Escrito por Ualype Uchôa
A ideia de hoje apresentará uma importantíssima ferramenta da Óptica que possui uma aplicação extremamente útil e elegante em problemas de cinemática (mais especificamente, de otimização de trajetórias). Essa ideia é recomendada para estudantes do Nível 2, mas é também muito interessante de ser vista por alunos de níveis posteriores (e seletiva) que ainda não possuam o conhecimento do assunto. O entendimento completo da ideia a seguir necessita de noções de cálculo, mas não se preocupe caso não saiba.
O Princípio de Fermat em problemas de Cinemática
Um problema-base
Antes de tudo, imaginemos o seguinte problema de cinemática, que foi proposto no nível intermediário dos Problemas da Semana 62:
Um salva-vidas necessita de ajudar uma pessoa que está prestes a se afogar. Ele se encontra no ponto a uma distância do mar. Sua velocidade na areia é de e na água é de e a pessoa se encontra no ponto , no mar, a uma distância da areia. A linha que liga ambos não é perpendicular com a intersecção mar-areia. Definindo o eixo como paralelo a intersecção areia-mar e como perpendicular, temos que a distância em entre eles é dada por e em por . Como o salva-vidas deve se movimentar de tal forma que ele consiga alcançar a pessoa no menor tempo possível? As velocidades são dadas em relação à terra; considere que as águas do mar estão em repouso.
Figura 1: Imagem para o problema.
Ao responder essa pergunta, é necessário muita cautela. Você poderia pensar que a resposta seria simplesmente ir em linha reta de até , percorrendo parte do trajeto no solo e o restante nadando, de tal forma a percorrer a menor distância; isso seria verdade apenas se o salva-vidas se movimentasse com a mesma velocidade no solo e na água, o que não é o caso. Sendo assim, concluímos que o salva-vidas deve percorrer uma certa distância em linha reta no solo, e, em um certo ponto, mergulhar no mar e mover-se em linha reta até o banhista. Vamos propor duas soluções: a primeira, utilizando derivadas (força-bruta), e a segunda, utilizando o poderoso Princípio de Fermat (depois de o apresentarmos).
Solução 1 (Usando Cálculo):
Essa solução consiste no método da "força-bruta": escrevemos o tempo total de viagem como função de um parâmetro variável desconhecido (como um ângulo ou distância), derivamos o tempo em relação à esse parâmetro e igualamos a zero para encontrar o valor de que minimiza a função ; com isso, achamos o tempo mínimo. Veja o esquema da trajetória do salva vidas, descrita pelas linhas tracejadas:
Figura 2: Imagem para a solução do problema-base.
Vamos escolher a distância como o nosso parâmetro. Separando o tempo total em e , os tempos gastos no solo e na água, respectivamente. Assim, escrevamos:
,
.
Onde e são as distâncias percorridas em cada meio. Pela geometria, vale:
,
Para acharmos o mínimo da função, tornemos nula sua derivada com relação à :
,
o que resulta em
.
Mas perceba que e . Desta forma, achamos uma interessantíssima relação entre as velocidades em cada meio e os ângulos de inclinação das trajetórias com a normal à intersecção:
.
Isso te lembra alguma outra relação física? Se você disse Lei de Snell, você captou o sentimento dessa ideia! A próxima seção exemplificará onde desejamos chegar com essa analogia entre óptica geométrica e cinemática:
O Princípio de Fermat
Na Óptica Geométrica, há um princípio físico fundamental acerca da propagação da luz, desenvolvido pelo advogado e físico Pierre de Fermat (1607-1665), que leva o nome de seu criador. Ele nos diz que:
"O caminho tomado pela luz entre quaisquer dois pontos é tal que o seu caminho óptico é minimo."
Ou, de forma equivalente e menos formal:
"O caminho tomado pela luz entre quaisquer dois pontos é tal que o trajeto é feito no menor tempo possível."
