Aula 1: Consoantes

Aula 1: Consoantes

Por João Henrique Oliveira Fontes e Leonardo Paillo da Silva

 

As consoantes são divididas em duas grandes categorias: pulmônicas e não-pulmônicas. As consoantes não-pulmônicas, por suas vez, são subdivididas em ejetivas, implosivas e cliques.

Consoantes pulmônicas

As consoantes pulmônicas são de longe as mais comuns e importantes, tanto é que são apresentadas no topo do IPA Chart. São aquelas que são produzidas através do fluxo de ar a partir do pulmão. Todas as consoantes do português são pulmônicas. Três grandes fatores definem tal tipo de consoante: local de articulação, tipo de articulação e vozeamento.

O local de articulação é a posição dos órgãos dentro do trato vocal ao se articular os sons. Por exemplo, fale “n”, “s”, “l”, “t”, “r” e repare como, em todas, a posição da língua no céu da boca é a mesma, e por isso são agrupadas na mesma coluna na tabela do IPA. Analisaremos isso mais a fundo ainda neste artigo.

O tipo de articulação se refere ao modo como é falado. Por exemplo, se será com fluxo contínuo de ar pelo nariz (nasais), fluxo contínuo e turbulento de ar pela boca (fricativas), entre outros. Também analisaremos o tipo de articulação mais a fundo em breve.

Por último (mas não menos importante!), chama-se vozeamento a distinção entre as consoantes "surdas" (p, t, k, s) e "sonoras" (respectivamente, b, d, g, z). Uma forma de entender facilmente como o vozeamento funciona é fazer um pequeno experimento:

  • Comece a fazer um som "sssssssss", como se fosse uma cobra.
  • Sem parar o som, troque-o para um "zzzzzzzzz", imitando uma vespa.
  • Perceba que os dois sons são feitos da mesma maneira, tanto é que você não precisa mover nenhuma parte da sua língua nem mudar o método com que se faz os sons (que, no caso, é sibilar). A única coisa que muda é que você começa a vibrar suas cordas vocais, passando de uma consoante desvozeada para sua correspondente vozeada.

Como mencionado, todas as consoantes do português são pulmônicas. Segue uma imagem ilustrando os locais e as respectivas consoantes. Perceba que a ordem delas da esquerda para a direita corresponde à ordem do próprio IPA Chart, que segue o trato vocal:

Imagem feita por José Paulo Pinheiro Felici.

É bom, principalmente para as olimpíadas de Linguística, ter uma boa noção dos locais de articulação. A seguir, damos uma breve explicação sobre cada local de articulação, seguindo a ordem do IPA Chart (da esquerda para a direita) e do trato vocal (dos lábios até a glote, ou garganta). Para locais de articulação que não têm exemplos em português como na imagem acima, damos exemplos em outras línguas.

  • Bilabial: como o nome sugere, consoantes bilabiais são pronunciadas a partir da junção dos lábios.
  • Labiodental: articulado pela junção dos dentes superiores com o lábio inferior.
  • Dental: produzido com a língua entre os dentes. Exemplos: thin e the ("fino" e "a"/"o" em inglês), representados, respectivamente, pelo theta (θ) e pelo édh (ð), uma letra islandesa.
  • Alveolar: produzido com a ponta da língua no alvéolo, uma região logo acima dos dentes. Pode variar um pouco o local preciso (a distinção semântica entre consoantes alveolares pelo ponto exato de articulação é incomum, sendo presente por exemplo no basco - s, apical, e z, laminal. Não é necessário, portanto, decorar essas divisões).
  • Pós-alveolar: produzido com a língua um pouco mais atrás em comparação com as consoantes alveolares (analise a imagem).
  • Retroflexo: produzido com a língua “enrolada” para trás. Esses sons teoricamente não existem na língua portuguesa, porém um exemplo é o r do "mar", no sotaque do interior gaúcho. Note que os símbolos na tabela do IPA são muito semelhantes com seus correspondentes alveolares, porém com um "ganchinho" logo abaixo. Isso pode ser relacionado ao fato das retroflexas serem praticamente iguais às consoantes alveolares, porém fazendo um "c" com a língua.
  • Palatal: produzido no palato, uma região um pouco mais atrás no "céu" da boca.
  • Velar: produzido no véu da boca, ainda mais atrás em relação ao palato.
  • Uvular: produzido com a úvula, o "sininho" da boca. É comum apenas em alguns sotaques do português brasileiro.
  • Faringal: nessa posição, só há duas consoantes, a fricativa desvozeada e sua correspondente vozeada. São relativamente incomuns entre as línguas mais faladas, porém estão presentes no árabe. Exemplo: عالم, "mundo" (para nós, que, com raras exceções, não sabemos ler árabe, é o primeiro símbolo, o da direita: ع. Equivale ao ħ, a fricativa faringal desvozeada). Uma curiosidade: esta é a consoante que uma professora de árabe tentou pronunciar, e virou meme.
  • Glotal: pronunciada sem qualquer impedimento da língua, como o r em rato, e a famigerada pausa glotal, como a pausa na expressão de negação ã-ã. A pausa glotal é comumente representada com um apóstrofo.

