grande professor; o Liceu pode ser considerado a primeira universidade da história, claro que com algumas ressalvas. Nesta aula introdutória, vamos falar um pouco sobre a biografia de Aristóteles, para vos contextualizar no período histórico deste, assim como também começaremos nossas discussões acerca do que seria sistematização, noção essa que há de ser galgada ao longo das várias aulas sobre o autor

O FILÓSOFO DE ESTAGIRA

Aristóteles nasceu por volta de 384 A.C., filho de um médico de família do rei da Macedônica, contudo, apesar de o que podem pensar algumas pessoas, ele não nascera em Atenas, mas sim em Estagira, na Trácia. Somente aos dezoito anos, aproximadamente, se mudara para Atenas e passara a integrar a Academia de Platão, tornando-se seu maior discípulo ― sobre isso, temos o comentário de Platão quando via que ele não estava na Academia “a inteligência está ausente”. Ele passou vinte anos em Atenas, até a morte de seu mestre em 348-7 A.C.; depois disso, tornou-se um viajante, segundo Danilo Marcondes, talvez a liderança da Academia por Espeusipo, cujas ideias destoavam fundamentalmente das de Aristóteles, este tenha decidido sair daquela, buscando seguir o próprio caminho. Fora de Atenas, foi preceptor do futuro imperador Alexandre, filho do rei Filipe da Macedônica, quando este tinha 13 anos de idade; ensino este que perdurou até os seus 16 anos, quando atingiu a maioridade. Muito se debate quanto aos frutos dessa relação entre Aristóteles e Alexandre, pois esses são tidos como dois dos homens mais inteligentes que já viveram, um sobressaindo-se quanto a filosofia e outro quanto a estratégia. No entanto, existem razões para acreditar que essas aulas não foram tão prolíficas quanto parecem ter sido, quanto a isso, deixo-lhes uma passagem de Russell em que ele, muito bem-humoradamente, exibe essas razões.

Quanto à influência de Aristóteles sobre ele (Alexandre), temos liberdade de conjeturar o que nos pareça mais plausível. Quanto a mim, suponho-a nula. Alexandre era um rapaz ambicioso e ardente, que não se dava bem com o pai e que, provavelmente, se sentia impaciente com os estudos. Aristóteles era de parecer que nenhum Estado devia ter mais de cem mil cidadãos, e pregava a doutrina da dourada mediocridade. Não posso imaginar que seu aluno o considerasse senão um velho prosaico e pedante, imposto por seu pai para que ele não cometesse tolices.

Em 335 A.C., ele voltou para Atenas, onde fundou, enfim, a sua escola, o Liceu, que perdurou por doze anos até a sua morte. Foi a esse período final da vida de Aristóteles que se deve a maior parte de suas obras, que eram senão anotações e tratados que seriam utilizados nas aulas que ministrava para seus discípulos. Isso, por si só, já expressa uma diferença substancial entre os escritos aristotélicos dos platônicos, sendo estes, exotéricos, isto é, dirigidos a população em geral e não apenas aos membros da Academia, o que explica o estilo literário e didático dos diálogos platônicos, e aqueles, esotéricos ou acroamáticos, ou seja, dirigiam-se somente aos seus discípulos, o que permitia que seus tratados fossem de maior complexidade e especificidade, dado que como professor poderia melhor explicar suas ideias por meio das aulas, que eram realizadas ao ar livre por meio de caminhadas daí o nome escola peripatética (peripatos ou “caminho” em grego). Não nos restaram os ensinos exotéricos do Liceu, assim como não nos restaram registros de textos esotéricos por parte da Academia; com efeito, estes últimos podem nem sequer ter existido, o que levanta um misterioso questionamento da tradição oral platônica. Após a morte de Alexandre, os atenienses se revoltaram-se quanto a este e a seus conhecidos, o que incluía Aristóteles, que foi acusado de impiedade, tal qual Sócrates. Contudo, Aristóteles não quis arcar com tal castigo e fugiu. O último ano de sua vida é muito incerto e não se sabe exatamente como teria morrido e nem onde, mas acredita-se que ele tenha morrido em 322 A.C. Encerrando-se assim a vida deste ilustre pensador, embora certamente não de suas ideias.

O QUE É SISTEMATIZAÇÃO

O principal diferencial de Aristóteles está não na natureza nem no assunto de seus estudos, mas em sua postura quanto a estes. A escrita de Aristóteles se assemelha bastante, não por acaso, aos artigos filosóficos da contemporaneidade, com uma divisão cuidadosa em capítulos, uma escrita que se preocupa em ser clara e trazer consenso quanto aos seus termos e uma atitude deveras crítica quanto às suas conclusões. O filósofo inicia seus estudos com base no senso comum e em termos facilmente aceitáveis pelos estudantes e, gradualmente, passa por um processo de decomposição quanto a essas ideias, buscando seus fundamentos mais primeiros, assim como dividindo as várias ideias menores que as compõem. Daí vem a própria palavra “análise”, que quer dizer decomposição. Analisar nada mais é do que quebrar uma afirmação complexa em afirmações mais simples, cuja validade pode ser mais facilmente ratificada ou refutada. Com efeito, Aristóteles é um pensador que quer ser compreendido em vez de somente aceito, pois ele se preocupa em tornar seus textos coerentes e coesos.

Podemos pensar, portanto, em sistematização como sendo a divisão do pensamento em partes correlacionadas, ou seja, que se influenciam mutuamente. O sistema de pensamento aristotélico é altamente coerente e coeso, sendo também muito abrangente. Aristóteles estudou quase tudo que se podia estudar, é considerado o pai da biologia, o grande nome da física clássica e de toda a ciência pré-copernicana, o elaborador da lógica ― e quanto a isso vale comentar o quão assustador é a relevância do silogismo aristotélico, pois apenas a partir do século XIX que se começou a pensar em uma lógica que transcendesse os escritos de Aristóteles e pode-se dizer que ainda é impossível estudar lógica sem ele ― e um importante escritor de ética e política. Por todos esses motivos, acredito que fique claro o porquê de Aristóteles ser um pensador tão importante e de estudo tão vasto. Dessa forma, convido-vos a passar por esses estudos rigorosos, que muito exigirão dos leitores em poderes de compreensão e interpretação, e que certamente não serão superados sem dedicação e muita leitura. Aristóteles é um autor sistemático, mas não absolutamente claro, muitas das suas ideias não são completamente compreensíveis para nós, o que representa outro empecilho: como saber se somos nós que não estamos entendendo Aristóteles ou ele que não está fazendo sentido? Bem, por ora, tudo que nos resta é buscar revisões e análises de autores mais proficientes e que o estudaram em profundidade. Para aqueles que se interessarem suficientemente pelo assunto, uma boa formação em grego antigo e anos de especialização no autor serão muito esclarecedores. Nas próximas aulas, trataremos do pensamento político naturalista de Aristóteles; de sua ética das virtudes; do seu pensamento lógico; de sua metafísica com base em sua crítica a Teoria das Ideia de Platão; e de suas influências póstumas.

 

-Aula escrita por Cauan Marques

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