ENSAIO MODELO - Nº06
“A tolerância universal torna-se questionável quando sua razão já não prevalece, quando a tolerância é administrada para indivíduos manipulados e doutrinados que papagueiam a opinião dos seus mestres como se fosse a sua própria, para eles heteronomia se tornou autonomia.” – Herbert Marcuse.
Em primeira análise, a citação acima, extraída do artigo Tolerância Repressiva de Herbert Marcuse, questiona os limites da tolerância; todavia, esse excerto, não apenas dialoga com o debate acerca das barreiras que devem ou não devem ser impostas a liberdade de expressão, mas também, sobre uma óptica mais geral, manifesta uma evidente contraposição entre tolerância e crítica. Com efeito, se supormos uma sociedade em que as noções de tolerância que permeiam as discussões públicas sejam extrapoladas às últimas consequências, toda e qualquer manifestação de pensamento crítico iria de encontro ao principio de tolerância incondicional — este será o termo que usarei como guia para o desenvolvimento de minha tese.
Neste ensaio, pretendo, tanto quanto for possível, argumentar contra a ideia de tolerância incondicional, assim como me empenharei em discutir a influência da liberdade de expressão, cultivada igualmente de maneira incondicional, sobre o poder crítico dos indivíduos. Não obstante, sabendo que tanto a liberdade de expressão como a tolerância são princípios fundamentais para o desenvolvimento de nossa sociedade e espécie, buscarei formular como esses valores podem ser cultivados adequadamente. Para fins explicativos, demarcarei meu texto em três segmentos: no primeiro me preocuparei, especificamente, com a liberdade de expressão e os limites que lhe são devidos; no segundo, que deve constituir o núcleo da tese, tratarei da tolerância incondicional; e, para finalizar, focarei em estabelecer um equilíbrio entre espírito crítico e tolerância social.
- Da Liberdade de Expressão
Este primeiro tópico parte de uma constatação relativamente simples, mas cujo empecilho é de natureza histórica. Por isso, antes de expô-la é necessário um breve esclarecimento sobre a noção de liberdade de que estou aqui me utilizando. Por muitos anos, talvez desde que essa ideia vem sendo enunciada, a liberdade esteve inteiramente associada ao livre-arbítrio de um indivíduo quanto às suas escolhas, podemos vê-la expressa tanto na ética Aristotélica, que pressupõe a liberdade dos indivíduos em decidirem suas ações, quanto na moral Cristã, em que nem mesmo Deus tem a capacidade de intervir nas decisões da humanidade. Muito provavelmente, essa ideia de liberdade não é estranha para ninguém, ao menos no Ocidente. Contudo, a liberdade que discutirei aqui é a liberdade crítica, que consiste não apenas no poder de escolha, mas também nas opções passíveis de serem escolhidas, darei três exemplos rápidos:
I: Um cliente em um restaurante é livre para escolher qualquer prato que lhe for apresentado no cardápio; em contrapartida, ele não tem a liberdade de pedir qualquer outro prato que esteja fora dele.
II: O ser humano é livre para fazer uma série de coisas, como correr, nadar, escutar sons, sentir odores e mais uma infinidade de coisas que a natureza e o tempo lhe dispuseram, mas não há um único ser humano que seja livre para voar ou fazer qualquer coisa que a natureza não permitir.
III: O indivíduo tem liberdade para escolher entre várias ideologias e valores, no entanto, sabendo que toda superestrutura é apoiada por uma infraestrutura econômica, a ideologia corrente será sempre aquela advinda do grupo de pessoas que dominem o sistema econômico vigente. Dessa forma, um indivíduo, ainda que não pertença à classe dominante, terá para sua escolha quase que exclusivamente a ideologia corrente.
O primeiro exemplo nada mais é do que uma situação cotidiana que até mesmo uma pessoa que nada ouviu de filosofia poderia facilmente compreender. O segundo, já pressupõe um determinismo natural das faculdades humanas, que acabam, pois, por limitar sua liberdade, um importante expoente desta tese é Baruch de Spinoza em sua obra Ética. O último exemplo parte de uma visão marxista da sociedade e é, indubitavelmente, a mais científica das hipóteses, pois parte de uma análise econômica. Assim sendo, fica claro que não sou o primeiro a pensar liberdade dessa forma e que, em qualquer cenário com o mínimo de determinismo, há condições que limitam a liberdade humana.
Diante do exposto, fica agora fácil manifestar a constatação que mencionei previamente. Quando abusamos de nossa liberdade de expressão tiramos da liberdade de expressão alheia, porém não de maneira igualitária. Se um indivíduo, sem nenhum extraordinário poder social, tece uma crítica ferrenha a um representante do Estado ou a algum poderoso órgão de imprensa, a liberdade deste em quase nada será ferida; enquanto que, na situação contrária, o indivíduo perderia completamente seu poder de expressão e, por analogia, seu poder crítico, o que nos leva ao próximo tema.