O que também o leva a ser chamado de Princípio do tempo mínimo. Uma das consequências disso é a de que, em um meio homogêneo (isto é, com índice de refração constante) a velocidade da luz não varia ponto-a-ponto, e o caminho tomado pela luz entre dois pontos quaisquer é uma reta (de forma a percorrer o tempo mínimo, pois a menor distância entre dois pontos é uma reta); isso corresponde à propagação retilínea da luz.
Outra consequência disso é a Lei de Snell, que dita o comportamento de um raio de luz ao viajar através de meios com diferentes índices de refração. Quando a luz muda de meio, ela sofre um desvio em relação à sua trajetória original, para que ela se movimente no trajeto que lhe fornece o tempo mínimo. Então, se escolhermos os pontos fixos no meio com índice de refração e , no meio com índice de refração , teremos que a luz, partindo de incide com um ângulo em relação à normal com a interface, e é refratada a um ângulo , chegando então em , de tal forma que
.
Figura 3: Raio de luz se propagando entre dois meios com diferentes índices de refração.
Ou, em termos da velocidade da luz em cada meio - sejam elas e , para os meios e , respectivamente (estamos considerando que são as mesmas em todas as direções; isto é, os meios são isotrópicos) - temos: -
.
A demonstração da Lei de Snell pode ser encontrada na Ideia 11, e é feita de uma maneira análoga à primeira solução do problema-base; escrevemos o tempo total em função de um parâmetro variável; como o tempo deve ser mínimo pelo príncipio de Fermat, derivamos a função e igualamos a zero obtendo as relações mostradas.
Mas, como esses resultados nos ajudam? Bem, como sabemos que a luz sempre se move de forma a fazê-lo no menor tempo, podemos, em problemas de otimização (tempo mínimo) como o problema-base, imaginar qual caminho a luz tomaria? Em questões nas quais somos fornecidos as velocidades em diferentes meios, e há uma transição entre estes, A Lei de Snell será certamente obedecida, e nos permitirá resolver problemas desse tipo de uma forma mais imediata do que a "força-bruta". Veja por exemplo, a solução 2 do problema-base:
Solução 2 (Por "Lei de Snell"):
Para que o salva-vidas consiga chegar em no tempo mínimo, ele deve se mover da forma como a luz faria (pelo Princípio de Fermat) caso se movimentasse através de dois meios, nos quais sua velocidade é e , respectivamente. Neste caso, a Lei de Snell, é válida, e escrevemos que
.
Relacionando os parâmetros geométricos do problema e as velocidades, juntamente com a relação acima, encontramos facilmente o tempo de viagem, por exemplo, bem como as distâncias percorridas pelo salva-vidas na areia e na água.
O problema da Braquistócrona
Um outro problema que pode ser resolvido elegantemente através do Princípio de Fermat é o célebre problema da Braquistócrona. Ele foi proposto pelo físico Johann Bernoulli (1667-1748), em 1696. Podemos enunciá-lo da seguinte forma:
"Fixados dois pontos e outro mais abaixo (que não está diretamente abaixo de ) no espaço, numa região com campo gravitacional uniforme, qual deve ser a trajetória de uma partícula (há ausência de atritos), se quando abandonada de , chega em no menor tempo possível?"
Existem diversas soluções possíveis para esse mesmo problema; uma delas será deixada como desafio. Nos preocuparemos em apresentar a solução feita pelo próprio Bernoulli.
Solução:
Devido às considerações que vimos anteriormente, Bernoulli imaginou a partícula viajando entre e , como um feixe de luz num meio no qual a sua velocidade se comporta de um modo análogo à da partícula sujeita uma aceleração vertical constante , da gravidade. Por conservação de energia, a velocidade da partícula (que estamos tratando como a velocidade da luz nesse "meio") na coordenada será . O índice de refração desse meio tomará, então, a seguinte forma:
.
Veja que ele é função apenas de . Sendo assim, o produto do índice de refração desse meio (que é função de ) pelo ângulo de inclinação da trajetória com a vertical deve ser constante, pela Lei de Snell:
.
Logo:
,
.
