ENSAIO MODELO - Nº08
No excerto de Metafísicas Canibais, é defendido que o etnocentrismo é um fenômeno que se estabelece em diferentes povos quando estes entram em contato com outros. Esse fenômeno consiste, primordialmente, de um questionamento, uma dúvida, em relação a algum traço, manifesto ou implícito, dos representantes do outro povo, que supostamente se opõe ao paradigma vigente quanto à ideia de ser humano. Quando os europeus, ainda no contexto do pensamento Cristão, acreditando na alma como único meio de redenção quanto aos pecados carnais, entram em contato com os índios, cuja cultura mantinha uma relação profundamente distinta com a corporeidade, surge o dito questionamento que fundamenta o etnocentrismo: “consistia em duvidar que os corpos dos outros contivessem uma alma formalmente semelhante às que habitavam seus próprios corpos”; de maneira análoga surge o etnocentrismo dos índios, quando se deparam com os homens europeus que destoam da sua própria noção de pessoa.
Neste ensaio, defenderei a tese de que o etnocentrismo parte do estabelecimento de uma diferença radical entre os povos que na verdade não existe, contudo, discordo do autor em dizer que essa suposta diferença provém diretamente de suas noções metafísicas de ser humano, em vez disso, explicarei essa diferença em termos comportamentais e de ordem moral, que, por sua vez, podem ser consequências da distinção abordada no texto. Além disso, pretendo argumentar contra o etnocentrismo e porque ele deve ser combatido. As bases de minha análise se darão em uma crítica direcionada ao Subjetivismo Ético, e na obra Colonialidade do Poder, de Aníbal Quijano.
1. Subjetivismo Ético
Para inicio de nossas discussões, devemos ter uma boa noção do que é a teoria do Subjetivismo Ético, desde suas premissas básicas até as consequências de sua confirmação. A hipótese defendida pelo Subjetivismo ético parte de uma simples constatação: culturas distintas têm códigos morais distintos. Apesar de curta, essa frase comprime uma série de experiências que a tornam amplamente defendida. Temos, por exemplo, o caso dos Galanteanos e dos Gregos, enquanto os primeiros se alimentavam com os corpos de seus pais, quando estes morriam, os outros os queimavam. Para um grego, a ideia de devorar seu próprio pai após sua morte soava absurda, assim como, para um galanteano, a ideia de queimar o corpo dos seus pais soava repulsiva. Existem inúmeras estórias a respeito de comunidades cujos atos nos enojariam, ainda que para eles fossem completamente aceitáveis. Logo, outra conclusão razoável é a de que todos os povos viam suas regras morais como se fossem as certas.
Em geral, costuma-se estudar Subjetivismo Ético a partir de cinco afirmações independentes umas das outras — ao menos, assim é feito no Elementos da Filosofia Moral de James Rachels —, mas eu irei trata-lo por meio de duas afirmações que, segundo a teoria, deveriam ser correlatas: Culturas distintas têm códigos morais distintos, portanto, nenhuma delas pode estar certa ou errada. Dessa maneira é expresso também que uma atitude não pode ser objetivamente certa ou errada, mas apenas é uma dessas coisas quando analisada em meio a uma cultura específica. Mas isso realmente faz sentido?
2. A Diferença Entre Os Povos é Aparente
Retomando as duas afirmações expressas anteriormente, nós podemos abstrair que se trata de uma inferência na forma “A, portanto B”. Sendo A “culturas distintas têm códigos morais distintos” e B “nenhuma delas pode estar certa ou errada”. O fato é que B não segue logicamente da afirmação A, pode-se claramente imaginar uma situação de discordância entre duas pessoas, em que uma está certa e a outra está errada. Com efeito, existem situações que podem ser avaliadas por meio de objetivos comuns, por exemplo, o ato de mentir, a veracidade das informações é um pressuposto fundamental da comunicação e como esta é, por sua vez, fundamental ao desenvolvimento da sociedade, não se pode conceber uma sociedade em que mentir seja ético. Existem, dessa forma, comportamentos que são objetivamente — ao menos, se o objetivo desta sociedade é prosperar — aconselháveis, desaconselháveis e até proibíveis.
