Aula 7.3 - O princípio da incerteza

Escrito por Wanderson Faustino Patricio

Primórdios do princípio da incerteza

Uma das maiores descobertas da física foi a do comportamento ondulatório da luz. Os experimentos de difração e interferências em raios luminosos levaram o conhecimento a respeito das ondas de luz a um tremendo salto no século XVIII.

Todavia, como nem tudo é um mar de rosas no mundo da física, novos experimentos levaram os cientistas ao conhecimento de que a luz não se comportava apenas como onda, mas que esta também poderia apresentar características de partícula, como quantidade de movimento. Da mesma maneira, foi verificado esse comportamento "duplo" para partículas (os elétrons).

Como visto em aulas anteriores, o físico francês Louis De-Broglie verificou através de seus experimentos o duplo comportamento tido pelo elétron, podendo atuar tanto como onda quanto como partícula. Um desses experimentos, também feito por Thomas Young para o caso da Luz, foi a difração de feixes de életrons por pequenas aberturas. O resultado desse experimento já foi discutido com mais abrangência na Aula 7.2 desse nosso curso, caso você ainda não tenha visto, vale a pena dar uma conferida para entender melhor o que será discutido a seguir.

Ao se lançar o elétron com momento em apenas uma direção pela fenda, é de se esperar que ele apenas continue seguindo na direção em que ele estava, porém, ele muda a sua direção, mesmo não sendo dado momento para ele em outros eixos. Essa foi a primeira grande observação do princípio da  incerteza. No nosso experimento temos uma pequena incerteza a respeito da posição do elétron, ele só consegue passar pela fenda posta, é uma certeza grande a respeito de onde o elétron passará. Todavia, não temos muita certeza do momento do nosso feixe. Da mesma maneira acontece para o caso contrário. Se a nossa fenda for muito grande, os elétrons seguirão praticamente em linha reta. Não teremos certeza de onde o elétron passará, mas temos pouca incerteza sobre o momento dele.

Vale ressaltar que essas incertezas estão associadas a uma medição, não necessariamente a um instrumento de medida, mas a uma análise. Os sistemas quânticos podem variar com a observação de alguém. Basta lembrarmos do famoso experimento do Gato de Schrödinger, onde o animal está vivo e morto ao mesmo tempo até que alguém abra a caixa (ainda vamos debater mais um pouco a respeito desse experimento mental nas próximas aulas).

Tendo isso em mente, vamos começar a analisar a parte matemática do princípio da incerteza.

Pacotes de ondas

Quando estamos falando de ondas uma pergunta bastante comum é: "o que está ondulando?".

Para as ondas no mar são as moléculas de água que estão sendo levantadas. Para o som no ar são as moléculas de ar que estão vibrando. Para a luz são os campos magnético e elétrico que oscilam.

Mas e quando estamos falando de ondas de matéria. Assim como para as ondas luminosas, não existe um "éter" para que a matéria agite.

Como será desenvolvido nesta seção e na próxima, a partícula está, em certo sentido, “espalhada” sobre a extensão da onda, então para a nossa função de onda na matéria ondular é achar a probabilidade de achar a partícula ondulante.

Sabemos da mecânica clássica que as funções de onda são soluções da nossa equação de onda:

\dfrac{\partial^2y}{\partial x^2}=\dfrac{1}{v^2}\dfrac{\partial^2y}{\partial t^2}

Dentre a imensidão de funções que satisfazem essa equação, a mais importante é sem dúvidas a onda harmônica, dada por:

y=y_o\cos{(kx-\omega t)}=y_o\cos{\left(\dfrac{2\pi}{\lambda}(x-vt)\right)}

Onde a velocidade angular e o número de onda são dados respectivamente por:

\omega=2\pi f   e   k=\dfrac{2\pi}{\lambda}

Existem, contudo, algumas ondas harmônicas que não podem ser escritas em função apenas de uma função harmônica. Tome como exemplo uma corda sendo balançada por duas pessoas, cada uma em uma das extremidades, que a balançam com frequências de oscilação diferentes. A nossa onda resultante será a superposição das duas ondas. Geralmente quando estamos falando de superposição de ondas trabalhamos com a série de Fourier ou com a integral de Fourier, mas para exemplificar o nosso resultado vamos trabalhar com um caso mais simples, somente duas ondas ao invés de infinitas.

