Física - Ideia 31

Escrito por Ualype Uchôa

A ideia de hoje apresentará uma importantíssima ferramenta da Óptica que possui uma aplicação extremamente útil e elegante em problemas de cinemática (mais especificamente, de otimização de trajetórias). Essa ideia é recomendada para estudantes do Nível 2, mas é também muito interessante de ser vista por alunos de níveis posteriores (e seletiva) que ainda não possuam o conhecimento do assunto. O entendimento completo da ideia a seguir necessita de noções de cálculo, mas não se preocupe caso não saiba.

O Princípio de Fermat em problemas de Cinemática

Um problema-base

Antes de tudo, imaginemos o seguinte problema de cinemática, que foi proposto no nível intermediário dos Problemas da Semana 62:

Um salva-vidas necessita de ajudar uma pessoa que está prestes a se afogar. Ele se encontra no ponto A a uma distância D do mar. Sua velocidade na areia é de v e na água é de u e a pessoa se encontra no ponto B, no mar, a uma distância d da areia. A linha que liga ambos não é perpendicular com a intersecção mar-areia. Definindo o eixo y como paralelo a intersecção areia-mar e x como perpendicular, temos que a distância em x entre eles é dada por D+d e em y por L. Como o salva-vidas deve se movimentar de tal forma que ele consiga alcançar a pessoa no menor tempo possível? As velocidades são dadas em relação à terra; considere que as águas do mar estão em repouso.

Figura 1: Imagem para o problema.

Ao responder essa pergunta, é necessário muita cautela. Você poderia pensar que a resposta seria simplesmente ir em linha reta de A até B, percorrendo parte do trajeto no solo e o restante nadando, de tal forma a percorrer a menor distância; isso seria verdade apenas se o salva-vidas se movimentasse com a mesma velocidade no solo e na água, o que não é o caso. Sendo assim, concluímos que o salva-vidas deve percorrer uma certa distância em linha reta no solo, e, em um certo ponto, mergulhar no mar e mover-se em linha reta até o banhista. Vamos propor duas soluções: a primeira, utilizando derivadas (força-bruta), e a segunda, utilizando o poderoso Princípio de Fermat (depois de o apresentarmos).

Solução 1 (Usando Cálculo):

Essa solução consiste no método da "força-bruta": escrevemos o tempo total de viagem t(q) como função de um parâmetro variável desconhecido q (como um ângulo ou distância), derivamos o tempo em relação à esse parâmetro e igualamos a zero para encontrar o valor de q que minimiza a função t(q); com isso, achamos o tempo mínimo. Veja o esquema da trajetória do salva vidas, descrita pelas linhas tracejadas:

Figura 2: Imagem para a solução do problema-base.

Vamos escolher a distância y como o nosso parâmetro. Separando o tempo total em t_1 e t_2, os tempos gastos no solo e na água, respectivamente. Assim, escrevamos:

t=t_1+t_2,

t=\dfrac{x_1}{v}+\dfrac{x_2}{u}.

Onde x_1 e x_2 são as distâncias percorridas em cada meio. Pela geometria, vale:

t=t(y)=\dfrac{\sqrt{y^2+D^2}}{v}+\dfrac{\sqrt{\left(L-y\right)^2+d^2}}{u},

Para acharmos o mínimo da função, tornemos nula sua derivada com relação à y:

\dfrac{dt(y)}{dy}=0,

o que resulta em

\dfrac{y}{v\sqrt{y^2+D^2}}-\dfrac{L-y}{u\sqrt{\left(L-y\right)^2+d^2}}=0.

Mas perceba que \dfrac{y}{\sqrt{y^2+D^2}}=\sin{\theta_1} e \dfrac{L-y}{\sqrt{\left(L-y\right)^2+d^2}}=\sin{\theta_2}. Desta forma, achamos uma interessantíssima relação entre as velocidades em cada meio e os ângulos de inclinação das trajetórias com a normal à intersecção:

\boxed{\dfrac{\sin{\theta_1}}{v_1}=\dfrac{\sin{\theta_2}}{v_2}}.

Isso te lembra alguma outra relação física? Se você disse Lei de Snell, você captou o sentimento dessa ideia! A próxima seção exemplificará onde desejamos chegar com essa analogia entre óptica geométrica e cinemática:

O Princípio de Fermat

Na Óptica Geométrica, há um princípio físico fundamental acerca da propagação da luz, desenvolvido pelo advogado e físico Pierre de Fermat (1607-1665), que leva o nome de seu criador. Ele nos diz que:

"O caminho tomado pela luz entre quaisquer dois pontos é tal que o seu caminho óptico é minimo."

Ou, de forma equivalente e menos formal:

"O caminho tomado pela luz entre quaisquer dois pontos é tal que o trajeto é feito no menor tempo possível."

