ENSAIO MODELO - Nº04
"Porquê tolerar? Parece-me ainda pior do que perseguir. No perseguir há um reconhecimento do valor" Agostinho da Silva
No excerto, o filósofo Agostinho da Silva questiona o porquê de se tolerar. Assume-se que o objeto em questão que há ou não de ser tolerado pode ser uma ideia, discurso, ideologia ou ação. Ele prossegue afirmando que no ato de perseguir existe o reconhecimento de algum valor nesse discurso, ideia ou ideologia em questão, coisa que não existe no ato de tolerar, logo a tolerância seria pior que a perseguição. Penso que a tolerância irrestrita tem implicações negativas, no entanto não me baseio nas mesmas razões que Agostinho da Silva, pois penso que a perseguição e a tolerância irrestrita são igualmente prejudiciais numa democracia, pois se não tolerarmos pontos de vista distintos estaremos impossibilitando o debate e a pluralidade de ideias, componentes fundamentais em uma sociedade democrática.
Neste ensaio, defenderei a tese de que a tolerância (seja de discursos, ideias, ideologias ou ações) irrestrita tem um potencial prejudicial em uma democracia. Primeiro analisarei a relação entre discursos de ódio e a tolerância, analisando implicações negativas pela ótica da noção de reconhecimento em Charles Taylor. Também analisarei como discursos negacionistas impedem o progresso científico, histórico e epistêmico de uma sociedade. Isso para que, ao final, possamos identificar quais devem ser e porque devem existir limites da liberdade de expressão no ambiente democrático.
- A tolerância irrestrita e o discurso de ódio
O filósofo inglês John Stuart Mill defendia a liberdade de expressão sem limitações. Em sua tese, ele argumentou que o silenciamento de ideias e discursos envolve uma pressuposição de infalibilidade do agente ou autoridade que a silencia. Como os seres humanos não são infalíveis, segundo o raciocínio de Mill, não se pode silenciar ou censurar ideias ou opiniões. A tese defendida por Mill supõe uma tolerância irrestrita e nessa seção argumentarei o potencial prejudicial desse tipo de suposição. Na última década, estão crescendo em diversos países o apoio a grupos de extrema-direita. Esses grupos, muitas vezes, têm discursos que proferem ódio e discriminação a grupos minoritários. Para evidenciar e dimensionar o dano causado a minorias pela livre expressão de discursos odiosos, me apoiarei no conceito de reconhecimento, na forma como entendida pelo filósofo Charles Taylor. A tese de Taylor acerca do reconhecimento explica que a forma como a sociedade enxerga, ou reconhece, grupos minoritários pode causar danos na forma como esses próprios indivíduos se enxergam e constroem sua identidade. Se a forma como a sociedade enxerga esses grupos é desprezível e preconceituosa, esses grupos e indivíduos estão sujeitos a construírem sua identidade baseados nesses preconceitos e estereótipos, vivendo confinados nesse modo limitado de existência. Essa noção é importante para a minha tese pois a forma como reconhecemos outros indivíduos e grupos na sociedade está intrinsecamente ligada ao discurso que temos em relação a eles. Se o discurso de ódio é permitido livremente, se abre espaço para que se perpetue e promova o reconhecimento distorcido, desprezível e preconceituoso desses grupos minoritários. Sendo assim, percebe-se a necessidade de censurar discursos odiosos que propagam discriminação a grupos minoritários, visto o dano que causa na construção identitária e na forma como esses grupos existem na sociedade.
Há de se considerar uma objeção, acerca da possibilidade de que, se esses discursos odiosos são infundados do ponto de vista racional, esses seriam descartados através do livre debate, que evidenciaria o caráter danoso deles, logo, não caberia a um agente ou autoridade censurá-los. No entanto, analisando de forma pragmática, a sociedade não funciona perfeitamente dessa forma. Diversos fatores como crises econômicas e imigratórias levam segmentos da sociedade a adotarem esses discursos por desespero, de forma dogmática. Aliás, é isso que acontece em diversos países em que a extrema-direita ganha força. Crises socioeconômicas popularizam discursos que identificam inimigos e apresentam soluções imediatas, muitas vezes através de discursos de ódio. Se o livre debate não é capaz de descartar esses discursos de ódio frente a crises socioeconômicas e outros fatores, é razoável que se estabeleça como um limite a liberdade de expressão discursos que propaguem discriminação e ódio a determinado indivíduo e/ou grupo social.