Considere a superposição de duas ondas harmônicas y_1 e y_2:

y_1=y_o\cos{(k_1x-\omega_1 t)}   e   y_2=y_o\cos{(k_2x-\omega_2 t)}

A onda resultante será dada por:

y=y_1+y_2=y_o\cos{(k_1x-\omega_1 t)}+y_o\cos{(k_2x-\omega_2 t)}

Com o uso de alguns truques trigonométricos podemos chegar ao seguinte resultado:

y=y_o\cos{\left(\dfrac{1}{2}\Delta k \cdot x-\dfrac{1}{2}\Delta \omega \cdot t\right)}\cos{\left(\overline k x-\overline{\omega} t\right)}

Onde:

\Delta k=k_1-k_2  ;  \Delta \omega=\omega_1-\omega_2  ;  \overline k=\dfrac{k_1+k_2}{2}  e  \overline{\omega}=\dfrac{\omega_1+\omega_2}{2}

Esse resultado não parece demonstrar nada significante, mas ele apresenta o núcleo do princípio da incerteza. Consideremos que os dois rapazes tenham uma precisão bastante alta em relação a frequência de oscilação e ao seu número de onda (o que no caso do elétron seria ter muita precisão na determinação do momento), ou seja:

k_1\approx k_2  e  \omega_1\approx k_2

\Delta k\rightarrow 0  e  \Delta \omega\rightarrow 0

Como os termo com as variações de frequência e número de onda serão pequenos, o termo com os valores médios é que definirá a oscilação. Podemos, portanto, associar a função com as variações a uma amplitude aparente da onda em uma certa região, visto que nas proximidades dessa região não haverá uma variação grande. Perceba que se a diferença não fosse pequena, teríamos variações grandes em intervalos pequenos.

Ademais, podemos agora nos afastar bastante da região analisada, de maneira que a gente consiga analisar a variação da amplitude aparente. Vejamos os seguintes gráficos:

Figura 01: (a) posição das duas ondas em um determinado tempo t. (b) superposição das duas ondas para o mesmo tempo t.

É possível notar pelo gráfico como aparenta ter uma onda resultante de comprimento de onda 2\Delta x quando analisamos a superposição. Essa variação \Delta x onde é possível ver uma variação de amplitude grande, justamente devido a alta precisão nos nossos parâmetros, ou seja, quando temos uma incerteza grande em relação ao nosso momento, teremos uma pequena incerteza na nossa posição, e vice versa.

Organizando um pouquinho as nossas equações, podemos chegar ao seguinte resultado para o termo de variação:

\cos{\left(\dfrac{1}{2}\Delta k \cdot x-\dfrac{1}{2}\Delta \omega \cdot t\right)}=\cos{\left(\dfrac{1}{2}\Delta k \left( x-\left(\dfrac{\Delta \omega}{\Delta k}\right) t\right)\right)}

Podemos perceber que esse nosso envelope (linha tracejada na Figura 01), o qual chamaremos de grupo, se move com uma velocidade dada por:

v_g=\dfrac{\Delta \omega}{\Delta k}

Vimos o que ocorre com a onda resultante para a superposição de duas outras ondas. Vamos agora ver o que acontece para o caso da superposição de sete ondas diferentes.

Considere que na nossa representação y_k=y_{0k}\cos{(kx-\omega t)}.

Figura 02: (a) posição das ondas em um determinado tempo t. (b) superposição das ondas para o mesmo tempo t.

Relembrando um pouco dos estudos da ondas, sabemos que a velocidade de fase para uma onda individual é dada por:

v_p=\lambda f=\dfrac{\omega}{k}

Temos, portanto, para a nossa velocidade de grupo:

v_g=\dfrac{d\omega}{dk}=\dfrac{d(v_pk)}{dk}

\boxed{v_g=v_p+k\dfrac{dv_p}{dk}}

Nota-se que se todas as velocidades de fase forem as mesmas, independente do número de onda, todos grupos se moverão com a mesma velocidade v_p.

Existem alguns meios que possuem velocidade de fase constante para todas as frequências, esses meios são chamados de meios não dispersivos. Alguns exemplos de meios não dispersivos são: ondas em uma corda perfeitamente flexível, ondas de som no ar, ondas eletromagnéticas no vácuo. Uma característica importante dos meios não dispersivos é que, visto que as velocidade dos grupos são as mesmas, a onda resultante não tem seu formato alterado enquanto se move. Os meios nos quais a velocidade de fase não é constante para todas as frequências são chamados de meios dispersivos, um exemplo são as ondas eletromagnéticas na água ou no vidro.

O princípio da incerteza na difração de elétrons

Considere o experimento de difratar um feixe de elétrons por uma pequena abertura de largura a.