O que também o leva a ser chamado de Princípio do tempo mínimo. Uma das consequências disso é a de que, em um meio homogêneo (isto é, com índice de refração constante) a velocidade da luz não varia ponto-a-ponto, e o caminho tomado pela luz entre dois pontos quaisquer é uma reta (de forma a percorrer o tempo mínimo, pois a menor distância entre dois pontos é uma reta); isso corresponde à propagação retilínea da luz.

Outra consequência disso é a Lei de Snell, que dita o comportamento de um raio de luz ao viajar através de meios com diferentes índices de refração. Quando a luz muda de meio, ela sofre um desvio em relação à sua trajetória original, para que ela se movimente no trajeto que lhe fornece o tempo mínimo. Então, se escolhermos os pontos fixos A no meio com índice de refração n_1 e B, no meio com índice de refração n_2, teremos que a luz, partindo de A incide com um ângulo \alpha_1 em relação à normal com a interface, e é refratada a um ângulo \alpha_2, chegando então em B, de tal forma que

\boxed{n_1 \sin{\alpha_1}=n_2 \sin{\alpha_2}}.

Figura 3: Raio de luz se propagando entre dois meios com diferentes índices de refração.

Ou, em termos da velocidade da luz em cada meio - sejam elas v_1 e v_2, para os meios 1 e 2, respectivamente (estamos considerando que são as mesmas em todas as direções; isto é, os meios são isotrópicos) - temos: -

\boxed{\dfrac{\sin{\alpha_1}}{v_1}=\dfrac{\sin{\alpha_2}}{v_2}}.

A demonstração da Lei de Snell pode ser encontrada na Ideia 11, e é feita de uma maneira análoga à primeira solução do problema-base; escrevemos o tempo total em função de um parâmetro variável; como o tempo deve ser mínimo pelo príncipio de Fermat, derivamos a função e igualamos a zero obtendo as relações mostradas.

Mas, como esses resultados nos ajudam? Bem, como sabemos que a luz sempre se move de forma a fazê-lo no menor tempo, podemos, em problemas de otimização (tempo mínimo) como o problema-base, imaginar qual caminho a luz tomaria?  Em questões nas quais somos fornecidos as velocidades em diferentes meios, e há uma transição entre estes, A Lei de Snell  será certamente obedecida, e nos permitirá resolver problemas desse tipo de uma forma mais imediata do que a "força-bruta". Veja por exemplo, a solução 2 do problema-base:

Solução 2 (Por "Lei de Snell"):

Para que o salva-vidas consiga chegar em B no tempo mínimo, ele deve se mover da forma como a luz faria (pelo Princípio de Fermat) caso se movimentasse através de dois meios, nos quais sua velocidade é v e u, respectivamente. Neste caso, a Lei de Snell, é válida, e escrevemos que

\dfrac{\sin{\theta_1}}{v}=\dfrac{\sin{\theta_2}}{u}.

Relacionando os parâmetros geométricos do problema e as velocidades, juntamente com a relação acima, encontramos facilmente o tempo de viagem, por exemplo, bem como as distâncias percorridas pelo salva-vidas na areia e na água.

O problema da Braquistócrona

Um outro problema que pode ser resolvido elegantemente através do Princípio de Fermat é o célebre problema da Braquistócrona. Ele foi proposto pelo físico Johann Bernoulli (1667-1748), em 1696. Podemos enunciá-lo da seguinte forma:

"Fixados dois pontos A e outro mais abaixo B (que não está diretamente abaixo de A) no espaço, numa região com campo gravitacional uniforme, qual deve ser a trajetória de uma partícula (há ausência de atritos), se quando abandonada de A, chega em B no menor tempo possível?"

Existem diversas soluções possíveis para esse mesmo problema; uma delas será deixada como desafio. Nos preocuparemos em apresentar a solução feita pelo próprio Bernoulli.

Solução: 

Devido às considerações que vimos anteriormente, Bernoulli imaginou a partícula viajando entre A e B, como um feixe de luz num meio no qual a sua velocidade se comporta de um modo análogo à da partícula sujeita uma aceleração vertical constante g, da gravidade. Por conservação de energia, a velocidade da partícula (que estamos tratando como a velocidade da luz nesse "meio") na coordenada y será v=\sqrt{2gy}. O índice de refração desse meio tomará, então, a seguinte forma:

n=\dfrac{c}{v}=\dfrac{c}{\sqrt{2gy}}.

Veja que ele é função apenas de y. Sendo assim, o produto do índice de refração desse meio (que é função de y) pelo ângulo de inclinação da trajetória com a vertical deve ser constante, pela Lei de Snell:

n(y)\sin{\theta}=cte.

Logo:

\dfrac{c}{\sqrt{2gy}}\sin{\theta}=cte.,

\boxed{\dfrac{\sin{\theta}}{\sqrt{y}}=cte.}.

A princípio, o problema está resolvido; você pode não ter percebido, mas a equação acima caracteriza uma curva conhecida: a cicloide. Dessa forma, fixados dois pontos A e B no espaço, a trajetória de uma partícula que resulta no menor tempo de viagem é um arco de cicloide. Uma demonstração do fato (não-trivial) utilizado segue abaixo.