 

Além dos locais, temos os modo de articulação, que, na tabela do IPA, são as linhas horizontais. Em cada linha estão as consoantes de um modo de articulação distinto. Resumidamente, os modos são:

  • Plosivas: caracterizadas por uma rápida interrupção no fluxo de ar seguidas da sua liberação. Exemplos: bipolar, tradição, coringa. Uma forma de lembrar desse modo com facilidade é associar "plosiva" a "explosiva". Essas consoantes são como mini explosões de ar na boca!
  • Nasais: consoantes feitas com o ar passando pelo nariz. Exemplos: ministro, tenho, manga. Note que o n em manga é diferente do n em ministro. Isso ocorre porque o n em manga ocorre antes do g (que, nesse exemplo, é velar), e portanto "imita" seu comportamento.
  • Fricativas: caracterizadas por um fluxo contínuo (isto é, é possível manter a consoante até o ar acabar) e turbulento. Exemplos: favo, sazonal, cheguei, germinar.
  • Vibrante múltipla (trill): a língua ou os lábios encostam várias vezes no mesmo lugar, rapidamente. Exemplos: "errrrrrrou" (do Faustão), "bbbbbbbbb" (som feito ao se imitar cavalos, bem raro, presente por exemplo na língua Pirahã).
  • Vibrante simples (flap): a língua encosta rapidamente e apenas uma vez em algum lugar. Exemplo: r em caro.
  • Lateral aproximante: fluxo não-turbulento de ar pelos lados, sendo as mais comuns o "l" e o "lh" (representado pelo lambda, λ).
  • Lateral fricativa: fluxo turbulento de ar pelos lados. Não existe no português, mas existe no nahuatl, no encontro consonantal tl e o l mongol.
  • Aproximante: a língua ou lábio não encosta em lugar algum, apenas se aproxima. Exemplos: peixe, pouso (sim, essas são tecnicamente consoantes)

Nota: as nasais, laterais e aproximantes formam uma sub-categoria chamada ressonantes ou sonorizantes. São consoantes que são pronunciadas com um fluxo não-turbulento de ar, na maioria das vezes vozeadas. 

É muito importante lembrar desses nomes. Há outras articulações que não chegam a formar tipos, que são as plosivas aspiradas, africadas, labializadas, palatalizadas e velarizadas:

  • As aspiradas são pronunciadas com um h seguindo a consoante, ou seja um fluxo de ar mais intenso, como (em inglês) o c de cut e o p de paper.
  • As africadas são plosivas seguidas de uma fricativa, que são pronunciadas como uma consoante só. Exemplos: "ts" (zz em pizza), tch em tchau, pf do alemão pfeffer.
  • As labializadas são pronunciadas aproximadamente como se tivessem um u bem breve, como qu em qual e gu em guarda (apesar de, no português, isso não ser um consenso).
  • As palatalizadas são pronunciadas aproximadamente como se fossem seguidas de um i bem breve, como py, do Pokémon Pyukumuku.