Figura 03: representação do experimento da difração de elétrons

Como sabemos da ótica física, a primeira abertura angular não nula para a qual ocorre um máximo de intensidade é dada por:

\sin{\theta}=\dfrac{\lambda}{a}

Como o nosso elétron se moverá para a direção do eixo vertical, ele adquirirá um momento na direção vertical, sendo esse momento \Delta p_z e p o momento total, temos:

\sin{\theta}\approx\dfrac{\Delta p_z}{p}

Logo, teremos:

\dfrac{\Delta p_z}{p}\approx \dfrac{\lambda}{a}

a\cdot \Delta p_z\approx \lambda\cdot p

Pelo princípio da dualidade onda-partícula de De-Broglie:

p=\dfrac{h}{\lambda}

Como a abertura a é a nossa incerteza na posição vertical, podemos trocá-la por \Delta z, chegando portanto ao nosso primeiro resultado:

\boxed{\Delta z\cdot \Delta p_z\approx h}

Análise da incerteza para um sistema contínuo

Quando estamos analisando um sistema com partículas, estamos falando de um sistema discreto - ou seja, que não é contínuo - podemos somar duas funções de onda, sete funções de onda, 50 funções de onda, e por aí vai. Porém, quando estamos falando de um sistema contínuo não é possível realmente fazer a soma de todas as funções de onda para um elétron, até porque, como veremos em próximas aulas e discutiremos um pouco nessa aula, não é possível determinar com precisão a posição do elétron no espaço. Além de existir a incerteza na medida da posição, existe também a probabilidade de um elétron estar ou não em uma região, e portanto, regiões do espaço nas quais a probabilidade de o elétron ser encontrado é maior.

Quando fazemos a análise das funções de onda provenientes da equação de Schrödinger (não se preocupe que veremos essa função depois), mesmo quando os elétrons possuem as mesmas condições (energia e estado inicial) ocorrem diferenças quando são calculadas as funções de onda.

Para analisar totalmente o nosso sistema precisaremos, portanto, analisar todas as possíveis combinações para os elétrons na região de maior probabilidade de este ser encontrado, somando todas as possíveis funções de onda, cujo número de onda se encontram na região possível. Para fazer essa soma, é necessário utilizar-se da soma e da integral de Fourier, e não seria interessante ao nosso curso entrar em um detalhamento matemático tão apurado e complicado. Contudo, o resultado dessa integração é bastante relevante as nossas discussões.

Ao resolvermos as nossa integral de Fourier, chegamos ao seguinte resultado:

\boxed{\Delta p_x \Delta x\geq \dfrac{h}{4\pi}=\dfrac{\hbar}{2}}

Se fizermos a mesma análise que fizemos para as variáveis espaciais para as temporais, chegamos também à:

\boxed{\Delta E \Delta t\geq \dfrac{h}{4\pi}=\dfrac{\hbar}{2}}

Esses resultados foram descobertos pelo físico alemão Werner Karl Heisenberg, trabalho este que lhe rendeu um prêmio Nobel.

Essas equações nos levam a um importante resultado da física quântica: quando estamos analisando um sistema quântico nunca podemos estar totalmente corretos a respeito de uma medida, a interferência dos experimentos provocam incertezas nas medições, quanto mais estamos certos de algo menos certos estaremos de outras coisas.

Reunindo portanto todas as dimensões teremos:

\boxed{\Delta p_x \Delta x\geq \dfrac{h}{4\pi}}

\boxed{\Delta p_y \Delta y\geq \dfrac{h}{4\pi}}

\boxed{\Delta p_z \Delta z\geq \dfrac{h}{4\pi}}

\boxed{\Delta E \Delta t\geq \dfrac{h}{4\pi}}

Vale ainda ressaltar que a nossa incerteza pode ser calculado pela fórmula da variância.

Seja f o parâmetro analisado:

\boxed{\Delta f=\sigma_f=\sqrt{\langle f^2\rangle-\langle f\rangle^2}}

A notação \langle k \rangle denota o valor médio do parâmetro k

Façamos algumas questões exemplo para deixar mais claro como utilizar o princípio da incerteza.

 Exemplos

Exemplo 1

Qual é a mínima energia que um elétron confinado em uma caixa de lado a, podendo se mover em apenas uma dimensão, pode ter?

Considere que a faixa de velocidades é não relativística.

Solução:

Calcularemos primeiramente a incerteza na nossa posição:

Como vimos anteriormente, o nosso pacote possui "comprimento de onda" igual a:

\lambda=2\Delta x

Como o elétron está confinado em uma caixa de comprimento a, esse será seu comprimento de onda:

a=2\Delta x

\Delta x=\dfrac{a}{2}

Aplicando na equação do princípio da incerteza:

\Delta x \Delta p\geq \dfrac{\hbar}{2}

\Delta p\geq \dfrac{\hbar}{a}

Um elétron não pode ter uma quantidade de movimento menor do que sua incerteza. Portanto:

p\geq \Delta p=\dfrac{\hbar}{a}

Como as velocidades são não relativísticas, podemos escrever:

E=\dfrac{p^2}{2m}\geq \dfrac{\left(\Delta p\right)^2}{2m}

\boxed{E\geq \dfrac{\hbar^2}{2ma^2}}

Esse resultado nos leva a uma interessante conclusão: quando um elétron está confinado em alguma região do espaço, ele não pode ter energia nula, ele deve uma energia maior que a calculada na questão acima. Essa energia é chamada de energia do estado zero.