II. Negacionismo e a liberdade de expressão
A liberdade de expressão irrestrita requer que consideremos todo e qualquer tipo de discurso e questionamento como possivelmente verdadeiro. Nessa seção, pretendo argumentar que o negacionismo histórico também não deve ter espaço no direito de livre expressão, analisando as consequências desse tipo de discurso. Eventos históricos marcantes como o Holocausto ou regimes ditatoriais já terminados são alvos de negacionistas. Estes são indivíduos que, através da livre expressão, buscam subverter os valores desses acontecimentos ou negá-los completamente, motivados por interesses políticos e/ou ideológicos. É fundamental que a humanidade aprenda com a História, compreendendo fenômenos passados, por que aconteceram, como ocorreram e seu modus operandi. Para se ter progresso epistêmico e científico acerca desses eventos e fenômenos, é preciso que se aceite como verdade absoluta que aconteceram, frente as sólidas evidências empíricas. Se permitimos que negacionistas se apoiem em desinformações e distorção de fatos para subverter esses eventos ou negá-los, o progresso científico e epistêmico acerca desses temas se torna mínimo ou inexistente, pois correremos sério risco de apagarmos ou subvertermos importantes conclusões científicas sobre esses eventos, que nos permitem entendê-los e progredirmos como sociedade.
Há de se considerar uma possível objeção, que supõe que o questionamento acerca desses eventos é exatamente o que permite o progresso científico acerca deles, e censurar qualquer que seja a forma de questionamento levaria a uma crença dogmática quanto a esses acontecimentos, dessa forma estagnando o progresso em relação ao entendimento deles. No entanto, essa objeção apenas impõe que façamos uma distinção mais aprofundada de um questionamento que permita o progresso científico e epistêmico e aquele que somente busca distorcer, subverter ou negar esses eventos. A distinção se baseia no fato de que o segundo tipo de questionamento não aceita nem verdades consolidadas empiricamente, e sempre está motivado por interesses políticos e ideológicos, enquanto a motivação do primeiro é a compreensão integral do evento. Sendo assim, é razoável que não se permita a livre expressão dos questionamentos que busquem somente subverter, negar ou distorcer esses acontecimentos, visto que impedem o real progresso cientifico e epistêmico acerca do tema.
III. Conclusão
Em suma, defendi que a liberdade de expressão irrestrita pode ser prejudicial a uma sociedade, e apresentei dois argumentos que suportam essa tese. O primeiro analisa como discursos de ódio causam dano na construção identitária e na forma como grupos minoritários existem na sociedade, apoiado na noção de reconhecimento em Charles Taylor. O segundo argumento evidencia como o negacionismo histórico impede que a sociedade tenha progresso epistêmico e científico acerca de acontecimentos históricos, analisando como esse discurso se aplica e suas implicações no entendimento desses eventos. Evidentemente, se reconhece como fundamental na democracia o direito à liberdade de expressão, e toleramos, respondendo o questionamento de Agostinho da Silva, para que exista diversidade de ideias e se construa um ambiente democrático saudável e plural. No entanto, se reconhece como igualmente fundamental os limites à ela impostas. De acordo com os argumentos apresentados esses limites devem ser: todo e qualquer discurso de ódio, que propague discriminação a grupos minoritários e discursos que busquem subverter e/ou negar eventos históricos, motivados por interesses ideológicos e/ou políticos. É razoável que se limite e censure esses discursos para que, no primeiro caso, possamos viver em uma sociedade democrática e plural onde minorias tem sua identidade formada e possam existir sem restrições impostas pela forma como a sociedade a reconhece e, no segundo caso, termos progresso epistêmico e científico acerca de eventos históricos, para que possamos compreendê-los por inteiro.
SINTETIZANDO -
Autor da citação: Agostinho da Silva (1906-1994)
Posição em relação ao autor: concordância
Tese do ensaio: Defender a importância do limite da liberdade de expressão, atacando a tese da tolerância irrestrita.
Autores usados em suporte: Charles Taylor (1931-)
Autores usados em contraposição: John Stuart Mill (1806-1873)
Bons estudos!
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