Contudo, pode-se argumentar que existem exceções em que o ato de mentir é considerado uma atitude correta e isso é uma parte importante dessa análise. As condições de vida de certa sociedade, assim como suas crenças religiosas e factuais, moldam comportamentos que aparentemente são distintos de sociedade para sociedade, mas se analisarmos mais a fundo, as regras morais que movem as sociedades são, ao menos as mais fundamentais, iguais entre uma e outra. Os Galanteanos comiam seus pais para que seus espíritos continuassem a vagar dentro deles, pois amavam seus pais; os Gregos os queimavam para libertá-los por completo da vida terrena, pois também os amavam. As comunidades esquimós que deixavam que seus filhos e avós morressem não o faziam por desprezo ou ódio, mas por amor e por acreditarem que aquela era a única forma dos outros filhos ou membros da família continuarem vivendo. Amor, confiança, sociabilidade, apreço pela vida humana, todos esses são fundamentos que devem existir em todas as sociedades, independente das formas que acabam por se manifestar.
Daí vem o ataque direto ao etnocentrismo, ao crer que as sociedades e culturas são tão diferentes, ele se baseia em uma análise rasa e falaciosa. Sem dúvida, existem diferenças que permeiam as diferentes comunidades, existem hábitos que são objetivamente condenáveis e atitudes que, muitas vezes, estão apoiadas em visões incorretas da realidade ou das suas consequências. Mas, apesar de tudo isso, somos todos movidos por desejos primários que, ao que tudo indica são comuns, e, desta forma, não existe nenhuma diferenciação racional entre um europeu caucasiano e um negro africano.
3. Porque Devemos Combater o Etnocentrismo.
Como vimos até aqui, não podemos apoiar a distinção entre povos por meio de argumentos racionais, o que nos impede de trata-los de maneira diferente, ao menos sob uma conduta moral. Ainda assim, quando olhamos para nossa história recente, percebemos que houve um esforço constante em diferenciar o homem europeu e seus descendentes norte-americanos daqueles que viviam ou trabalhavam em suas colônias. O etnocentrismo ocorrido, particularmente, no imperialismo e no neoimperialismo, nos séculos XVI e XIX, pode ser estudado a partir das tentativas pseudocientíficas da criação da noção de raça. Na obra do sociólogo peruano Aníbal Quijano Colonialidade do Poder, é explicado que a ideia de raça é uma invenção para legitimar a dominação dos povos africanos, sul-americanos e de algumas partes da Ásia. Não obstante, segundo ele, foi a primeira vez que houve um sistema global de divisão trabalhista, a divisão racial do trabalho. Juntamente com a globalização do capitalismo, teve-se a divisão da população mundial em grupos, que nada tinham em comum a não ser a cor de suas peles — um fenótipo arbitrário que não mantem relações com as virtudes de uma pessoa —, as assim chamadas raças: negro, indígena, mestiço, amarelo, oliváceo e quantas outras fossem necessárias para justificar a exploração e a injusta distribuição de empregos.
Vale ressaltar que não foi mencionada raça branca, porque essa noção só veio existir como um contraponto às diferentes noções de raça, branco seria aquele que não é nenhuma cor específica. Com a criação desta teoria, todo o avanço que foi feito em relação ao estudo da moral se torna em vão, pois agora existiria uma diferença factual entre dois povos. A teoria racial teve um impacto incomensurável no nosso mundo, escravidão, genocídio, em geral, atos horrendos foram cometidos sobre ela. É compreensível que o Subjetivismo Ético seja algo que possa ser visto como uma forma de redenção quanto a esse passado, mas devemos nos lembrar constantemente que as diretrizes morais mais básicas que nos guiam são comuns a todas as comunidades. A Epistemologia do Sul é uma lembrança amarga de que somos todos humanos.
SINTETIZANDO -
Autor da citação: Eduardo Viveiro de Castro (1951-)
Posição em relação ao autor: Concordância
Tese do ensaio: O etnocentrismo é consequência de uma suposta diferença radical entre os povos em relação às suas diretrizes morais, diferença esta que é apenas aparente.
Autores usados em suporte: Aníbal Quijano (1928-2018) e James Rachels (1941-2003).
Bons estudos!
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