Exemplo 2 (ITA 2019 - 2ª Fase - Questão 10)

Considere um elétron de massa m confinado em uma cavidade esférica de raio a, cuja fronteira é intransponível.

Estime a velocidade v e a energia E do elétron no estado fundamental.

Solução:

I) Inicialmente, considerando a simetria das coordenadas, podemos perceber que:

\langle x\rangle=\langle y\rangle=\langle x\rangle=0  e  \langle p_x\rangle=\langle p_y\rangle=\langle p_y\rangle=0

II) Utilizando A relação para a nossa incerteza:

\Delta x=\sqrt{\langle x^2\rangle-\langle x\rangle^2} \rightarrow (\Delta x)^2=\langle x^2\rangle

\Delta y=\sqrt{\langle y^2\rangle-\langle y\rangle^2} \rightarrow (\Delta y)^2=\langle y^2\rangle

\Delta z=\sqrt{\langle z^2\rangle-\langle z\rangle^2} \rightarrow (\Delta z)^2=\langle z^2\rangle

Analogamente:

(\Delta p_x)^2=\langle p_x^2\rangle

(\Delta p_y)^2=\langle p_y^2\rangle

(\Delta p_z)^2=\langle p_z^2\rangle

III) Relação entre as componentes e o valor médio:

i) Seja r a distância do elétron até o centro da esfera:

r^2=x^2+y^2+z^2

\langle r^2\rangle=\langle x^2\rangle+\langle y^2\rangle+\langle z^2\rangle

Como não existe uma direção preferencial nesse espaço, o valores médios para as componentes são as mesmas:

\langle r^2\rangle=3\langle x^2\rangle=a^2

\langle x^2\rangle=\langle y^2\rangle=\langle z^2\rangle=\dfrac{a^2}{3}  (EQ 01)

ii) Para o momento temos quase a mesma análise, porém, não sabemos qual o valor médio do quadrado do momento.

\langle p^2\rangle=\langle p_x^2\rangle+\langle p_y^2\rangle+\langle p_z^2\rangle  (EQ 02)

III) Aplicando a equação do princípio da incerteza:

\Delta p_x \Delta x\geq \dfrac{\hbar}{2}

\Delta p_y \Delta y\geq \dfrac{\hbar}{2}

\Delta p_z \Delta z\geq \dfrac{\hbar}{2}

Elevando ambos os membros ao quadrado e somando, temos:

\left(\Delta p_x\right)^2\left(\Delta x\right)^2+\left(\Delta p_y\right)^2\left(\Delta y\right)^2+\left(\Delta p_z\right)^2\left(\Delta z\right)^2\geq 3\cdot\dfrac{\hbar^2}{4}

\langle x^2\rangle \langle p_x^2\rangle+\langle y^2\rangle \langle p_y^2\rangle+\langle z^2\rangle \langle p_z^2\rangle\geq 3\cdot\dfrac{\hbar^2}{4}

Da EQ 01:

\dfrac{a^2}{3} \langle p_x^2\rangle+\dfrac{a^2}{3} \langle p_y^2\rangle+\dfrac{a^2}{3} \langle p_z^2\rangle\geq 3\cdot\dfrac{\hbar^2}{4}

\langle p_x^2\rangle+\langle p_z^2\rangle+\langle p_z^2\rangle\geq \dfrac{9\hbar^2}{4a^2}

Juntando essa última equação com a EQ 02:

\langle p^2\rangle\geq \dfrac{9\hbar^2}{4a^2}

Como sabemos:

p=mv

Logo:

\langle m^2v^2\rangle\geq \dfrac{9\hbar^2}{4a^2}

\langle v^2\rangle\geq \dfrac{9\hbar^2}{4m^2a^2}

A velocidade pode ser estimada por:

v_o=\sqrt{\langle v^2\rangle}

\boxed{v_o=\dfrac{3\hbar}{2ma}}

A energia cinética do elétron é dada por:

E=\dfrac{\langle p^2\rangle}{2m}

E\geq \dfrac{1}{2m}\left(\dfrac{9\hbar^2}{4a^2}\right)

Portanto, a energia no estado fundamental é:

\boxed{E_o=\dfrac{9\hbar^2}{8ma^2}}

Questão extra

Um elétron é liberado do repouso a uma altura h de um buraco de diâmetro a. Ele foi liberado do centro do buraco.

Considerando m a massa do elétron e g a gravidade local, qual é o menor valor de a para o qual é possível garantir que o elétron caia dentro dele?