 

É muito importante entender como funcionam os locais e tipos de articulação, pois frequentemente em um problema você verá generalizações que dependem deles. Por exemplo, nesse hipotético problema:

“Em alguns estados do nordeste, o s em coda (quando é seguido de outra consoante no final da sílaba) pode ser pronunciado tanto como 's' quanto como 'x', assim como no sotaque carioca. Complete as lacunas:

Estranho - x; Estado - x ; Escalar - s; Esbelto - ?

Esganar - s; Esperança - s; Desnatado - x; Tesla - ?”

É x antes de t e n, cuja característica comum é serem alveolares, e s antes do resto. Como l é alveolar também e b não, as respostas devem ser s e x, respectivamente.

 

 

Consoantes não-pulmônicas

Ao contrário das consoantes pulmônicas (as quais estão presentes em basicamente todas as línguas faladas), estas são relativamente raras, então pouco se precisa saber sobre elas. Contudo, ainda é importante saber como essas consoantes funcionam, para evitar possíveis confusões na resolução de questões.

Cliques: Os cliques existem em línguas Khoisan e em algumas línguas bantu (como isiXhosa e isiZulu), todas faladas no sul da África, na região do deserto do Kalahari. Há 5 cliques reconhecidos e denotados pela Associação Internacional de Fonética, com um sexto em "fase de aprovação", o clique retroflexo. Muitos desses sons são utilizados mesmo por pessoas que não falam nenhuma das línguas citadas acima. Um exemplo é o som que fazemos para chamar cachorros, uma espécie de "tsc-tsc-tsc-tsc": o clique dental.

De um ponto de vista mais técnico, cliques são sons nos quais o ar é obstruído em dois pontos do trato vocal em sequência. Porém, para nós, jovens aprendizes, não é necessário saber essa definição.

ImplosivasEstas são "versões alternativas" de consoantes plosivas vozeadas, como "b", "d" e "g". Isso é fácil de perceber pelo símbolo do IPA dessas consoantes, que correspondem às suas versões "normais", porém com um gancho para cima. Essas consoantes podem ser observadas em línguas das mais diversas regiões do globo, principalmente na África subsaariana e no sudeste asiático.

O nome dado a essas consoantes deriva do fato de haver uma pequena implosão no trato vocal, trazendo o ar para dentro da boca em uma espécie de movimento retrógrado.

Ejetivas: As consoantes ejetivas são aquelas nas quais não há fluxo de ar no trato vocal. Emitimos estas consoantes em um beatbox, por exemplo. É uma ocorrência relativamente comum, sendo os exemplos mais falados a língua hauçá, o georgiano (e as demais línguas caucasianas) e as línguas sioux.

 

 

Outras consoantes

Como a tabela tem suas limitações, acaba sendo impossível colocar todos os símbolos no mesmo lugar, em apenas uma tabela, sem que fique cansativo demais para ler e interpretar (tanto é que existe uma extensão para o IPA Chart). Por isso, acabam sobrando alguns tipos de consoantes que não mencionamos anteriormente.

Dessa lista de "outros símbolos", vale a pena mencionar alguns exemplos que não discutimos anteriormente:

  • A consoante "w" é uma aproximante labiovelar. Isso significa que tanto o véu da boca quanto os dois lábios se aproximam na sua pronúncia. É uma consoante muito frequente para nós, e está presente no u em causa e em touro (mas não em baú nem em puxar, pois que a letra u só é uma consoante quando não é o núcleo da sílaba; discutiremos isso mais adiante, na aula de sílabas).
  • As africadas são casos especiais nos quais duas consoantes são pronunciadas simultaneamente. No português, temos dois exemplos: o /t͡ʃ/ (tchau e tia) e o /d͡ʒ/ (dia, dizer). Em algumas línguas africanas, notavelmente o Yorubá e línguas próximas, há o "kp" e o "gb", que são pronunciados como se fossem uma consoante só.

Note como os fonemas descritos são colocados entre barras; também exploraremos isso mais adiante, na aula de notação do IPA.

Chegamos ao fim da nossa primeira aula de fonética, que trata de consoantes! Mais uma vez, recomendamos fortemente que você utilize o IPA Chart interativo para treinar esses sons e entender melhor como funcionam o lugar e o modo de articulação.