- Tolerância Incondicional
Muitas já foram as vezes que se tentou pintar uma visão ideal de sociedade e, em quase todas elas, o resultado acabava por ser uma verdadeira distopia se entendida sobre condições realistas. O que levou vários autores a subverter essas supostas utopias, gostaria de destacar dois exemplos clássicos: O sonho de um homem ridículo e A máquina do tempo. O primeiro trata-se de um conto de Fiódor Dostoiévski, em cujo ápice, no sonho do protagonista, somos apresentados a uma sociedade tão perfeita e tão isenta de problemas que os indivíduos nem ao menos precisam olhar uns aos outros e vivem suas vidas em absoluta autonomia; o segundo, trata-se de um novela ficcional de H.G. Wells, em que um viajante do tempo chega a um período tão distante da linha do tempo humana, que havemos nos tornado seres inabilitados física e intelectualmente, pois teríamos máquinas que fariam qualquer coisa que precisássemos.
O que essas duas sociedades têm em comum? Ambas não apresentam forma alguma de conflito ou discordância, não apresentam dialética. Nietzsche dizia, assim como Heráclito, que o motor do mundo é a guerra, Marx dizia que era a luta de classes; o que todos esses concordariam, e acredito que muitos outros, é que o motor da humanidade é a discordância, o choque de opostos. A tolerância incondicional prega que o conflito, seja lá qual for sua finalidade, é sempre prejudicial e deve ser combatido ao máximo, mas é do conflito que surgem as maiores conquistas da humanidade. A ciência avança pelo combate incansável de hipóteses e paradigmas, a política pelo esforço de certas formas de governo de se mostrarem mais adequadas do que outras e a economia por diferentes sistemas ou teorias econômicos.
Neste ponto, retomamos a discussão do tópico anterior, pois, se tolerássemos qualquer extrapolação de liberdade por polos desses conflitos, os outros polos seriam destruídos e assim haveria uma hegemonia em todas as áreas da cultura humana. Os “mestres” que Marcuse menciona seriam os grupos que prevaleceriam e monopolizariam a opinião e a ação pública, impossibilitando o avanço humano. Creio estar claro que a tolerância incondicional não é uma teoria sustentável, mas, ao mesmo tempo, abrir mão da tolerância seria igualmente insustentável, qual caminho deveríamos seguir, então?
- Em Defesa da Equidade Humana
Como pôde ser visto ao longo do texto, a grande dificuldade que nos motiva a desenvolver esse tema, é a desigualdade de influência entre as pessoas. As mesmas palavras ditas da pessoa A para a pessoa B não terão as mesmas consequências se ditas da pessoa B para a pessoa A. Sabendo que o fim último da tolerância é a liberdade, defendo que a tolerância é boa na medida em que aumenta a liberdade geral dos seres do universo e ruim na medida em que a diminui. O que me leva a um postulado bastante razoável: a liberdade de expressão, na mesma medida que a tolerância que lhe é devida, deve seguir em oposição ao poder socioeconômico do indivíduo em questão.
Pode-se argumentar contra minha máxima dizendo que não se pode quantificar a liberdade e que, muitas vezes, não se pode ter certeza das consequências que ela terá no universo como um todo. De fato, é uma crítica interessante, mas que já foi levantada contra os Utilitaristas, que responderam, a meu ver, aceitavelmente. A quantificação exata da liberdade humana não pode ser feita de fato, mas é deliberadamente ignorante aquele que se nega a dizer que um homem preso numa cela com uma vida precária é menos livre do que um com uma vida perfeita em alguma região de luxo; quanto às diferentes formas de liberdade, devemos prezar por aquelas que mais facilmente e sob menor infelicidade nos aproximam de um estado mais livre. Quanto ao conhecimento das consequências da tolerância, é algo que vamos desenvolvendo com a vivência; ou seja, minha hipótese é científica, não tenho intenção de determinar com total certeza se certo ato de tolerância vai ou não ser bom, mas a experiência humana, assim como nossos poderes de raciocínio, fará disso cada vez mais claro. Assim poderemos prezar pela liberdade coletiva, ao mesmo tempo em que prezamos pelo desenvolvimento humano.
SINTETIZANDO -
Autor da citação: Herbert Marcuse (1898-1979)
Posição em relação ao autor: concordância
Tese do ensaio: Demonstrar que é impossível conciliar tolerância incondicional com uma sociedade em que os indivíduos gozam de poder de crítica.
Autores usados em suporte: Heráclito (540-470 a.C); Baruch de Spinoza (1632-1677); Karl Marx (1818-1883); Friedrich Nietzsche (1844-1900); John Stuart Mill (1806-1873).
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