Demonstração:

Ao chegar na equação final apresentada, Bernoulli prosseguiu de outra forma. No entanto, o físico Mark Levi apresentou uma interessante construção geométrica para demonstrar geometricamente a validade dessa relação para uma curva cicloidal; lembre-se que uma cicloide pode ser construída analisando-se a trajetória de um ponto na periferia de um disco que gira sem deslizar num plano horizontal:

 

Figura 4: Imagem para a demonstração.

A trajetória cicloidal do ponto D está indicada em vermelho. Sabemos que, a todo instante, a direção da velocidade desse ponto corresponde à direção da reta tangente à sua trajetória (em verde). Seja B a outra intersecção desta reta com a circunferência. Além disso, a velocidade desse ponto é perpendicular à reta que o liga ao ponto O (que está em contato com o solo), tendo em vista que este é o C.I.R (ver Ideia 08). Logo, o triângulo \Delta BDO é retângulo em D, que implica que sua hipotenusa é o diâmetro da circunferência; mas isto só é possível se o ponto B estiver no eixo vertical, logo abaixo de O:

Figura 5: Imagem para a demonstração.

Seja \theta o ângulo que a curva faz com o eixo y. Da geometria da figura, decorre que:

r=2R\sin{\theta},

y=r\sin{\theta}=2R\sin^2{\theta}, \therefore

\therefore \boxed{\dfrac{\sin{\theta}}{\sqrt{y}}=\sqrt{\dfrac{1}{2R}}=cte.} c.q.d.

A análise feita aqui também pode ser encontrada no interessantíssimo vídeo do canal "3Blue1Brown".

Problemas Relacionados:

1) Outro salva-vidas

Um salva-vidas muito atento está parado na areia, na costa da praia, no ponto A. Ao perceber que um banhista está se afogando no ponto B, a uma distância D da areia e l de A, ele prontamente se põe a correr para salvá-lo. Sabendo que ele corre com velocidade v na areia e nada com u (u<v), a que distância x do ponto A ele deve mergulhar para conseguir alcançar o banhista o mais rápido possível?

Figura 6: Imagem para o problema 1.

Gabarito

x=l-\dfrac{u}{\sqrt{v^2-u^2}}D.

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2) Tempo na braquistócrona

Considere dois pontos A e B no espaço separados de uma distância L e localizados em um mesmo nível horizontal. Um trilho perfeitamente liso que conecta os dois pontos é produzido de tal forma que, ao abandonar-se uma bolinha em A, ela chega em B no menor tempo possível. Determine tal intervalo de tempo em função de L e g (aceleração da gravidade, que aponta verticalmente para baixo).

Dica

Como fora visto anteriormente, o caminho entre A e B deve possuir o formato de um arco de cicloide. Lembre-se de que uma curva cicloidal é formada a partir do movimento de um ponto na periferia de um círculo em rolamento perfeito.

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Gabarito

\boxed{T= \sqrt{2\pi \dfrac{L}{g}}}

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3) Lei de Snell (Jaan Kalda)

Cornelius mora na costa OP de uma baía MOP. Duas costas da baía fazem um ângulo \alpha. A casa dele está localizada a uma distância h da costa e \sqrt{h^2+l^2} do ponto O. Ele deseja pescar na costa OM. Em qual posição x a posição de pesca deve se localizar para que Cornelius leve o menor tempo possível na sua viagem até esse ponto partindo de sua casa? Qual é esse tempo mínimo? Cornelius move-se com velocidade v no solo e com velocidade u<v usando sua balsa.

Figura 7: Imagem para o problema 2.

Gabarito

Defina \beta mediante;

\sin{\beta}=\dfrac{v\sin{\alpha}}{u}

Para \tan{\beta}\le{\dfrac{l}{h}}:

x=\cos{\alpha}\left(l-h\tan{\beta}\right)

e

t=\dfrac{h\cos{\beta}}{v}+\dfrac{l\sin{\alpha}}{u}

Caso a condição acima não for respeitada:

x=0

e

t=\dfrac{\sqrt{l^2+h^2}}{v}

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4) E com correnteza? (Jaan Kalda)

Um menino está situado no ponto A em um rio, a uma distância a da margem do rio. Ele pode nadar com velocidade u ou correr com velocidade v na praia; a água flui no rio a uma velocidade w  data-recalc-dims= u" />. O menino quer chegar ao ponto C, na margem, no menor tempo possível. A que distância x do ponto B alinhado com o ponto A ele deve sair da água?

Figura 8: Imagem para o problema 3.

Dica

O princípio de Fermat só é aplicável se os pontos de saída e chegada forem fixos; isto é, estão em repouso., o que não é o caso aqui. Você pode tentar mudar de referencial de forma que a Lei de Snell continue válida!

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Gabarito

x=a\left(\dfrac{w}{u\cos{\alpha}}-\tan{\alpha}\right), onde \alpha=arcsin\left(\dfrac{u}{w+v}\right).

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