A princípio, o problema está resolvido; você pode não ter percebido, mas a equação acima caracteriza uma curva conhecida: a cicloide. Dessa forma, fixados dois pontos e no espaço, a trajetória de uma partícula que resulta no menor tempo de viagem é um arco de cicloide. Uma demonstração do fato (não-trivial) utilizado segue abaixo.
Demonstração:
Ao chegar na equação final apresentada, Bernoulli prosseguiu de outra forma. No entanto, o físico Mark Levi apresentou uma interessante construção geométrica para demonstrar geometricamente a validade dessa relação para uma curva cicloidal; lembre-se que uma cicloide pode ser construída analisando-se a trajetória de um ponto na periferia de um disco que gira sem deslizar num plano horizontal:
Figura 4: Imagem para a demonstração.
A trajetória cicloidal do ponto está indicada em vermelho. Sabemos que, a todo instante, a direção da velocidade desse ponto corresponde à direção da reta tangente à sua trajetória (em verde). Seja a outra intersecção desta reta com a circunferência. Além disso, a velocidade desse ponto é perpendicular à reta que o liga ao ponto (que está em contato com o solo), tendo em vista que este é o (ver Ideia 08). Logo, o triângulo é retângulo em , que implica que sua hipotenusa é o diâmetro da circunferência; mas isto só é possível se o ponto estiver no eixo vertical, logo abaixo de :
Figura 5: Imagem para a demonstração.
Seja o ângulo que a curva faz com o eixo . Da geometria da figura, decorre que:
,
,
A análise feita aqui também pode ser encontrada no interessantíssimo vídeo do canal "3Blue1Brown".
Problemas Relacionados:
1) Outro salva-vidas
Um salva-vidas muito atento está parado na areia, na costa da praia, no ponto . Ao perceber que um banhista está se afogando no ponto , a uma distância da areia e de , ele prontamente se põe a correr para salvá-lo. Sabendo que ele corre com velocidade na areia e nada com (), a que distância do ponto ele deve mergulhar para conseguir alcançar o banhista o mais rápido possível?
Figura 6: Imagem para o problema 1.
.
2) Tempo na braquistócrona
Considere dois pontos e no espaço separados de uma distância e localizados em um mesmo nível horizontal. Um trilho perfeitamente liso que conecta os dois pontos é produzido de tal forma que, ao abandonar-se uma bolinha em , ela chega em no menor tempo possível. Determine tal intervalo de tempo em função de e (aceleração da gravidade, que aponta verticalmente para baixo).
Como fora visto anteriormente, o caminho entre e deve possuir o formato de um arco de cicloide. Lembre-se de que uma curva cicloidal é formada a partir do movimento de um ponto na periferia de um círculo em rolamento perfeito.
3) Lei de Snell (Jaan Kalda)
Cornelius mora na costa de uma baía . Duas costas da baía fazem um ângulo . A casa dele está localizada a uma distância da costa e do ponto . Ele deseja pescar na costa . Em qual posição a posição de pesca deve se localizar para que Cornelius leve o menor tempo possível na sua viagem até esse ponto partindo de sua casa? Qual é esse tempo mínimo? Cornelius move-se com velocidade no solo e com velocidade usando sua balsa.
Figura 7: Imagem para o problema 2.
Defina mediante;
Para :
e
Caso a condição acima não for respeitada:
e
4) E com correnteza? (Jaan Kalda)
Um menino está situado no ponto em um rio, a uma distância da margem do rio. Ele pode nadar com velocidade ou correr com velocidade na praia; a água flui no rio a uma velocidade . O menino quer chegar ao ponto , na margem, no menor tempo possível. A que distância do ponto alinhado com o ponto ele deve sair da água?
Figura 8: Imagem para o problema 3.
O princípio de Fermat só é aplicável se os pontos de saída e chegada forem fixos; isto é, estão em repouso., o que não é o caso aqui. Você pode tentar mudar de referencial de forma que a Lei de Snell continue válida!
, onde .